Conto: FORAM MUITOS, OS PROFESSORES
Bartolomeu Campos de Queiroz –
Fragmento
"Minha mãe guardava com cuidados
de sete chaves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro, ela
copiava receitas de amorosos doces: suspiros, amor em pedaços, baba-de-moça,
casadinhos, e fazia olho-de-sogra de cor. No segundo caderno, ela anotava
riscos de bordados, com nomes camuflados em pesares: ponto-atrás, ponto de
sombra, ponto de cruz, ponto de cadeia, laçadas e nós. No terceiro ela escondia
longas poesias, boiando em sofrimentos: A Louca d’Albano, Tédio, 0 Beijo do
Papai. Eu reparava seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso, admirava
sua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem ainda desconfiar das
palavras. Eu sabia do todo, sem suspeitar das partes. Durante muitas tardes,
com o pensamento enfastiado de passado, ela passava as páginas, lentamente,
espreitando as folhas vazias, como se cansada de escrever e de pouco exercer.
Eram sempre as mesmas comidas, os mesmos pontos, a mesma poesia e muito por
decidir.
Meu pai, junto ao rádio no alto da
cristaleira e longe do meu alcance, protegia alguns poucos livros sobre homens
célebres, com vidas prósperas sem precisar viajar de sol a sol. Aos pedaços ele
lia os compêndios, escutando a Voz do Brasil ou o Repórter Esso. Eu apreciava
seu silêncio, sem me aventurar em perguntas ou demandas. De vez em quando ele
interrompia a leitura e me acariciava com os olhos, me amando sem mãos, como se
me desejando outros futuros diferentes do seu. (...)
(...) Minha avó, toda manhã, ainda em
jejum, arrancava a página da folhinha Mariana e lia as recomendações. Meditava,
cambaleando no meio da sala, sobre o pensamento escrito no verso do papel para
depois conferir a fase da Lua, a previsão das enchentes e estiagens. Em seguida
acendia mais uma vela para os santos do dia: santa Genoveva, são Phillippus,
são Clemente Maria, santo Antão, santo Agripino. Eu reparava sua fé e guardava
o papelzinho como se armazenando sabedoria, como se acreditando na
possibilidade de o passado se repetir no futuro. (...)
(...) Maria Turum, empregada antiga de
meu avô, sabia de um tudo sem conhecer as letras. Conforme o meu olhar, ela me
oferecia um pedaço de doce ou me abraçava em seu colo. Combinava o tempo de
chuva com comida de angu, carne moída e quiabo, sem consultar caderno de receitas.
Se meu avô pisasse mais forte, ela apressava o almoço; e, se tossia durante a
noite, vinha um prato de mingau, com pedaços de queijo, no café da manhã. Ao
apertar com os dedos um grão de feijão, sabia se estava cozido ou se precisava
de mais um caneco de água. Olhava o céu e deixava a roupa para ser lavada em
outro dia, pois faltaria sol para corar os lençóis. (...)
(...) Meu avô, arrastando solidão,
escrevia nas paredes da casa. As palavras abrandavam sua tristeza, organizavam
sua curiosidade silenciosamente. Grafiteiro, afiava o lápis como fazia com a
navalha. A cidade era seu assunto: amores desfeitos, madrugada e fugas,
casamentos e traições, velórios e heranças. Contornava objetos: serrote,
tesoura, faca, machado – e ainda escrevia dentro dos desenhos um pouco do
destino de cada coisa; o serrote sumiu, a tesoura quebrou, o machado perdeu o
corte. Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando as palavras e
amando seus significados. Meu avô era um construtivista (sem conhecer nem a
Emília do Lobato) pela sua capacidade de não negar sentido às coisas. Tudo lhe
servia de pretexto.
Eu restava horas sem fim, de coração
aflito, seduzido pelas histórias de amor, de desafeto, de ingratidão, de
mentiras do meu primeiro livro – as paredes da casa do meu avô. Assim, percebi
o serviço das palavras (...)
