LITERATURA - ANA TERRA - COM GABARITO
[...]
Mal raiou o
dia, Ana ouviu um longo mugido. Teve um estremecimento, voltou a cabeça para
todos os lados, procurando, e finalmente avistou uma das vacas leiteiras da
estância, que subia a coxilha na direção do rancho. A Mimosa! – reconheceu.
Correu ao encontro da vaca, enlaçou-lhe o pescoço com os braços, ficou por
algum tempo a sentir o rosto o calor bom do animal e a acariciar lhe o pelo do
pescoço. Leite pras crianças – pensou. O dia afinal de contas começava bem.
Apanhou do meio dos destroços do rancho um balde amassado, acocorou-se ao pé da
vaca e começou a ordenha-la. E assim, quando Eulália, Pedrinho e Rosa
acordaram, Ana pôde oferecer a cada um deles um caneco de leite.
- Sabe quem
voltou, meu filho? A Mimosa.
O menino olhou
para o animal com olhos alegres.
- Fugiu dos
bandidos! – exclamou ele.
Bebeu o leite
morno, aproximou-se da vaca e passou-lhe a mão pelo lombo, dizendo:
- Mimosa
velha... Mimosa valente...
O animal parecia olhar com seus olhos
remelentos e tristonhos para as sepulturas. Pedro então perguntou:
- E as cruzes,
mãe?
- é verdade.
Precisamos fazer umas cruzes.
Com pedaços de
taquara amarrados com cipós, mãe e filho fizeram quatro cruzes, que cravaram
nas quatro sepulturas. Enquanto faziam isso, Eulália, que desde o despertar não
dissera uma única palavra, continuava sentada no chão a embalar a filha nos
braços, os olhos voltados fixamente para as bandas do Rio Pardo.
No momento em
que cravara a última cruz, Ana teve uma dúvida que a deixou apreensiva. Só
agora lhe ocorria que não tinha escutado o coração dum dos escravos. O mais
magro deles estava com a cabeça decepada – isso ela não podia esquecer...
Mas e o outro? Ela estava tão cansada, tão
tonta e confusa que nem tivera a ideia de verificar se o pobre do negro estava
morto ou não. Tinham empurrado o corpo para dentro da cova e atirado terra em
cima... Ana olhava, sombria, para as sepulturas.
Fosse como fosse, agora era tarde
demais. “Deus me perdoe” – murmurou ela. E não se preocupou mais com aquilo,
pois tinha muitas coisas em que pensar.
Começou a
catar em meio dos destroços do rancho as coisas que os castelhanos haviam deixado
intatas: a roca, o crucifixo, a tesoura grande
de podar – que servira para cortar o umbigo de Pedrinho e de Rosa -, algumas
roupas e dois pratos de pedra.
Amontoou tudo
isso e mais o cofre em cima dum cobertor e fez uma trouxa.
Naquele dia
alimentaram-se de pêssegos e dos lambaris que Pedrinho pescou no poço. E mais
uma noite desceu – clara, morna, pontilhada de vaga-lumes e dos gemidos dos urutaus.
Pela
madrugada Ana acordou e ouviu o choro da cunhada. Aproximou-se dela e tocou-lhe
o ombro com a ponta dos dedos.
- Não há de
ser nada, Eulália...
Parada junto
de Pedro e Rosa, como um vaga-lume pousado a luciluzir entre os chifres, a vaca
parecia velar o sono das crianças, como um anjo da guarda.
- Que vai ser
de nós agora? – choramingou Eulália.
- Vamos
embora daqui.
- mas pra
onde?
- Pra
qualquer lugar. O mundo é grande.
Ana sentia-se
animada, com vontade de viver, por piores que fossem as coisas que estavam por
vir, não podiam ser tão horríveis como as que já tinha sofrido. Esse pensamento
dava-lhe uma grande coragem. E ali, deitada no chão a olhar para as estrelas,
ela se sentia agora tomada por uma resignação que chegava quase a ser
indiferença. Tinha dentro de si uma espécie de vazio: sabia que nunca mais
teria vontade de rir nem de chorar. Queria viver, isso queria, e em grande
parte por causa de Pedrinho, que afinal de contas não tinha pedido a ninguém
para vir ao mundo. Mas queria viver também de raiva, de birra. A sorte andava
sempre virada contra ela. Pois Ana estava agora decidida a contrariar o
destino. Ficara louca de pesar no dia em que deixara Sorocaba para vir morar no
Continente.
