terça-feira, 18 de abril de 2017

SENHORA - JOSÉ DE ALENCAR - (FRAGMENTO) -COM GABARITO

TEXTO LITERÁRIO:  SENHORA
                            José de Alencar

         Quem observasse Aurélia naquele momento, não deixaria de notar a nova fisionomia que tomara seu belo semblante e que influía em toda a sua pessoa.
         Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência. Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem. [...]
         Era realmente para causar pasmo aos estranhos e susto a um tutor, a perspicácia com que essa moça [...] apreciava as questões mais complicadas; o perfeito conhecimento que mostrava dos negócios, e a facilidade com que fazia, muitas vezes de memória, qualquer operação aritmética por muito difícil e intrincada que fosse. [...]
         --- Tomei a liberdade de incomodá-lo, meu tio, para falar-lhe de objeto muito importante para mim.
         --- Ah! Muito importante? ... repetiu o velho batendo a cabeça.
         --- De meu casamento! disse Aurélia com a maior frieza e serenidade.
         O velhinho saltou na cadeira como um balão elástico. Para disfarçar sua comoção esfregou suas mãos rapidamente uma na outra, gesto que indicava nele grande agitação.
         --- Não acha que já estou em idade de pensar nisso? Perguntou a moça.
         --- Certamente! dezoito anos...
         --- Dezenove.
         --- Dezenove! Cuidei que ainda não os tinha feito! ... Muitos casam-se nesta idade, e até mais moças; porém é quando têm o paizinho ou a mãezinha para escolher um bom noivo e arredar certos espertalhões. Uma menina órfã, inexperiente, eu não lhe aconselharia que se casasse senão depois da maioridade, quando conhecesse bem o mundo.
         --- Já o conhece demais, tornou a moça com o mesmo tom sério.
         --- Então está decidida?
         --- Tão decidida que lhe pedi esta conferência.
         --- Já sei! Deseja que eu aponte alguém. Que eu lhe procure um noivo nas condições precisas... Ham! ...É difícil... um sujeito no caso de pretender uma moça como você, Aurélia? Enfim há de se fazer a diligência!
         --- Não precisa, meu tio. Já o achei!
         --- Como? ... Tem alguém de olho?
         --- Perdão, meu tio, não entendo sua linguagem figurada. Digo-lhe que escolhi o homem com quem me hei de casar.
         --- Já compreendo. Mas bem vê! ... Como tutor, tenho de dar a minha aprovação.
         --- Decerto, meu tutor; mas essa aprovação o senhor não há de ser tão cruel que a negue. Se o fizer, o que eu não espero, o juiz de órfãos a suprirá.
         [...]
         --- O nome? Perguntou o velho molhando a pena. Aurélia fez um aceno de espera.
         --- Esse moço chegou ontem [...]. O senhor deve procura-lo quanto antes...
         --- Hoje mesmo.
         --- E fazer-lhe sua proposta. Estes arranjos são muito comuns no Rio de Janeiro.
         --- Estão-se fazendo todos os dias.
         --- O senhor sabe melhor do que eu como se aviam estas encomendas de noivos.
         --- Ora, ora!
         --- Previno-o de que meu nome não deve figurar em tudo isto.
         --- Ah! Quer conservar o incógnito.
         --- Até o momento da apresentação. Entretanto pode dizer quanto baste para que não suponham que se trata de alguma velha ou aleijada.
         --- Percebo! Exclamou o velho rindo. Um casamento romântico.
         --- Não, senhor, nada de exagerações. Só tem licença para afirmar que a noiva não é velha nem feia.
         --- Quer preparar a surpresa.
         --- Talvez. Os termos da proposta... [...]
         --- Os termos da proposta devem ser estes; atenda bem. A família de tal moça misteriosa deseja casá-la com separação de bens, dando ao noivo a quantia de cem contos de réis de dote. Se não bastarem cem e ele exigir mais, será o dote de duzentos...
         --- Hão de bastar. Não tenha dúvida.
         --- Em todo o caso quero que o senhor compreenda bem o meu pensamento. Desejo como é natural obter o que pretendo, o mais barato possível; mas o essencial é obter, e portanto até metade do que possuo, não faço questão de preço. É a minha felicidade que vou comprar.
         Estas últimas palavras, a moça proferiu-as com uma indefinível expressão.

                         ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1999, p. 29-33.

1 – Releia o trecho:
                   Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem.
a)     De acordo com o trecho, Aurélia rompe com uma visão tradicional da mulher. Que visão seria essa?
A visão de que mulher não pensa, sente. É importante observar a relação entre a mulher e o sentimento (coração), e o homem e a inteligência (cérebro).

b)    A visão da mulher citada no item anterior é bastante romântica. O que você pensa sobre essa visão da mulher? Você concorda com ela? Pense em argumentos que possam sustentar sua opinião e registre-os em seu caderno.
Resposta pessoal.

c)     Forme um pequeno grupo e exponha para seus colegas sua opinião e os argumentos que a sustentam. Em seguida, ouça a opinião e os argumentos deles. Todos tem a mesma opinião? Se não, que tal organizar um pequeno debate? Se achar necessário, selecione mais argumentos que possam fortalecer a defesa de sua ideias.
Espera-se que a turma organize um debate sobre o tema, considerando a época em que o romance foi escrito.

2 – Aurélia causa espanto por apresentar algumas características não esperadas para uma moça na época. Que características são essas? Justifique sua respostas.
       Aurélia é inteligente e perspicaz, pois entende de negócios e sabe aritmética. É também decidida e autônoma, uma vez que escolhe seu noivo. É interessante discutir o exemplo relativo à aritmética, que, atualmente, pode provocar risos; porém, não era essa a intensão do autor. É um momento propício para se discutir a relação entre contexto de produção da obra e o efeito no leitor de outra época.

3 – Por meio da conversa entre Aurélia e seu tutor, revela-se um costume da época:
       --- [...] Estes arranjos são muito comuns no Rio de Janeiro.
       --- Estão-se fazendo todos os dias.
a)     De que costume se trata?
O casamento arranjado.

b)    Destaque no texto trechos em que tal costume fica evidente.
Respostas possíveis: “[...] quando tem o paizinho ou a mãezinha para escolher um bom noivo”; “Deseja que eu aponte alguém. Que eu lhe procure um noivo nas condições precisas...”; “[...] dando ao noivo a quantia de cem contos de réis de dote”.

c)     De acordo com o texto, como se dá, na prática, esse costume?
Não são os próprios noivos que escolhem seus futuros cônjuges. É oferecida certa quantia (dote) ao pretendente (noivo) para firmar o contrato de casamento.



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