domingo, 23 de abril de 2017

CRÔNICA:CONVERSA DE COMPRA DE PASSARINHO - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

CRÔNICA: CONVERSA DE COMPRA DE PASSARINHO
                       Rubem Braga
          Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro. “Quarenta”. O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:
          – Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.
         Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim: “- O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:
          – Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro.
          O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:
          – Quanto é o coleiro?
          – Ah, esse não tenho para venda, não…
          Sei que o velho esta mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “- O senhor dá trinta…?” O velho cala-se, minha nota na mão.
          – Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?
          Fico calado algum tempo. Ele insiste: “- O senhor diga…” Viro a cachaça, fico apreciando o coleiro.
          – Se não quer vinte e cinco vá embora, menino.
          Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:
          – Passarinho dá muito trabalho…
          O velho atende outro freguês, lentamente.
          – O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu.
          Por trás dele o pescador de bigodes brancos me fez sinal para não comprar. Finjo espanto: “- Quinhentos cruzeiros?”
          – Ainda a semana passada eu rejeitei seiscentos por ele. Esse coleiro é muito especial.
        Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando sua especialidade. Faço uma pergunta sorna: “- Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde: “- Não tenho tempo para pegar passarinho.”
          Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido esse menino desconhecido, por aquele coleiro especial?
          – No Rio eu compro um papa-capim mais barato…
          – Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.
          – Mas quinhentos cruzeiros?
          – Quanto é que o senhor oferece?
          Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com voz fria, seca: “- Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”
          O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”
          Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.
          – O senhor não leva o coleiro?
          Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu – trotando, assobiando e cantando de pura alegria.
(RUBEM BRAGA. Quadrante. Rio, Editora do Autor, 1962)
Após a leitura do texto, responda às questões abaixo:
1. Achas de lenha são _________________________________________
2. Quais os significados da palavra achas nas frases abaixo:
a) Achas interessante essa crônica? ______________________________
b) Procuras o troco nos bolsos e não achas nada. ____________________
3. Transcreva do texto a frase que equivale a:
a) Calado, o menino concorda. ____________________________________
b) O menino titubeia. ___________________________________________
4. Relacione as palavras aos seus significados, de acordo com o texto:
a. roça                             (   ) caolho
b. desprezo                     (   ) altruísmo; ação em que não se visa ao interesse próprio
c. miúdos                        (   ) sem maiores objetivos; indolente; preguiçosa
d. brejo                            (   ) terreno de lavoura; campo em oposição à cidade
e. sorna                           (   ) desdém
f. desprendimento        (   ) pequeno; espremido
g. zarolho                       (   ) banhado

5. Onde acontece o fato narrado no texto?
6. A atitude inicial do velho, dono da venda, para com o menino é:
a. (   ) atenciosa       b. (   ) simpática        c. (   ) de desprezo
7. Essa atitude era intencional?
a. (   ) Sim, porque desse modo, ele desvalorizava a mercadoria do menino, comprando-a por menor preço.
b. (   ) Não. O velho negociante era mesmo seco e de pouca conversa.
8. Ao perceber o interesse do narrador do texto, o velho demonstrou:
a. (   ) satisfação, pois também ele gostava de pássaros.
b. (   ) aparente desinteresse pelo negócio.
9. Pelas compras feitas pelo narrador, deduzimos que o mesmo iria ______
10. O que disse o velho negociante, quando o narrador perguntou pelo preço do coleiro?
11. A resposta dada pelo negociante a respeito da venda do coleiro é verdadeira? (   ) sim        (   ) não
Justifique sua resposta indicando passagens do texto.
12. A negociação empregada pelo velho, durante a compra da lenha, lhe parece justa e honesta?
a. (   ) Não. Ele estava explorando o menino, na certeza de que este não voltaria com a carga, já que tivera muito trabalho para cortar e trazer a lenha.
b. (   ) Sim, pois, como comerciante que era, procurava um modo de adquirir a mercadoria por menor preço e, assim, auferir maior lucro.
13. Quem o narrador julga que tivesse caçado o coleiro do brejo? Justifique com uma passagem do texto.
14. O narrador também usa da mesma técnica de negociação empregada pelo velho, para a compra do passarinho, isto é, desvalorizar a mercadoria com argumentos, demonstrar desinteresse com atitudes. Identifique sete trechos da narrativa que demonstram essa técnica de negociação usada pelo narrador.
15. Após tanta negociação, qual o abatimento que o narrador conseguiu quando desistiu da compra do passarinho?
16. Para onde se dirigiu o narrador com o material de pesca que adquiriu na venda?
17. Por que o narrador não compra, afinal, o coleiro?
18. Qual teria sido, na sua opinião, a atitude mais justa a ser tomada pelo narrador em relação ao coleiro? Justifique sua resposta.
19. Expresse, em poucas linhas, a mensagem que o texto sugere.
 ___________________________________________________
GABARITO
Questão 1. São pedaços de madeira seca para fazer fogo.
Questão 2. a) julgar ou considerar interessante          b) não encontrar
Questão 3.
a)      “Sem responder, o menino cede.” (parágrafo 12).
b)      “O menino hesita.” (parágrafo 1)
Questão 4.
a. roça                     ( g ) caolho
b. desprezo             (  f ) altruísmo; ação em que não se visa ao interesse próprio.
c. miúdos                ( e ) sem maiores objetivos; indolente; preguiçosa
d. brejo                   ( a ) terreno de lavoura; campo em oposição à cidade
e. sorna                  ( b ) desdém
f. desprendimento  ( c ) pequenos; espremidos
g. zarolho               ( d ) banhado

Questão 5. Numa casa de comércio.
Questão 6.  Alternativa c
Questão 7. Alternativa a.
Questão 8. Alternativa b.
Questão 9. Pescar.
Questão 10. Disse que o coleiro não estava à venda.
Questão 11. Não. Trechos que comprovam a resposta:
  • “Sei que o velho está mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias.”
  • “O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu”.
  • “Por trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”
  • “O senhor não leva o coleiro?”
Questão 12. Alternativa a.
Questão 13. Um menino pobre, morador da zona rural. Trecho que comprova a resposta:
  • “Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha.”
Questão 14.
1.   “Eu me dessinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras.
2.   “Fico calado algum tempo. Viro a cachaça.”
3.   “Passarinho dá muito trabalho.”
4.   “Finjo espanto. Quinhentos cruzeiros?”
5.   “No Rio compro um papa-capim mais barato.”
6.   “Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha.”
7.   “Afinal, digo com voz fria, seca: Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”
Questão 15. Duzentos cruzeiros.
Questão 16. À casa de Simeão, um pescador zarolho.
Questão 17. Porque, na sua opinião, um coleiro do brejo não tem preço, por ser um pequeno animal sagrado e livre, como o menino da lenha e seu burrinho.
Questão 18. Deveria tê-lo comprado e depois dar-lhe a liberdade, isto é soltá-lo na mata que é onde devem viver os animais silvestres.
Questão 19. Resposta pessoal.


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