Notícia: Fui procurar o endereço da saudade e o encontrei bem no meio do cérebro
Lúcia Helena 16/01/2020 04h00 iStock
A notícia derreteu o meu mundo, aquele
que eu conhecia até o último domingo, onde soava a risada solta de minha tia
Consuelo. Primeiro, senti uma fisgada. E, se tivesse um médico perguntando
"como ficou essa dor?", diria que agora mesmo ela lateja. "E
lateja onde?", perguntaria o doutor. Não saberia dizer. Mas
descobri, tentando esquadrinhar o sofrer, que existe um pedaço específico do
cérebro o qual registra as nossas dores.
Ao olhar a
sua imagem, parece até um pequeno anzol no meio da massa cinzenta, apontando
para a testa. Tem um nome esquisito: córtex cingulado anterior. E não faz
distinção entre sofrimentos do corpo e da alma. Para ele, dor é dor e ponto. Foi
ainda em 2003 que surgiu um primeiro experimento provando isso. Ele usou exames
de imagem para flagrar o cérebro de pessoas vítimas de rejeição social e não
deu em outra: nessa gente sofrida, a região ativada era o mesmo córtex
cingulado anterior que se acendia quando alguém sentia cólica na barriga ou
enxaqueca, se contraía para dar à luz ou para expelir uma pedra nos rins.
Um chute na perna? O córtex cingulado
anterior registra. Daí outras estruturas cerebrais que guardam uma espécie de
mapa do corpo apontam: foi ali o golpe, bem na panturrilha! E você fica sabendo
exatamente onde está o seu padecer. Por isso, não vai levar as mãos ao rosto,
como se tivesse recebido um soco no nariz. Elas irão descer abaixo dos joelhos.
Mas a dor da saudade, percebida no mesmo lugar na massa cinzenta, ah, ela não
está neste mapa. Daí ser tão sentida e, ao mesmo tempo, difícil de
descrever.
Apesar de saudade, a palavra, só
existir em bom português, ela é universal. No
entanto, curiosamente, você pode fuçar o PubMed, dar um Google Acadêmico,
folhear livros de neurociências e quase não encontrará estudo científico a seu
respeito. Em tempo, embora minha dor seja a do luto, sobre o qual há
excelentes referências na psicologia, queria entender a saudade mesmo — até as
mais doces, como as das brincadeiras da infância —, do ponto de vista das neurociências.
Portanto, liguei para o Ricardo Monezi, doutor em psicobiologia, professor da
PUC de São Paulo.
"A saudade é um dos sentimentos
mais fortes que o ser humano traz dentro de si", me disse, logo no início
da conversa. "Isso porque pode abarcar diversas emoções."
Vale explicar: embora a gente use e abuse dos termos sentimento e emoção
como sinônimos, para a ciência da mente eles são diferentes. A emoção surge no
corpo amigdaloide, uma estrutura que lembra uma amêndoa e que fica bem no miolo
dos nossos miolos.
Pequenina, ela é o berçário de medos,
tristezas, raivas, amores e alegrias. Na maioria das vezes, nem nos damos conta
das emoções que brotam ali, porque elas permanecem submersas no inconsciente.
Mas estão o tempo inteiro mexendo com a gente. "Sim, mexendo.
A própria palavra emoção vem do que seria 'por em movimento', em latim. E,
de fato, as emoções agitam o sistema nervoso, liberam neurotransmissores e
hormônios que, por sua vez, irão promover uma série de ações e reações no corpo,
como acelerar o coração ou contrair os músculos", exemplificou Monezi.
Já o sentimento, por definição dos
neurocientistas, é quando uma emoção é notada conscientemente. A saudade,
portanto, é um sentimento. Ora, a gente sabe bem quando ela bate — "a
presença dos ausentes", escreveu o poeta Olavo Bilac. Mas pode ter por
trás da alegria à tristeza, tudo misturado e junto. A alegria de
reviver na imaginação algo agradável e a tristeza de cair na real
— terminou.
Por ser emoção na origem,
a saudade surge na amígdala, certo? Só que então aprendo que ela tem,
no mínimo, endereço duplo, localizado no meio, bem no meio mesmo, do nosso
cérebro — no chamado sistema límbico. "O corpo amigdaloide também
fica ali, mas não podemos nos esquecer de outra região cerebral nessa
vizinhança, que é o hipocampo", falou Monezi. "Mais do que
guardar memórias, ele discrimina o que é importante para você. Ao rever o rosto
de alguém que é apenas um conhecido, o seu hipocampo pode jogá-lo para escanteio.
Mas, ao ver uma fotografia da sua tia, essa região do seu cérebro
avisa que você a ama e a informação se torna prioritária", me
ensinou.
Detalhe: esse amor vem daquela outra
parte, a amígdala, certo? "Sim, e vou dizer mais", continuou o
professor. "É como se arquivo de uma lembrança ocupasse mais e mais espaço
no hipocampo, quanto mais intensas foram as emoções ou quanto mais vezes
as experiências com determinada pessoa se repetiram." Claro, o mesmo vale
para situações ou lugares — lembranças de casa quando estamos distantes,
memórias da adolescência quando estamos crescidos e por aí vai.
Talvez você pense: alguns sujeitos e
episódios na vida são bem ruins. Verdade. A amígdala impregnará a memória
deles com emoções negativas. E não sentiremos um pingo de saudade. Ora,
o seu cérebro, inteligentíssimo, não quer repetir más experiências. Quer
ser inundado da dopamina do prazer, das endorfinas do relaxamento, da serotonina
do bem-estar e de todas as substâncias prazerosas que o replay de uma
memória feliz é capaz de liberar. Portanto, devemos até agradecer
pela saudade, já que vem de algo que pareceu muito bom.
