CRÔNICA: CONVERSA DE COMPRA DE PASSARINHO
Rubem Braga
Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me
atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha.
Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as
achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o
calcanhar de um pé com o dedo de outro. “Quarenta”. O homem da venda não
responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis
pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando.
O velho:
– Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que
era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.
Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura
alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim:
“- O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha.
Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:
– Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro.
O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:
– Quanto é o coleiro?
– Ah, esse não tenho para venda, não…
Sei que o velho esta mentindo; ele seria incapaz de ter um
coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e
farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o
dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “- O senhor dá
trinta…?” O velho cala-se, minha nota na mão.
– Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?
Fico calado algum tempo. Ele insiste: “- O senhor
diga…” Viro a cachaça, fico apreciando o coleiro.
– Se não quer vinte e cinco vá embora, menino.
Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha
para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar
pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou
25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:
– Passarinho dá muito trabalho…
O velho atende outro freguês, lentamente.
– O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu.
Por trás dele o pescador de bigodes brancos me fez sinal
para não comprar. Finjo espanto: “- Quinhentos cruzeiros?”
– Ainda a semana passada eu rejeitei seiscentos por ele.
Esse coleiro é muito especial.
Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar,
mostrando sua especialidade. Faço uma pergunta sorna: “- Foi o senhor
quem pegou ele?” O homem responde: “- Não tenho tempo para
pegar passarinho.”
Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha.
Quanto terá recebido esse menino desconhecido, por aquele coleiro especial?
– No Rio eu compro um papa-capim mais barato…
– Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece
passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.
– Mas quinhentos cruzeiros?
– Quanto é que o senhor oferece?
Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele
atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo.
Afinal digo com voz fria, seca: “- Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta
pela gaiola.”
O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco,
ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por
trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”
Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a
casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de
bigodes brancos, me despeço.
– O senhor não leva o coleiro?
Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem
preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e
livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do
menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no
inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu – trotando,
assobiando e cantando de pura alegria.
(RUBEM BRAGA. Quadrante. Rio, Editora do Autor, 1962)
Após a leitura do
texto, responda às questões abaixo:
1. Achas de lenha
são _________________________________________
2. Quais os significados
da palavra achas nas frases abaixo:
a) Achas interessante
essa crônica? ______________________________
b) Procuras o troco
nos bolsos e não achas nada. ____________________
3. Transcreva do
texto a frase que equivale a:
a) Calado, o menino
concorda. ____________________________________
b) O menino
titubeia. ___________________________________________
4. Relacione as
palavras aos seus significados, de acordo com o texto:
a. roça
( ) caolho
b. desprezo
( )
altruísmo; ação em que não se visa ao interesse próprio
c. miúdos
( ) sem maiores objetivos; indolente; preguiçosa
d. brejo
( ) terreno de lavoura; campo em oposição à cidade
e. sorna
( ) desdém
f. desprendimento
( ) pequeno; espremido
g. zarolho
( ) banhado
5. Onde acontece o
fato narrado no texto?
6. A atitude
inicial do velho, dono da venda, para com o menino é:
a. ( )
atenciosa b. ( )
simpática c. ( ) de
desprezo
7. Essa atitude era
intencional?
a. ( )
Sim, porque desse modo, ele desvalorizava a mercadoria do menino, comprando-a
por menor preço.
b. ( )
Não. O velho negociante era mesmo seco e de pouca conversa.
8. Ao perceber o
interesse do narrador do texto, o velho demonstrou:
a. ( )
satisfação, pois também ele gostava de pássaros.
b. ( )
aparente desinteresse pelo negócio.
9. Pelas compras
feitas pelo narrador, deduzimos que o mesmo iria ______
10. O que disse o
velho negociante, quando o narrador perguntou pelo preço do coleiro?
11. A resposta dada
pelo negociante a respeito da venda do coleiro é verdadeira? ( )
sim ( ) não
Justifique sua
resposta indicando passagens do texto.
12. A negociação
empregada pelo velho, durante a compra da lenha, lhe parece justa e honesta?
a. ( )
Não. Ele estava explorando o menino, na certeza de que este não voltaria com a
carga, já que tivera muito trabalho para cortar e trazer a lenha.
b. ( )
Sim, pois, como comerciante que era, procurava um modo de adquirir a mercadoria
por menor preço e, assim, auferir maior lucro.
13. Quem o narrador
julga que tivesse caçado o coleiro do brejo? Justifique com uma passagem do
texto.
14. O narrador
também usa da mesma técnica de negociação empregada pelo velho, para a compra
do passarinho, isto é, desvalorizar a mercadoria com argumentos, demonstrar
desinteresse com atitudes. Identifique sete trechos da narrativa que demonstram
essa técnica de negociação usada pelo narrador.
15. Após tanta
negociação, qual o abatimento que o narrador conseguiu quando desistiu da
compra do passarinho?
16. Para onde se
dirigiu o narrador com o material de pesca que adquiriu na venda?
17. Por que o
narrador não compra, afinal, o coleiro?
18. Qual teria
sido, na sua opinião, a atitude mais justa a ser tomada pelo narrador em
relação ao coleiro? Justifique sua resposta.
19. Expresse, em
poucas linhas, a mensagem que o texto sugere.
___________________________________________________
GABARITO
Questão 1. São
pedaços de madeira seca para fazer fogo.
Questão 2. a)
julgar ou considerar
interessante b) não
encontrar
Questão 3.
a)
“Sem responder, o menino cede.” (parágrafo 12).
b)
“O menino hesita.” (parágrafo 1)
Questão 4.
a.
roça
( g ) caolho
b.
desprezo
( f ) altruísmo; ação em que não se visa ao interesse próprio.
c.
miúdos
( e ) sem maiores objetivos; indolente; preguiçosa
d.
brejo
( a ) terreno de lavoura; campo em oposição à cidade
e.
sorna
( b ) desdém
f.
desprendimento ( c ) pequenos; espremidos
g.
zarolho
( d ) banhado
Questão 5. Numa
casa de comércio.
Questão 6.
Alternativa c
Questão 7.
Alternativa a.
Questão 8.
Alternativa b.
Questão 9. Pescar.
Questão 10. Disse
que o coleiro não estava à venda.
Questão 11. Não.
Trechos que comprovam a resposta:
- “Sei que o velho está
mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda;
miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias.”
- “O senhor querendo dar
quinhentos cruzeiros, é seu”.
- “Por trezentos cruzeiros o
senhor leva tudo.”
- “O senhor não leva o
coleiro?”
Questão 12.
Alternativa a.
Questão 13. Um
menino pobre, morador da zona rural. Trecho que comprova a resposta:
- “Sei disso. Foi um menino
descalço, como aquele da lenha.”
Questão 14.
1. “Eu me
dessinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras.
2. “Fico calado algum
tempo. Viro a cachaça.”
3. “Passarinho dá
muito trabalho.”
4. “Finjo espanto.
Quinhentos cruzeiros?”
5. “No Rio compro um
papa-capim mais barato.”
6. “Acendo um cigarro.
Peço mais uma cachacinha.”
7. “Afinal, digo com
voz fria, seca: Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”
Questão 15.
Duzentos cruzeiros.
Questão 16. À casa
de Simeão, um pescador zarolho.
Questão 17. Porque,
na sua opinião, um coleiro do brejo não tem preço, por ser um pequeno animal
sagrado e livre, como o menino da lenha e seu burrinho.
Questão 18. Deveria
tê-lo comprado e depois dar-lhe a liberdade, isto é soltá-lo na mata que é onde
devem viver os animais silvestres.
Questão 19.
Resposta pessoal.
Obrigada.💝
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