Vezes sem
conta tinha chorado de tristeza e de saudade naqueles cafundós. Vivia com medo
no coração, sem nenhuma esperança de dias melhores, sem a menor alegria,
trabalhando como uma negra, e passando frio e desconforto... Tudo isso por quê?
Porque era a sua sina. Mas uma pessoa pode lutar contra a sorte que tem. Pode e
deve. E agora ela tinha enterrado o pai e o irmão e ali estava, sem casa, sem
amigos, sem ilusões, sem nada, mas teimando em viver. Sim, era pura teimosia.
Chamava-se Ana Terra. Tinha herdado do pai o gênio de mula.
VERISSIMO, Erico. O
Continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
1 – Em que ambiente vive Ana Terra?
Vive no
meio rural, em um rancho.
2 – O autor não descreve a indumentária da Ana Terra. Levando
em conta o contexto em que ela vive, como você imagina que seja a vestimenta
dessa personagem?
Resposta pessoal.
3 – O que podemos dizer a respeito da condição econômica da
personagem Ana na situação narrada no texto?
Que
ela estava desprovida dos bens materiais necessários para viver com conforto.
Estava sem casa, passando frio, vivendo de sobras deixadas pelos castelhanos e
trabalhando duramente.
4 – Releia o seguinte trecho:
[...] e
finalmente avistou uma das vacas leiteiras da estância, que subia a coxilha na
direção do rancho. A Mimosa! – reconheceu. Correu ao encontro da vaca,
enlaçou-lhe o pescoço com os braços, ficou por algum tempo a sentir contra o
rosto o calor bom do animal e a acariciar lhe o pelo do pescoço. Leite pras
crianças – pensou. O dia afinal de contas começava bem. [...].
- Sabe quem
voltou, meu filho? A Mimosa.
O menino olhou
para o animal com olhos alegres.
- Fugiu dos
bandidos! – exclamou ele.
Bebeu o leite
morno, aproximou-se da vaca e passou-lhe a mão pelo lombo, dizendo:
- Mimosa velha...
Mimosa valente...
O animal
parecia olhar com seus olhos remelentos e tristonhos para as sepulturas. [...].
a) Nesse trecho, a vaca representa o
alimento, o sustento dos filhos. O que mais a vaca representa para as
personagens?
Ela representa a resistência,
o afeto, a valentia de viver.
b) Apesar de narrar um dia que começava
bem, o trecho revela uma visão idealizada da vida de Ana Terra? Explique.
Não. O trecho revela as
condições reais de vida que ele enfrenta, passando necessidades e vivendo uma
situação difícil.
5 – Ana ficou sem casa, sem amigos, sem ilusões.
a) O que lhe restou e o que a levou a
resistir?
O que lhe restou foi a
vontade de viver, em grande parte, por causa de Pedrinho, mas também por conta
da raiva que se transformara em birra, teimosia, e porque Ana havia herdado do
pai o seu gênio de “mula”.
b) O que significa o trecho “sabia que
nunca mais teria vontade de rir nem de chorar”?
Uma espécie de indiferença
causada pelo sofrimento, pelas perdas, pela falta de esperança e alegria.
6 – Podemos considerar Ana Terra como uma mulher que decide
tomar as rédeas de seu destino?
Sim.
Ana Terra decide contrariar a sorte e a própria sina. Sabe que essa sua
obrigação e até pensa: “Pode e deve”. Graças a sua teimosia, sem ter ninguém
para apoiá-la, pois pai e irmão estavam enterrados, assim como os amigos,
decide enfrentar seu destino, afinal chamava-se Ana Terra, era filha de seu
pai, a quem o leitor pode atribuir uma personalidade também firme, obstinada.
Parabéns pelo conteúdo, sua forma de abordagem e interpretação do texto nos orienta para um entendimento mais profundo dos contos e histórias.
ResponderExcluirMe ajuda na pergunta c da 1
ResponderExcluirvaleu ai
ResponderExcluirMuito bom,me ajudou muito.😘
ResponderExcluirMuito obrigada pela ajuda❤
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