CRÔNICA: DA ARTE DE COMER MELÂNCIA
Flávio José Cardozo
Meu pai, sim, era um artista na arte
de se comer melancia.
O requinte dele já começava na compra,
em que fazia todo um investimento de
boa paciência. Aproximava-se da carroça, avaliava o
conjunto, rolava umas e outras, depois de algum tempo é que elegia a
que mais o impressionou. Para já levar? Não, claro que não.
Para examinar, com cuidado. Eram,
se bem me lembro, uns três testes. Primeiro, o dos piparotes. Com o
indicador, ele dava na
barriga da melancia
alguns piparotes que produziam um som que lhe traduzia, aos seus ouvidos experimentados, o grau de madureza a
que a fruta havia chegado. Depois, agarrava-a entre as mãos, elevava-a à altura
do ouvido e aplicava-lhe um
forte aperto: o
estalo resultante reforçava o
diagnóstico dos piparotes. Por fim,
determinava ao vendedor que
abrisse na melancia
uma janelinha. O homem trazia na
ponta da faca
uma fração de
rubra polpa, que meu
pai olhava com astúcia. Só então é que os dois falavam em preço. Se a
parte comercial chegasse a bom termo, tínhamos melancia.
Mas a melancia não entrava logo na
faca. Era do ritual deixá-la se
refrescando um pouco num tanque d’água (não havia geladeira), para perder os
calores acumulados na viagem
da carroça. Até que, por fim, chegava o momento.
O modo de meu
pai partir a
melancia era, penso
eu, o mais lógico e usual entre as pessoas de sentimento e bom senso.
Só que
ele fazia tudo
com muita compenetração, como se estivesse desmanchando
um relógio de
ouro. Deitava a fruta,
cortava-lhe uma ponta, cortava outra e, com precisão máxima, rasgava-a em
talhadas regulares, iguais
entre si em
largura e profundidade. Arrematava
a cirurgia com
um soquinho que afrouxava as
talhadas, a primeira
das quais entregava,
gentil, a Dona Isaura. Depois é
que autorizava o nosso ataque.
E sabíamos bem: ninguém
podia tocar no
miolo, o miolo
ficava para o fim.
Não
entendo como é que
alguém pode partir
uma melancia sem dar tal ênfase ao miolo. De barriga já
fazendo bico, íamos sempre ao miolo como ao momento central da festa.
A melancia, senhores, é uma fruta
frívola, mais água que substância. Muito
dos prazeres dela está mesmo é no visual e foi muito bom ter aprendido a comê-la também com os
olhos. Sinceramente, fico até
triste quando vejo
por aí certas barbaridades.
Flávio José Cardozo
ENTENDENDO A CRÔNICA
1) Na crônica, como o autor descreve a forma do pai cortar a fruta?
Descreve-o como um artista na arte de
se comer melancia.
2) Qual é o assunto da crônica?
O
assunto da crônica é o ritual que envolve a degustação da melancia.
3) É através do modo como um pai prepara o alimento para o seu filho que podemos observar o laço de carinho e afeto entre os dois seres. Justifique com um trecho da crônica.
“Não
entendo como é que
alguém pode partir
uma melancia sem dar tal ênfase ao miolo. De barriga já
fazendo bico, íamos sempre ao miolo como ao momento central da festa.”
4) Que tipo de linguagem predomina no texto?
A
linguagem predominante é a formal, o que pode ser observado pela ausência de
gírias e expressões da oralidade.
5) A crônica é descritiva, por quê?
Porque
a crônica descreve o ritual praticado por uma família para saborear uma
melancia, desde a apreciação e análise do produto, passando pela negociação
para a compra e o acondicionamento até chegar à degustação da fruta.
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