(...) Meu avô poderia ter sido meu
primeiro professor se fizesse plano de aula, ficha de avaliação, tivesse
licenciatura plena. O fato é que ele não aplicava prova, não passava dever de
casa nem brincava de exercício de coordenação motora. Jamais me pediu que
acompanhasse o caminho que o coelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu
flor para colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi andando sobre os
muros ou pernas de pau, subindo em árvores, acertando as frutas com estilingue
ou enfiando linha na agulha para minha avó chulear. (...) Meu avô escancarava o
mundo com letra bonita e me deixava livre para desvendar sua escritura.
(...) Mesmo assim, cada dia eu conhecia
mais palavras e mais distâncias, combinando melhor as orações. E suas paredes
mais se enchiam de avisos sobre o mundo e as fronteiras do mundo. Eu decorava
tudo e repetia timidamente. Eram tranquilas suas aulas, e o maior encanto
estava em meu avô cultivar suas dúvidas. (...) Às vezes ele me pegava esticando
o pescoço, tentando alcançar um pedaço mais longe, um parágrafo mais alto.
(...)
(...) Não sei se aprendi a fazer contas
com meu avô. Ele mais me ensinava a "fazer de conta". No entanto, eu
diferenciava o mais alto do mais baixo, o bife maior do menor, as noites mais
frias das noites mais quentes, o mais bonito do mais feio, a montanha mais
longe, a dor mais pesada, a tristeza mais breve, a falta mais constante. Mas
acreditava, e hoje ainda mais, não ser a casa de meu avô uma escola. Ela não
possuía cartazes de cartolina nas paredes, vidro com semente de feijão
brotando, cantinho de leitura com livrinhos infantis, lista de ajudantes do
dia, tanque de areia, palhacinho de isopor, flanelógrafo de feltro verde. (...)
(...) Meu avô não usava toquinhos
coloridos, tampinhas de garrafa, palitos de picolé nem me exigia uniforme. Ele
nunca me convidou para fazer "rodinha”. Aprendi, porém, e como ninguém, a
dar nós cegos em barbante, seu passatempo preferido. Meu avô me dizia: "um
bom nó cego tem que ser ainda surdo e mudo". Penso ter vindo daí essa
minha paixão pelos abraços e pelos laços.
Em minha casa ninguém atribuía
importância às minhas leituras. Eu aproveitava pedaços de jornais que vinham
embrulhando coisas e lia em voz alta, procurando atenções e reconhecimentos.
Meu pai me olhava e repetia sempre: "Menino, deixe de inventar histórias,
você não sabe ler, nunca foi à escola" ou "Menino, deixe esse papel e
vá procurar serviço melhor pra fazer".
Passei a duvidar da escola. Parecia-me
um lugar só para dar autorizações. Se a escola não autorizasse, eu não poderia
saber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça. (...) Mas logo me
veio uma ideia: quando eu entrar para a escola, eu faço de conta que esqueci
tudo e começo a aprender de novo. (...)
(...) Cheguei (à escola) de uniforme
novo costurado pelo carinho de minha madrinha. O caderno era Avante, com menino
bonito na capa, sustentando uma bandeira com um Brasil despaginado pelo vento.
Menino rico, forte, com sapatos e meias soquete. O estojo de madeira estava
completo: dois lápis Johann Faber com borracha verde na ponta e mais um
apontador de metal. Um copo de alumínio, abrindo e fechando como acordeon de
Mário Zan, completava as exigências da escola. Só minha cabeça andava aflita
para esquecer. E esquecer é não existir mais. Isso não é tarefa fácil para quem
aprendia em liberdade, escolhia pelo prazer, guardava pela importância.
Fui acolhido por dona Maria Campos,
minha primeira professora, com livro de chamada, caderno com plano de aula
encapado com papel de seda. No pátio ela nos leu da cabeça aos pés, conferindo
a limpeza do uniforme, as unhas lavadas, o cabelo penteado. Pela primeira vez
me senti o seu livro. Miúdo, descalço, morria de inveja do menino Avante
guardado no embornal. Fui o primeiro da fila. Dona Maria Campos segurou minha
mão e a fila foi andando em direção à sala de aula. Mão fina e macia como o
algodão da paineira, que minha mãe colhia aos tufos e costurava travesseiro com
cheiro de mato. Meu coração disparou de amor e mão. (...)
