Entrevista: TODOS OS DIAS PODEM SER
ÚTEIS
Esta é
uma ideia tentadora, defendida pelo empresário Ricardo Semler em seu último
livro
Em
1988 Ricardo Semler, sócio majoritário do grupo Semco, escreveu Virando a
Própria Mesa e entrou para o rol dos pensadores da administração moderna. Na
edição polêmica, ele narrava a experiência pessoal ao implantar uma forma
revolucionária de gerenciar a empresa e tornar os funcionários mais satisfeitos
e produtivos. 0 livro vendeu 1.1 milhão de cópias em todo o mundo e tornou-se
leitura obrigatória em diversas universidades. Hoje, com 42 anos, Semler é um
homem maduro e realizado. Publicou o livro, plantou árvores, tem um filho de 3
anos e transformou a empresa com receita de 4 milhões de dólares e 300
funcionários em uma com faturamento de 200 milhões de dólares e 3 000
funcionários. Com o sucesso empresarial veio um respeito e interesse maior pelas
ideias antes consideradas por muitos como juvenis e impraticáveis. Neste ano de
2002, Semler publicará outro livro, O Fim do Fim de Semana, com a tese de que
não é mais preciso haver a separação entre dias de trabalho e de lazer. Mais
uma bomba para chacoalhar os padrões tradicionais. Bem ao gosto dele.
CLAUDIA
– Acabar com o fim de semana significa levar trabalho para casa?
SEMLER
– Sim, e também ir ao cinema ou almoçar com os filhos. A fórmula com fim de
semana e dias úteis em compartimentos estanques é obsoleta. Com a comunicação
via e-mail, internet e celular, pode-se trabalhar em qualquer lugar e a
qualquer hora. Dá muito bem para sair de casa no horário de menos trânsito,
pegar o filho na escola, trabalhar muito no domingo chuvoso e surfar na segunda
ensolarada.
CLAUDIA
– Como isso se daria?
SEMLER
– Com os empregadores exercendo menos controle. A produtividade não tem mais
nada a ver com horas trabalhadas. Um cara pode ficar no escritório e não fazer
nada de bom porque só pensa em algo pessoal a resolver e não se concentra.
Outro chega e fecha uma grande venda. Ganhou o dia, pode ir embora.
CLAUDIA
– A separação em dias com e sem trabalho não é mais prática, até para se
descansar melhor?
SEMLER
– É apenas uma fórmula que nunca foi questionada. Trabalhar como louco e depois
cair de cansaço é um condicionamento católico, protestante, vem da Igreja. A
agenda do fim de semana fica muito lotada: compras, almoço com a sogra, cinema,
passeio com as crianças... Mas o contrário de trabalho não é lazer, é ócio.
Além disso, as pessoas já respondem aos e-mails no domino, mas não vão ao
cinema na segunda à tarde. Tem de haver uma contrapartida: dias menos ocupados
durante a semana.
CLAUDIA
– Trabalhando em casa, como você administra a rotina?
SEMLER
– Das 6 às 7 horas, respondo aos e-mails. Depois do café, faço uma lista de
tarefas importantes. Quando cumpro todas, termina o trabalho. Não ligo para a
empresa para saber se há mais coisas. Sempre haverá. Vou uma vez por semana à
Semco e aboli as secretárias há anos.
CLAUDIA
– Mas você é o dono. Os funcionários contam com tal facilidade?
SEMLER
– Sim. Há mais de 18 anos não temos horário de entrada e saída. Não sei quando
ou onde eles trabalham.
CLAUDIA
– Não existe nem um mínimo de horas a cumprir?
SEMLER
– Para quê? Se tudo anda bem, não me importa se ele saiu com a mulher ou se ela
quis correr no parque. 0 funcionário pode trabalhar onde bem entender: em casa,
na praia ou na empesa. Nesse caso, tem que reservar por telefone um espaço que
chamamos de estação, com mesa, telefone, computador. Há muitas, e ninguém é
dono de nenhuma. Um dia fica-se do lado do presidente. No outro, do estagiário.
CLAUDIA
– O trabalho torna-se bem mais isolado dessa forma, não?
SEMLER
– Isolado é sentar a 2 metros de uma pessoa e se comunicar com ela por e-mail.
Se quiser se reunir, basta mandar e-mails uns para os outros ou ligar Tudo pode
ser enviado por fax, internet, motoboy. As pessoas se assustam com a ideia
porque pensam na empresa como o local ideal para exercitar a sociabilidade, mas
tem de acontecer fora de lá. Vai jogar xadrez, sair com os primos, fazer
cursos, achar sua tribo. Empresa não pode ser a grande família. Já viu família
se dar bem?
CLAUDIA
– Mas o controle pode ser feito checando quem faz mais reservas de espaço para
trabalhar? Não dá na mesma?
