Crônica: Quando eu não sei onde guardei um papel...
Clarice Lispector
Quando não sei onde guardei um papel
importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse
um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas
muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a
procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se
você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um
constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente
locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas
que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida.
Acho que se eu fosse realmente eu, os
amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado.
Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu
fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu
terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu, e confiaria
o futuro ao futuro.
"Se eu fosse eu" parece
representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no
desconhecido.
No entanto tenho a intuição de que,
passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a
experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo.
E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes
tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não,
acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também
senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.
Clarice
Lispector A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é o dilema central
explorado na crônica de Clarice Lispector?
O dilema central
na crônica é a reflexão sobre como seria a vida e as ações da autora se ela
fosse verdadeiramente ela mesma, sem as influências e convenções sociais que
moldam seu comportamento.
02 – Qual é o efeito da frase
"se eu fosse eu" na busca pelo papel importante?
A frase "se
eu fosse eu" causa um constrangimento e uma pausa na busca pelo papel,
levando a autora a pensar e sentir mais profundamente sobre sua identidade e
como suas ações seriam diferentes se ela fosse mais autêntica.
03 – Por que a autora menciona
que algumas pessoas, ao se tornarem verdadeiramente elas mesmas, mudam
completamente de vida?
A autora menciona
isso para enfatizar como a autenticidade pode levar a mudanças significativas
na vida de alguém, destacando o poder da autenticidade na transformação
pessoal.
04 – Como a autora acredita
que as pessoas reagiriam se ela fosse verdadeiramente ela mesma?
A autora sugere
que, se ela fosse verdadeiramente ela mesma, as pessoas não a reconheceriam na
rua, possivelmente devido a mudanças em sua fisionomia ou comportamento.
05 – Que sentimentos a autora
acredita que experimentaria se fosse verdadeiramente ela mesma?
A autora acredita
que experimentaria tanto a dor do mundo, que ela aprendeu a não sentir, quanto
momentos de êxtase e alegria pura e legítima.
06 – Por que a autora afirma
que "se eu fosse eu" representa o maior perigo de viver?
A autora sugere
que a ideia de ser verdadeiramente ela mesma representa um perigo porque
significaria entrar no desconhecido e desafiar as convenções sociais que moldam
a vida das pessoas.
07 – Como a autora prevê que a
experiência de ser verdadeiramente ela mesma afetaria sua relação com o mundo?
A autora prevê
que, após as primeiras "loucuras" iniciais, a experiência de ser
verdadeiramente ela mesma levaria a uma compreensão mais profunda do mundo,
permitindo-lhe sentir tanto a dor do mundo quanto alegria pura e legítima.
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