(...) Ela (a professora) me emprestou
seu lenço quando minha mãe viajou doente para capital. Eu não usei. Preferi
usar, como de costume, a manga da camisa, com medo de sujar no nariz e ela não
mais gostar de mim. Todo o cuidado era pouco para não perder o seu amor. (...)
(...) Encher o caderno com fileiras e
fileiras de a, e, i, o, u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me apresentava
os sinais para escrever e ler o mundo. Ganhar o seu visto feito com lápis azul
ou vermelho riscava com alegria toda a minha vida. (...)
(...) Eu lia os cartazes, colava as
sílabas, recortadas, com grude de polvilho, mentindo descobrir pela primeira
vez as palavras. Vencia as horas folheando a cartilha, lendo até o fim, em
silêncio, guardando em segredo os depois. A professora jamais soube do meu
adiantamento. Na primeira carteira eu prestava atenção a tudo, sendo elogiado
como um menino aplicado, cheio de futuros. Nunca soube se precisava mesmo de
suas lições ou de seu carinho. E isso ela bem me presenteava. Eu aprendia para
ela. Mas, se não me esqueci de sua presença, valeu a pena. (...)
(...) Sei que nestes atos singelos,
praticados com gestos amorosos, dona Maria Campos me ensinou demais, muito além
das paredes de meu avô. Ou melhor, me ensinava serem muitos os lugares da
escrita e da leitura. De suas histórias lidas no fim da aula, eu ainda guardo o
cheiro do livro.
Ingênuo, supondo ser a vida um processo
de soma e não de subtração, juntei de cada um dos meus mestres um pedaço e
protegi em minha intimidade. Concluo agora que, de tudo aprendido, resta a
certeza do afeto como a primordial metodologia. Se dona Maria me tivesse dito
estar o céu no inferno e o inferno no céu, seu carinho não me permitiria
dúvidas.
Os cadernos de receitas de minha mãe,
os livros velhos de meu pai, as paredes de meu avô, o livro de Sant'Ana, a
mudez de Maria Turum, a fé viva de minha avó, a preguiça meu irmão e tudo o
mais, tudo ficou definitivamente impossível de ser desaprendido. (...)
Meu professor
inesquecível: ensinamentos e aprendizados contados por alguns dos nossos
melhores escritores organização de Fanny Abramovich. – São Paulo: Editora
Gente, 1997.
Entendendo o conto:
01 – O que a mãe do narrador
guardava sobre a cômoda do quarto?
A mãe do narrador guardava três cadernos
sobre a cômoda do quarto.
02 – O que a avó do narrador
fazia todas as manhãs em jejum?
A avó do narrador
arrancava a página da folhinha Mariana e lia as recomendações, meditando sobre
o pensamento escrito no verso do papel.
03 – Como o narrador descreve
a empregada Maria Turum?
O narrador descreve Maria Turum como alguém que sabia de tudo
sem conhecer as letras e que combinava o tempo de chuva com comida sem
consultar cadernos de receitas.
04 – O que o avô do narrador
escrevia nas paredes da casa?
O avô do narrador
escrevia sobre a cidade, amores, desafetos, madrugadas, fugas, casamentos,
traições, velórios, e heranças nas paredes da casa.
05 – Como o avô do narrador
ensinava o narrador a dar nós em barbante?
O avô do narrador
dizia que "um bom nó cego tem que ser ainda surdo e mudo" e ensinava
o narrador a dar nós cegos em barbante.
06 – O que o pai do narrador
dizia sobre as leituras do narrador?
O pai do narrador
dizia que o narrador não sabia ler e nunca tinha ido à escola.
07 – Como o narrador se sentia
em relação à escola antes de entrar nela?
O narrador sentia
medo da escola e a via como um lugar apenas para dar autorizações.
08 – Qual foi a reação do
narrador ao entrar para a escola?
O narrador
decidiu fazer de conta que esqueceu tudo e começar a aprender de novo quando
entrou para a escola.
09 – Como o narrador se sentiu
ao ser acolhido por sua primeira professora, dona Maria Campos?
O narrador se sentiu amado e emocionado
ao ser acolhido por dona Maria Campos, sua primeira professora.
10 – O que o narrador aprendeu
com dona Maria Campos além das lições de leitura e escrita?
O narrador
aprendeu com dona Maria Campos a importância do afeto como a primordial
metodologia de ensino.
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