SEMLER
– Não, porque se pode chegar sem avisar, e usar o lugar que estiver vago. Ou
aparecer, mas não fazer nada. Em um dos escritórios temos até uma ala com redes
para tirar um cochilo. Não quero ninguém com biorritmo baixo. Se estiver
cansado, descanse e volte concentrado.
CLAUDIA
– Não existe o risco de todo mundo passar o dia na rede?
SEMLER
– Nesses anos todos nunca vi alguém fazer corpo mole. Quando existe espaço para
o funcionário administrar a própria agenda, ele se toma muito mais responsável
e aprende a administrar seu tempo. Se 80% da equipe está satisfeita, gosta do
que faz, sente-se motivada, pode ter certeza: a produtividade é boa e existe
lucro.
CLAUDIA
– Como vocês medem, na prática, a produtividade?
SEMLER
– A produtividade individual não me interessa. Mas há outras formas de ver como
anda a equipe. Temos muitos concorrentes, e um departamento de inteligência
empresarial puxa dados e faz comparações.
CLAUDIA
– Nesse caso vocês precisam contar com pessoas muito éticas e responsáveis. E
quem não tem esse perfil?
SEMLER
– Acaba sendo expurgado pela própria equipe quando é feita a avaliação e
montagem do orçamento. Como temos participação nos lucros' ninguém quer ficar
com um parasita no time. Da mesma forma, toda promoção ou contratação deve ter
a aprovação do grupo.
CLAUDIA
– Você atingiu na SEMCO os níveis de democracia que planejava?
SEMLER
– Imaginava que seria mais rápido. Chegamos a ter uma fábrica administrada em
sistema de cogestão, e 30% das pessoas determinavam o próprio salário. Com o
crescimento, vieram profissionais de fora e certas inovações não resistiram.
Decidimos não fazer lavagem cerebral em quem chegava. Até a liberdade, quando
imposta, dá problema.
CLAUDIA
– Por que o exemplo da Semco, que se mostrou eficiente já que a empresa
prosperou, não faz escola?
SEMLER
– Ele requer uma mudança estrutural longa e planejada. A maioria dos
empresários não se interessa por programas de longo prazo centrados no
indivíduo. Estão ocupados demais com o placar e o tamanho dos lucros.
CLAUDIA
– E você não está?
SEMLER
– Quero lucro, claro, mas ele não pode ser tudo. Dinheiro é um mecanismo de
escambo para trocar por coisas de que gostamos. Quem corre atrás dele o tempo
inteiro está querendo muito mais concorrer, vencer no jogo que ele mesmo criou.
Não está atrás de saldo na conta, pois nem sabe mais onde gastar.
CLAUDIA
– Você questionou a ânsia de chegar ao topo, de ser o maior. Ambição
profissional faz mal?
SEMLER
– Às vezes. Cada pessoa tem um certo reservatório de talento, como o de
oxigênio, usado pelo mergulhador. Esse dura cerca de uma hora. Quem é zen
respira até por uma hora e meia. Já os desesperados consomem o oxigênio em 30
minutos. Daí voltam para o barco e ficam lá, mareados, esperando os menos
aflitos voltarem satisfeitos do passeio.
CLAUDIA
– Os empresários da sua geração são mais conscientes comparados aos mais
antigos?
SEMLER
– Só superficialmente. Doam dinheiro e fazem esporte radical. Mas também
controlam e-mails dos funcionários.
CLAUDIA – Sua empresa não controla?
SEMLER
– De jeito nenhum. Estou desenvolvendo um software para coibir isso, porque
acho uma loucura o empresário poder ler tudo o que os funcionários mandam e
recebem. Acho imoral.
CLAUDIA
– Você concorda com as mudanças feitas na CLT?
SEMLER
– Não. A lei deveria ser mais moderna, mas infelizmente sua função paternalista
ainda é a mesma do tempo de Getúlio Vargas. O número de sacanagens boladas pelo
empresário ainda é superior às dos empregados.
CLAUDIA
– Por que é tão difícil mudar a mentalidade empresarial.
SEMLAR
– Porque o trabalho nunca foi pensado para ser gostoso. Henry Ford não se
preocupava com o empregado e ainda hoje essa questão não é tão fundamental
assim. Eu considero, um erro insistir em manter as empresas com os parâmetros
militares que sempre foram sua base. Tudo é alvo, estratégia, conquista. Ou é
razoável uma ocupação de fábrica, como a que ocorreu na Volkswagen, 30 anos
depois das greves no ABC? Só uma política de recursos humanos anacrônica gera
isso. Também é ruim para a empresa. A Volks possui o carro mais vendido do
país, mas caiu no ranking das montadoras.
CLAUDIA
– Qual seria a estratégia para dar início às mudanças?
SEMLER
– Tirar o condicionamento incrustado em empregadores e empregados. Temos que
encontrar um caminho mais inteligente dentro das regras capitalistas. O Bill
Gates tem a fortuna calcada no monopólio. Isso pesa, ele sente culpa. Então doa
parte do dinheiro que não vai gastar (porque é demais!) para a ONU. Ou seja:
depois de só visar lucros, o empresário quer ser uma miss, ler Paulo Coelho e
virar benfeitor. Por que não começa adotando bases éticas?
