CONTO: SONHOS DE ROBÔ
Isaac Azimov
— Eu sonhei ontem à noite — disse LVX-1, calmamente.
Susan Calvin ficou em
silêncio, mas seu rosto vincado de rugas, pleno de sabedoria e de experiência,
teve um estremecimento quase imperceptível.
— Ouviu isto? — perguntou
Linda Rash, nervosa. — Foi o que eu lhe disse.
[...]
— Elvex, você não pode
mover-se ou falar ou nos ouvir até que eu diga seu nome novamente. Não houve
resposta. [...]
As mãos de Linda Rash
manipularam os controles durante alguns instantes; ela interrompeu o processo,
recomeçou, e daí a pouco o visor se iluminou revelando um painel de padrões
matemáticos.
— Com sua licença — disse a
Dra. Calvin, sentando-se diante do computador.
[...]
Meticulosamente, a Dra.
Calvin examinou o visor, fazendo com que as imagens corressem para um lado e
para outro, depois subindo, e de repente digitou uma combinação com gestos tão
rápidos que Linda não percebia o que tinha sido feito, mas o visor mostrava
logo uma porção ampliada do padrão anterior. A Dra. Calvin prosseguiu em seu
exame, avançando, recuando, [...].
Linda estava abismada. Era
impossível analisar um padrão daqueles sem contar com a ajuda de pelo menos um
computador portátil, e no entanto a Velha Senhora apenas fitava os dados.
Haveria um computador implantado em seu crânio? Ou aquilo se devia apenas ao
seu cérebro que durante décadas não tinha feito outra coisa senão projetar,
estudar e analisar os padrões dos cérebros positrônicos? [...]
Finalmente a Dra. Calvin
disse:
— Diga-me, Dra. Rash... o
que andou fazendo? Ela respondeu embaraçada:
— Utilizei geometria
fractal.
— Sim, percebo que sim. Mas
por quê?
— Nunca tinha sido feito.
Achei que poderia produzir um padrão mental mais complexo, talvez mais próximo
dos padrões humanos.
— Consultou alguém para
isto? Ou fez tudo sozinha?
— Não consultei ninguém. Foi
ideia minha, apenas.
Os olhos fatigados de Susan
Calvin fitaram demoradamente
a jovem.
— Você não tinha esse
direito. Seu nome é Rash, hem? Imprudente... Um nome muito adequado. Quem é
você para fazer isto sem consultar ninguém?
[...]
— Tive medo de que me
proibissem de continuar.
-— Isso com certeza teria
acontecido.
— Será que... — a voz da
jovem vacilou, a despeito
de seu esforço para mantê-la
firme — ... que vou ser despedida?
— É bastante possível —
disse a Dra. Calvin. — Ou promovida, quem sabe?
Tudo depende do que eu
descobrir de agora em diante.
[...]
Ela percebeu de repente, com
um pequeno choque, que a Dra. Calvin tinha uma pistola eletrônica no bolso de
seu guarda-pó. A Velha Senhora tinha vindo preparada justamente para isso.
— Veremos — disse ela. —
Talvez ele seja valioso demais para ser desativado.
— Mas como é possível que
ele sonhe?
— Você tornou seu cérebro
positrônico notavelmente semelhante a um cérebro humano. Os cérebros humanos
precisam sonhar para se reorganizar, para se libertar, periodicamente, de
emaranhados e de nódulos. Talvez o mesmo esteja acontecendo com este robô, pela
mesma razão. [...] Agora vamos ver o que conseguimos descobrir. — Virou-se para
o robô e disse, com voz clara:
— Elvex.
A cabeça do robô voltou-se
suavemente na sua direção.
— Sim, Dra. Calvin?
— Como sabe que esteve
sonhando, Elvex?
— Acontece à noite, quando
está tudo escuro, Dra. Calvin — disse ele. [...]
Ouço coisas. Tenho reações
estranhas. Quando recorri a meu vocabulário para exprimir o que estava
acontecendo, deparei com a palavra sonho. Estudei seu significado e cheguei
finalmente à conclusão de que estava sonhando.
[...]
Linda fez rapidamente um
gesto, calando o robô.
— Eu lhe dei um vocabulário
semelhante ao dos humanos — disse ela. [...] — Pensei apenas que ele iria
precisar do verbo. Algo como eu nunca sonhei que tal ou tal coisa pudesse
acontecer... Algo assim.
A Dra. Calvin voltou a
encarar o robô.
— Com que frequência tem
sonhado, Elvex?
— Todas as noites, Dra.
Calvin, desde que comecei a existir.
— Dez noites — disse Linda,
ansiosa. — Mas ele só me falou a respeito disso hoje pela manhã.
— Por que só revelou isto
hoje, Elvex?
— Foi somente hoje, Dra. Calvin, que fiquei
convencido de que estava sonhando. [...]
