sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

TEXTO: MANIFESTO PAU-BRASIL/ESCAPULÁRIO/VÍCIO NA FALA/O CAPOEIRA - OSWALD DE ANDRADE - COM GABARITO

Texto: Manifesto Pau-Brasil

                        Oswald de Andrade

        "A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
        O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
        Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.
        O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
        A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
        Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
        A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha.
        A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
        Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
        Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.
        A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
        Uma sugestão de Blaise Cendrars: – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
        Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das ideias.
        A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
        Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.
        Uma única luta - a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
        Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado - o artista fotógrafo.
        Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski.
        A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
        Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
        Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1º) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 2º) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.
        O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.
        Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
        A síntese
        O equilíbrio
        O acabamento de carrosserie
        A invenção
        A surpresa
        Uma nova perspectiva
        Uma nova escala.
        Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil.
        O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
        Uma nova perspectiva.
        A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ética. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
        Uma nova escala:
        A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
        A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de ideias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.
        Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
        Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
        A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.
        Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
        Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê que o bicho vem pegá" e de equações.
        Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.
        Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.
        O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
        Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
        O estado de inocência substituindo o estada de graça que pode ser uma atitude do espírito.
        O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
        A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
        Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
        Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil."
                        OSWALD DE ANDRADE. In: Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
      Disponível em: http://www.lumiarte.com / luardeoutono/oswald/manifpaubr.html.
                                                              Acesso em 20 abril 2003.
Entendendo o texto:
01 – Qual é a finalidade de um texto como esse?
      Apresentar e justificar uma nova proposta estética e literária.

02 – A quem parece ser dirigido?
      Ao público em geral, especialmente, àqueles interessados em arte e em poesia.

03 – Releia s seguintes enunciados. Qual é a finalidade deles para o propósito do texto?
·        “Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.”
·        “O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.”
·        “Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho...”
      Negar o que estava sendo feito então, através de crítica ao movimento parnasiano na poesia e o Naturalismo, na prosa.

04 – Explique com suas palavras a seguinte declaração do Manifesto: “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.”
      É interessante levar o aluno a compreender que a produção modernista, tal como estava sendo proposta, não poderia ser analisada sob a luz dos acadêmicos de então.

05 – Observe que o Manifesto, de forma metalinguística, apresenta aquilo que prega. Cite e comente trechos do Manifesto que se utilizam da metalinguagem.
      Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo dirigido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem “ontologia”. Nesse trecho, o poeta manifesta, por meio de metalinguagem, economia e experimentalismo linguísticos, rompendo com a tradição da norma culta portuguesa da época, que prescrevia a sintaxe corrente e condenava as frases truncadas, a linguagem telegráfica, a falta de conjunções e preposições.

06 – “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.”
a)   O que se defende nesse trecho?
Uma língua brasileira, não condicionada ao padrão europeu.

b)   Faça um exercício: transforme esse trecho em um parágrafo mais corrente, adequado à sintaxe tradicional, empregando preposições, conjunções e verbos.
É preciso que a nossa língua esteja desprovida de arcaísmos, que seja empregada sem erudição, de forma natural e neológica. Todos os erros que cometemos são contribuições milionárias para a formação de um língua própria, que deve estar de acordo com o que falamos e com o que somos.

c)   Qual das formas é mais adequada para expressar o protesto do poeta?
A primeira. A forma que se distancia da sintaxe tradicional.

07 – A ironia e o deboche podem ser considerados recursos persuasivos, pois inibem os contra-argumentos de caráter lógico. Cite um trecho irônico e um satírico do “Manifesto Pau-Brasil”.
      “Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente.” “As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.”

08 – Compare as ideias contidas no “Manifesto Pau-Brasil” com os seguintes poemas, retirados do livro Poesia Pau-Brasil, publicado em 1925.

ESCAPULÁRIO

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia.

      ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. 5. ed. São Paulo: Globo, 1991, p. 53.

a)   A que outro texto remete o poema?
À oração católica “Pai Nosso”.

b)   A primeira frase do Manifesto é “A poesia está nos fatos”. Relacione essa frase com o poema “Eucapulário”.
A poesia, para os modernistas da primeira geração, era visto como algo cotidiano, como o pão.

VÍCIO NA FALA

Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior dizem pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados.

      ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. 5. ed. São Paulo: Globo, 1991, p. 80.

a)   A ideia de uma língua brasileira foi uma das preocupações de Oswald de Andrade. Como se manifesta nesse poema?
Os “telhados”, os textos, são construídos pelo povo, pela língua cotidiana.

b)   O que seria, metaforicamente, os “telhados” mencionados no último verso?
Pode ser uma referência aos textos, a tudo aquilo que se constrói, que se edifica.

O CAPOEIRA

- Qué apanhá sordado?
- O quê?
- Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada.

       ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. 5. ed. São Paulo: Globo, 1991, p. 87.

a)   Compare o poema com tomadas de uma câmara cinematográfica. O que há de semelhante?
A simultaneidade de imagens.

b)   Que outra característica própria da primeira geração modernista pode ser observada nesse poema?
A incorporação da linguagem popular.





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