CLAUDIA
– A escola que a Fundação SEMCO vai inaugurar este ano tem a ver com isso?
SEMLER
– Sim, tudo a ver. As escolas públicas e as unidades da FEBEM são realmente
muito parecidas. Ambas têm arame farpado e seguram os jovens na marra. Já a
nossa escola foi pensada por educadores, sociólogos e filósofos. Terá
estratégias inovadoras para manter a criança interessada. Será bilíngue, com
metade das vagas para carentes; os demais pagarão de 10 a 900 reais mensais.
CLAUDIA
– Seu filho estudará nela?
SEMLER
– Claro, é a escola que sonho para ele.
CLAUDIA – A disparidade de nível sócio econômico
não trará problemas?
SEMLER
– Faz parte. Fomos criados em ilhas da fantasia e agora vivemos em condomínios
fechados, blindamos o carro e fugimos para Miami. Conviver com a verdade é um
ato de cidadania, cria condições para questionar este apartheid vexaminoso.
CLAUDIA
– A criança estará preparada para o vestibular, o trabalho, a vida?
SEMLER
– Muito mais que a que só aprendeu a passar de ano. Fiz a prova da FUVEST no
jornal e tirei 1. Valeu minha educação, não? Essa história de estudar Só para
se preparar para o mercado profissional é muito triste. Ele não é tão
gratificante assim. O trabalho virou algo profano. Andam escondendo sua magia.
SEMLER, Ricardo.
Todos os dias podem ser úteis. In: Cláudia, Abril, São Paulo, n. 484, p. 29-31,
jan. 2002. Entrevista concedida a Miriam Scavone.
Entendendo a entrevista:
01 – Quando se escolhe
alguém para ser entrevistado, considera-se, obviamente, o interesse que essa
pessoa ou suas ideias podem despertar no leitor. O que motivou essa entrevista?
Um livro recém-publicado na época da
entrevista e que contém ideias inovadoras sobre trabalho.
02 – Ricardo Semler defende
uma tese sobre trabalho e vai, al longo da entrevista, explicando e
argumentando a favor dela. Qual é essa tese? Aponte abaixo:
a)
O uso do e-mail e do celular para trabalhar.
b)
A não divisão em dias de trabalho e
dias sem trabalho.
c)
O lazer e o ócio com a família e os amigos.
d)
O trabalho em equipe.
e)
As estações de trabalho com sistema de
reservas.
03 – Quais perguntas
referem-se a essa tese?
As dez primeiras
perguntas.
04 – Observe que a
entrevista levanta os princípios empecilhos, problemas que podem inviabilizar a
tese proposta de Semler. As perguntas feitas, então, poderiam constituir
argumentos contrários à tese de Ricardo Semler. Com base nas perguntas feitas,
escreva quais poderiam ser esses argumentos contrários e indique, ao lado, a
refutação feita por Semler.
Leia e continue no seu
caderno:
ARGUMENTO
CONTRÁRIO:
1 – Acabar com o fim de
semana significa levar trabalho para casa.
2 – A separação em dias com
trabalho e sem trabalho é mais prática até para descansar melhor.
3 – Ele, por ser o dono da
empresa, pode se dar ao luxo de fazer isso. Os funcionários não podem.
4 – Sem um mínimo de horas a
cumprir, o trabalho torna-se bem mais isolado.
5 – Sem controle de horas
trabalhadas, existe o risco de todo mundo passar o dia na rede.
6 – É preciso contar com
pessoas muito éticas e responsáveis, o que não constitui o perfil de todos.
REFUTAÇÃO
DE SEMLER:
1 – Sim.
Mas isso não significa trabalhar mais, pois pode-se aproveitar uma
segunda-feira, por exemplo, para não trabalhar.
2 – Não
necessariamente, trata-se de um condicionamento religioso contestável.
3 – Os
funcionários também contam com tal facilidade. Não existe nem um mínimo de
horas a cumprir.
4 – A
empresa não é local pra sociabilidade. Isso deve acontecer fora de lá.
5 – Não,
porque quando existe espaço para o funcionário administrar sua agenda, ele se
torna muito mais responsável e aprende a administrar seu tempo.
6 – Isso
não é um problema porque as próprias equipes acabam expurgando quem não possui
esse perfil.
05 – A partir da 11ª
pergunta, a entrevista passa a abordar outros assuntos. Anote quais perguntas
da entrevistadora correspondem aos assuntos abaixo relacionados.
a)
A política empresarial atual em comparação
com a política empresarial da Semco.
As perguntas 11 a 17.
b)
As mudanças empresarias: dificuldades e
estratégias.
As perguntas 18 – 19.
c)
A escola que está sendo inaugurada pela
Semco.
As três últimas perguntas.
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