sexta-feira, 28 de abril de 2017

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS - MACHADO DE ASSIS - (FRAGMENTO) COM GABARITO

 MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

        Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a “linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um hortelão das Astúrias; disse-mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a opinião aceita é que nascera de um letrado de Madrid, vítima da invasão francesa, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ela tinha apenas doze anos. Cosas de Espanã. Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, --- uma pérola.
        Vi-a, pela primeira vez, no Rossio Grande, na noite das luminárias, logo que constou a declaração da independência, uma festa de primavera, um amanhecer da alma pública. Éramos dois rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com todos os arrebatamentos da juventude. Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara nas mulheres puras. --- Segue-me, disse ela ao pajem. E eu segui-a, tão pajem como o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe “linda Marcela”; lembrou-me que ouvira tal nome a meu tio João, e fiquei, confesso que fiquei tonto.
        Três dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma ceia de moças, nos cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela. O Xavier, com todos os seus tubérculos, presidia ao banquete noturno, em que eu pouco ou nada comi, porque só tinha olhos para a dona da casa. Que gentil que estava a espanhola! Havia mais uma meia dúzia de mulheres, --- todas de partido, --- e bonitas, cheias de graça, mas a espanhola... O entusiasmo, alguns goles de vinho, o gênio imperioso, estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa única; à saída, à porta da rua, disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.
        --- Esqueceu alguma coisa? perguntou Marcela de pé no patamar.
        --- O lenço.
        Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos, puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. Não sei se ela disse alguma coisa, se gritou, se chamou alguém; não sei nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como um tufão, e incerto como um ébrio.

                MACHADO DE ASSIS. Memórias de Brás Cubas. In: obra completa.
1.     v. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1985. p. 532-4. 3v.

1 – Transcreva do primeiro parágrafo as frases e expressões que caracterizam Marcela e que opõem às personagens femininas tipicamente românticas.
        Não possuía a inocência rústica; mal chegara a entender a moral do código; sem escrúpulos; luxuosa; impaciente, amiga do dinheiro e dos rapazes.

2 – Releia o segundo parágrafo. Na caracterização de Marcela o narrador enfatiza a descrição física ou psicológica?
        Descrição física.

3 – A expressão “morrer de amor” (linha 25) é ocorrência muito comum no Romantismo. Nesse texto, ela aparece utilizada em sentido irônico. Copie da linha 24 a expressão responsável por esse efeito irônico.
        “Naquele ano...”

4 – No fim do terceiro parágrafo, o narrador personagem justifica sua atitude (voltar e beijar Marcela), atribuindo-a a três fatores. Quais?
        O entusiasmo, alguns goles de vinho e o gênio imperioso e estouvado.

(FUVEST-SP) As questões 5, 6, 7 e 8 referem-se ao trecho seguinte:
"Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: a diferença radical entre este livro e o Pentateuco."
(Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas).
5. (FUVEST-SP) o autor afirma que:
  1. vai começar suas memórias pela narração de seu nascimento.
  2. vai adotar uma seqüência narrativa invulgar.
  3. que o levou a escrever suas memórias foram duas considerações sobre a vida e a morte.
  4. vai começar suas memórias pela narração de sua morte.
  5. vai adotar a mesma seqüência narrativa utilizada por Moisés.
6. (FUVEST-SP) Definindo-se como um "defunto autor", o narrador:
  1. pôde descrever sua própria morte.
  2. escreveu suas memórias antes de morrer.
  3. ressuscitou na sua obra após a morte.
  4. obteve em vida o reconhecimento de sua obra.
  5. descreveu a morte após o nascimento.
7. (FUVEST-SP) Segundo o narrador, Moisés contou sua morte no:
  1. promontório.
  2. meio do livro.
  3. fim do livro.
  4. intróito.
  5. começo da missa.
8. (FUVEST-SP) O tom predominante no texto é de:
  1. luto e tristeza.
  2. humor e ironia.
  3. pessimismo e resignação.
  4. mágoa e hesitação
  5. surpresa e nostalgia.
9. (E.E. Mauá-SP) Sobre o romance Memórias póstumas de Brás Cubas, não é correto afirmar que:
  1. é uma obra inovadora do processo narrativo, que introduz o Realismo no Brasil.
  2. Brás Cubas atua como defunto-narrador, capaz de alterar a seqüência do tempo cronológico.
  3. memorialismo exacerbado acaba por conferir à obra um caráter de crônica.
  4. constitui um romance de crítica ao Romantismo, deixando entrever muita ironia em vários momentos da narrativa.
  5. revela crítica intensa aos valores da sociedade e ao próprio público leitor da época.
10. (UFRGS)
"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria"
O texto acima é:
  1. final do testamento de Quincas Borba, que faz de Rubião seu herdeiro, sob a condição de que cuide de seu cachorro.
  2. um comentário de Bentinho, o protagonista de Dom Casmurro, cujo temperamento azedo e melancólico lhe valeu o apelido.
  3. a conclusão pessimista do Dr. Bacamarte, ao final do conto O Alienista, após dedicar sua vida ao estudo da "patologia cerebral".
  4. desabafo do "defunto-autor" das Memórias Póstumas de Brás Cubas, ao final da narrativa.
  5. a reflexão do Conselheiro Aires ao encerrar a narrativa do drama de Flora, em Esaú e Jacó.

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