sábado, 1 de abril de 2017

CRÔNICA: AMANHECER NA CIDADE - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

CRÔNICA – AMANHECER NA CIDADE
                       Ignácio de Loyola Brandão


         Quem contempla o amanhecer nesta cidade? Nos últimos dias foi atordoante. O céu límpido clareia suavemente, sem uma nuvem. Os prédios parecem de papelão recortado, sem dimensão, reduzidos a um só plano como em quadro primitivo o sol explode tímido nas fachadas e laterais dos edifícios e a luz reflete-se estilhaçada de vidro para vidro. Essa função é a única justificativa que encontro para a arquitetura vitralesca que domina o modernismo. Não entendo caixotes de vidro fechados num país quente.
          Boêmios e os que se levantam cedo para o trabalho desfrutam o amanhecer. Sobrevivem ainda os boêmios poéticos que saindo de bares e boates caminhavam pela cidade a despertar, tomando um café forte – ou mais uma -, nos botecos e padarias? O que tenho visto, nas raras noites em que atravesso desperto, são jovens que saem das danceterias, mal olham para o dia, sobem nos carros e se arrancam em velocidade, pneus guinchando. Divertimentos mudam! Se não, estaríamos nas cavernas, ansiosos por um racha entre velociraptors.
          Os que trabalham e usam trens e ônibus não podem desfrutar o amanhecer, encontram-se sonolentos e o amanhecer para eles é familiar, significa o corte abrupto no sono e uma corrida para não perder a hora. Esperam raivosos pelas conduções atrasadas. Amontoam-se em veículos clandestinos (cada vez em maior número) apodrecidos, espremem-se em trens que não garantem a chegada à próxima estação, enfiam-se no escasso metrô, que justifica o apelido de metro e meio, tão curto é, para tão extensa cidade.
          Os que não olham o amanhecer nestes dias de novembro que lembram dias de maio perdem a cidade em um de seus momentos mais belos. Nestas manhãs tenho me reconciliado com São Paulo. Posso amá-la intensamente, ainda que esse amor se desgaste ao longo do dia, corroído pelo barulho, violência, medo, poluição, má-educação, buracos. O sol atinge minhas janelas, reflete-se nos vidros, incomoda, cega-me. Recuso-me a fechar as persianas, seria negá-lo, ofendê-lo, ele sobe tão alegre, bebendo o azul, satisfeito por essa súbita e inexplicável limpidez do ar. [...]
          O sol atinge a mesa, derramo o café sobre o tampo. Corro com um pano, há manchas de luz no café. Devo interpretá-las? Tolices. Passo lustra-móveis, essa mesa é meu xodó, ganhei-a em 1959 de Fernando de Barros, o cineasta. O único móvel existente na primeira quitinete que aluguei nesta cidade, na Praça Roosevelt, 168, apartamento 803. Quem mora lá, hoje? Era fácil encontrar e alugar quitinetes. Tão baratas! [...]
          O sol firmou-se, a empregada, na cozinha, ligou o rádio... elas adoram o volume máximo. Anuncia-se a próxima atração: “deve a mulher cortar o membro do homem que trai?”. Impressionantes as manifestações. Vocês vão ler no próxima semana. Neste mesmo lugar. Acima da coluna da Cecília Thompson, que não sei como não se irrita com as evasivas que lhe enviam os que servem mal ao público. Devia mudar o título da coluna para respostas mentirosas.

    BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Melhores crônicas de Ignácio de Loyola Brandão. São Paulo: Global, 2004, p. 146-147.

          Velociraptor: espécie pré-histórica, que viveu na região da Mongólia. Ágil e feroz, pesava perto de 80 kg. e media cerca de 2 metros de comprimento. Com uma forma que lembra um lagarto de pé, o velociraptor vivia em bando e era um terrível predador.
Entendendo o texto

1 – De que acontecimento o autor parte para elaborar sua crônica? Trata-se de um acontecimento cotidiano? Por quê?
      O amanhecer na cidade de São Paulo. Sim, é um acontecimento cotidiano, já que amanhece todos os dias.

2 – O autor inicia seu texto com uma pergunta: “Quem contempla o amanhecer nesta cidade”?
a)     Há dois grupos de pessoas que, supostamente, contemplariam o amanhecer. Que grupos são esses?
O grupo dos boêmios e o dos trabalhadores que acordam cedo.

b)    Esses dois grupos, de fato, contemplam o amanhecer? Por quê?
Não. O autor não sabe se ainda existem os “boêmios poéticos” de antigamente, que contemplariam o amanhecer. De acordo com o que vê, os boêmios da atualidades saem das danceterias, mal contemplam o dia, entram em seus carros e saem em alta velocidade. Já os trabalhadores não contemplam o amanhecer, pois, para eles, o amanhecer significa um corte abrupto do sono e uma corrida para não perder a hora. Estão sonolentos e raivosos nessa hora, a, assim, não podem desfrutar o amanhecer.

3 – O que há de especial no amanhecer dos dias de novembro, que parecem maio, para o autor?
        Nesses dias, ele se reconcilia com São Paulo e ama a cidade intensamente.

4 – Mesmo tratando de um aspecto positivo – e poético – da cidade, o autor insere algumas críticas, apresentando alguns aspectos negativos de São Paulo.
Localize no texto os problemas da cidade apresentados e escreva-os em seu caderno.
       Problema no transporte coletivo: conduções atrasadas, veículos lotados, clandestinos, “apodrecidos” e sem segurança. Metrô insuficiente para a grande cidade.
Além disso, apresentam-se os seguintes problemas: barulho, violência, medo, poluição, má educação e buracos. Para o autor, as construções inadequadas para um clima quente, bem como os rachas, também podem ser observadas pelos alunos como aspectos negativos.

5 – Enfim, o sol chega à janela, entra em sua casa e atinge sua mesa... e o autor derrama café.
a)     Esse acontecimento corriqueiro transporta o autor para outra época. Que época?
Década de 1950, quando ganhou a mesa, que era o único móvel da primeira quitinete que alugou em São Paulo.

b)    Em que outro momento do texto o autor refere-se a algo do passado com uma “ponta” de nostalgia?
No segundo parágrafo, quando se refere aos boêmios de outrora.

6 – No último parágrafo, fica evidente que se trata de uma crônica semanal, publicada em um jornal.
a)     Que evidências mostram isso?
O autor anuncia que seus leitores saberão na semana seguinte, por meio de seu texto, as manifestações ouvidas no rádio sobre a pergunta “deve a mulher cortar o membro do homem que trai?”. Além disso, ele situa seu texto no espaço físico do jornal, ou seja, no mesmo lugar, acima da coluna de Cecília Thompson.

b)    Transcreva do texto o trecho em que o autor fala diretamente com seus leitores.
“Vocês vão ler na próxima semana”.




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