quinta-feira, 22 de abril de 2021

CRÔNICA: DA ARTE DE COMER MELÂNCIA - FLÁVIO JOSÉ CARDOZO - COM GABARITO

 CRÔNICA: DA ARTE DE COMER MELÂNCIA

                                   Flávio José Cardozo

      Fico chocado quando vejo alguém comer melancia de qualquer jeito.  Ainda ontem presenciei esta desgraça:  o sujeito colocou a pobre fruta de pé, deu-lhe um talho de alto a baixo, pegou as duas metades e partiu-as também ao meio, deixando na mesa, numa poça d’água, um triste conjunto de quatro pedaços que foram sendo grosseiramente escavados.  Nada da poesia que o evento pede. Uma coisa feia, mal-acabada.

           Meu pai, sim, era um artista na arte de se comer melancia.

O requinte dele já começava na compra, em que fazia todo um  investimento  de  boa  paciência.  Aproximava-se da carroça, avaliava o conjunto, rolava umas e outras, depois de algum tempo é que  elegia a  que  mais  o impressionou.  Para já levar?  Não, claro que  não.  Para examinar, com cuidado.  Eram, se bem me lembro, uns três testes. Primeiro, o dos piparotes. Com   o   indicador, ele   dava   na   barriga   da   melancia   alguns piparotes que produziam um som que lhe traduzia, aos seus  ouvidos experimentados, o grau de madureza a que a fruta havia chegado. Depois, agarrava-a entre as mãos, elevava-a à altura do ouvido   e   aplicava-lhe   um   forte   aperto:   o   estalo   resultante reforçava o diagnóstico dos piparotes.  Por fim, determinava ao  vendedor  que  abrisse  na  melancia  uma  janelinha.  O homem trazia  na  ponta  da  faca  uma  fração  de  rubra  polpa, que  meu  pai olhava com astúcia. Só então é que os dois falavam em preço. Se a parte comercial chegasse a bom termo, tínhamos melancia.

          Mas a melancia não entrava logo na faca.  Era do ritual deixá-la se refrescando um pouco num tanque d’água (não havia geladeira), para perder os calores acumulados  na  viagem  da carroça. Até que, por fim, chegava o momento.

          O modo de  meu  pai  partir  a  melancia  era,  penso  eu, o mais lógico e usual entre as pessoas de sentimento e bom senso. Só   que   ele   fazia   tudo   com   muita  compenetração,   como se estivesse  desmanchando  um  relógio  de  ouro.  Deitava a fruta, cortava-lhe uma ponta, cortava outra e, com precisão máxima, rasgava-a em talhadas  regulares,  iguais  entre  si  em  largura  e profundidade.   Arrematava   a   cirurgia   com   um   soquinho    que afrouxava  as  talhadas,  a  primeira  das  quais  entregava,  gentil,  a Dona Isaura. Depois é que autorizava o nosso ataque.

E sabíamos bem:  ninguém  podia  tocar  no  miolo,  o  miolo  ficava  para  o  fim.

Não  entendo  como  é que  alguém  pode  partir  uma  melancia  sem dar tal ênfase ao miolo. De barriga já fazendo bico, íamos sempre ao miolo como ao momento central da festa.

           A melancia, senhores, é uma fruta frívola, mais água   que substância. Muito dos prazeres dela está mesmo é no visual e foi muito   bom ter aprendido a comê-la também com os olhos.          Sinceramente, fico    até    triste    quando    vejo    por        certas barbaridades.

Flávio José Cardozo

 (Do livro Beco da lamparina, Florianópolis, Diário Catarinense / Lunardelli, 1987)                       

ENTENDENDO A CRÔNICA

1)   Na crônica, como o autor descreve a forma do pai cortar a fruta?

         Descreve-o como um artista na arte de se comer melancia.

2)   Qual é o assunto da crônica?

O assunto da crônica é o ritual que envolve a degustação da melancia.

3)   É através do modo como um pai prepara o alimento para o seu filho que podemos observar o laço de carinho e afeto entre os dois seres. Justifique com um trecho da crônica.

         Não  entendo  como  é que  alguém  pode  partir  uma  melancia  sem dar tal ênfase ao miolo. De barriga já fazendo bico, íamos sempre ao miolo como ao momento central da festa.”

4)   Que tipo de linguagem predomina no texto?

A linguagem predominante é a formal, o que pode ser observado pela ausência de gírias e expressões da oralidade.

5)   A crônica é descritiva, por quê?

Porque a crônica descreve o ritual praticado por uma família para saborear uma melancia, desde a apreciação e análise do produto, passando pela negociação para a compra e o acondicionamento até chegar à degustação da fruta.

 

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