"O problema é que o córtex
pré-frontal, na altura da testa, pode avisar se aquela pessoa nunca
mais estará presente, por exemplo. Isso não só corta o barato e causa
sofrimento, como surge uma cilada", conta Monezi. "O cérebro,
egoísta, não se conforma em perder algo que, para ele, foi registrado como
importante. Reage de maneira semelhante ao que faz com pessoas que sofreram uma
amputação, quando continuam sentindo dor e coceira na parte do corpo que não
está mais ali." No caso, vai insistir em lembranças, acionando o
seu sistema de recompensa como se fosse um vício. É a tal história da pessoa
que vive de saudade. Há um quê de química cerebral nisso, oscilando entre o
bem-estar da boa recordação e o mal-estar doído da ausência.
Mas a saudade também pode se
transformar em algo positivo. Afinal, as mesmas partes do cérebro que armazenam
os registros do passado se encarregam de projetar nosso futuro. Isso implica, é
fato, em ansiedade — como explica Monezi, "o cérebro quer que você se mexa
correndo para reencontrar quem ou o que é importante". Assim, ficamos
ansiosos para fazer a viagem em família porque temos saudades das férias. Ficamos
loucos para voltar para casa porque nos lembramos dos abraços dos filhos. É
claro, eu sei, essa ansiedade nunca vai se resolver se perdemos uma pessoa
querida. No entanto, aprendendo com o cérebro, onde passado e futuro se
fundem, posso projetar meus passos partir dos exemplos saudosos que guardo e
dar também aqueles risos soltos que sempre irão soar no ponto mais central da
minha cabeça.
Oliveira, Lúcia Helena
de. Fui procurar o endereço da saudade e o encontrei no meio do cérebro. UOL,
VivaBem, 16 jan. 2020. Disponível em:
Fonte: Práticas de
Língua Portuguesa/Faraco, Moura, Maruxo. – 1.ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2020. P. 158 – 160.
https://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/01/16/fui-procurar-o-endereco-da-saudade-e-o-encontrei-bem-no-meio-do-cerebro.
Acesso em: 22 maio 2020.
Entendendo a notícia:
01 – Junte-se a um ou dois
colegas, escrevam então uma síntese do texto para explicitar: o assunto tratado
nele e o que motivou a jornalista a escrever sobre isso, além das informações
que resumem as descobertas dela sobre o assunto pesquisado.
Resposta pessoal
dos alunos.
02 – Em quais fontes a
jornalista se apoiou para buscar informação e explicar o assunto do texto? De
que maneira essas fontes de pesquisa se relacionam com a temática tratada no
texto?
A jornalista usou
como fonte estudos resultantes de experimentos feitos em 2003 (sem citar uma
fonte específica) e uma entrevista com especialista em psicobiologia, ocorrida
por telefone.
03 – Leia sobre a ferramenta
de busca PubMed mencionada pela jornalista.
PubMed: serviço da Biblioteca
Nacional de Medicina dos Estados Unidos que dá livre acesso à base de dados
MEDLINE (sistema on-line de busca e análise de literatura médica), que traz
referências a artigos de jornais e revistas cientificas, abrangendo as áreas de
Ciências da Saúde e Ciências Biológicas. Conta com mais de 24 milhões de
citações e resumos em inglês.
Levando em conta o trecho em que essa ferramenta é citada, é possível afirmar que ela pode ter sido uma fonte de pesquisa para a jornalista? Explique.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Sim, de acordo com o texto no quarto parágrafo. “No
entanto, curiosamente, você pode fuçar o PubMed, dar um Google Acadêmico,
folhear livros de neurociências e quase não encontrará estudo científico a seu
respeito.”.
04 – Há outra fonte citada
pela jornalista que pode ser considerada confiável na busca de informação?
Explique.
Sim, de acordo
com as citações do especialista Ricardo Monezi, doutor em psicobiologia e
professor de uma universidade renomada, ele representa a voz de uma autoridade
no assunto abordado e traz confiabilidade ao texto.
05 – Por que podemos afirmar
que a experiência profissional da jornalista a qualifica para escrever sobre o
assunto tratado no texto?
Pelas informações sobre a responsável
pelo blogue, dando ênfase à área de interesse e às experiências profissionais,
como a edição de livros. Pelos dados, percebe-se que ela se especializou na
área de divulgação científica, o que a qualifica para produzir textos dessa
natureza.
06 – Em certa passagem de
texto, a autora afirma: “Ao olhar a sua imagem, parece até um pequeno anzol
no meio da massa cinzenta, apontando para a testa. Tem um nome esquisito:
córtex cingulado anterior. E não faz distinção entre sofrimentos do corpo e da
alma. Para ele, dor é dor e ponto”. Responda no caderno.
a) Considerando o contexto e seus conhecimentos, o que a jornalista chama de massa cinzenta? Como você chegou a essa resposta?
Resposta pessoal do aluno.
b) No texto, a autora sinaliza com negrito o nome de uma estrutura cerebral, “córtex cingulado anterior”. Explique o que você entende pelo emprego desse recurso tipográfico.
Resposta pessoal do aluno.
c) Além da marca tipográfica, a autora personifica o córtex cingulado anterior. Explique como ela constrói essa figura de linguagem no trecho.
Resposta pessoal do aluno.
d) Você deve ter-se apoiado em conhecimentos prévios de uma área da ciência para responder aos itens anteriores. Que área é essa?
Resposta pessoal do aluno.
e) Em sua opinião, qual seria o leitor suposto capaz de entender as informações do texto? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.
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