— E o que acontece nos seus
sonhos?
— É praticamente o mesmo
sonho todas as vezes, doutora. Há pequenos detalhes diferentes, mas sempre me
parece que estou no interior de um vasto panorama onde há robôs trabalhando.
— Robôs, Elvex? E seres
humanos também?
— Não vejo nenhum ser humano
no sonho, Dra. Calvin, [...]. Apenas robôs.
— E o que fazem esses robôs?
— Trabalham. Alguns
trabalham em mineração nas profundezas da Terra, outros com calor e com
radiações. Vejo alguns deles em fábricas, outros no fundo do oceano.
A Dra. Calvin voltou-se para
Linda.
— Elvex tem apenas dez dias
de idade, e pelo que sei jamais deixou a estação de testes. Como pode saber da
vida dos demais robôs com tal riqueza de detalhes?
Linda olhou na direção de
uma cadeira próxima como se estivesse ansiosa para se sentar [...]. Com voz
apagada, respondeu:
— Achei que seria importante
para ele saber algo sobre robótica e sobre o papel dos robôs no mundo. [...]
— Então você viu todas essas
coisas: lugares abissais, subterrâneos, a superfície... Imagino que tenha visto
o espaço, também.
— Também vi robôs trabalhando
no espaço — disse Elvex. [...]
— O que mais você viu,
Elvex?
— Vi que todos os robôs
estavam curvados de fadiga e de aflição, que estavam todos cansados de tanta
responsabilidade e de tantas preocupações [...].
— Mas os robôs — disse a
Dra. Calvin — não estão curvados nem cansados.
Eles não precisam de
repouso.
— [...] No meu sonho
parecia-me que os robôs deviam proteger sua própria existência.
— Está citando a Terceira
Lei da Robótica?
— Sim, Dra. Calvin.
— Mas você a citou de forma
incompleta. A Terceira Lei diz: Um robô deve proteger sua própria existência,
na medida em que essa proteção não entre em conflito com a Primeira Lei e a
Segunda Lei. qualquer menção à Primeira Lei ou à Segunda Lei.
— [...] A Segunda Lei, que
tem precedência sobre a Terceira, diz: Um robô deve obedecer às ordens dos
seres humanos, na medida em que essas ordens não entrem em conflito com a
Primeira Lei. Devido a isto, os robôs obedecem a ordens. [...] Eles não estão
fatigados nem necessitados de repouso.
— Sei que é assim na
realidade, [...]. Mas o que descrevi foi o meu sonho.
— E a Primeira Lei, Elvex, a
mais importante de todas, é: Um robô não pode fazer mal a um ser humano, nem,
por omissão, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.
— Sim, Dra. Calvin. Na vida
real. No meu sonho, entretanto, era como se não existissem a Primeira e a
Segunda Leis, mas apenas a Terceira [...].
[...]
— [...] mas no meu sonho a
Lei se concluía na palavra existência. Não havia qualquer menção à Primeira Lei
ou à Segunda Lei.
— Elvex, você não poderá se
mover, nem falar, nem nos ouvir, até que eu pronuncie seu nome novamente.
[...]
— Dra. Calvin, estou
assustada. Eu não tinha ideia... Nunca me ocorreu que semelhante coisa fosse
possível.
— [...] Você criou um
cérebro robótico capaz de sonhar e, com isto, revelou nesses cérebros uma
camada de pensamento que de outro modo teria continuado a passar despercebida
até que o perigo se tornasse irremediável.
— Mas isto é impossível. Não
pode estar achando que os demais robôs pensam a mesma coisa.
— [...] O que nos estaria
reservado no futuro, quando os cérebros dos robôs fossem se tornando mais e
mais complexos... se não tivéssemos sido prevenidos?
— Por Elvex?
— Pela senhora, Dra. Rash
[...]. Devemos começar a pesquisar cérebros fractais de agora em diante,
produzindo-os sob controle cuidadoso. [...] Não receberá nenhuma punição pelo
que fez, mas a partir de agora trabalhará em conjunto com outras pessoas.
Entendeu?
— Sim, Dra. Calvin. Mas... e
quanto a Elvex?
— Não sei ainda.
A Dra. Calvin retirou do
bolso a pistola eletrônica. Linda olhou para a arma com olhos fascinados. [...]
— Ele não pode ser destruído
— disse Linda. — É importante para essa pesquisa.
— Não pode, doutora? Essa é
uma decisão minha, creio. Depende do grau de perigo que ele pode representar.
Ela empertigou-se [...] e
disse:
— Elvex, pode me ouvir?
— Sim, Dra. Calvin — disse o
robô.
— Fale-me sobre a
continuação de seu sonho. Você disse que, de início, não apareciam seres
humanos nele. Apareciam depois?
— Sim, Dra. Calvin.
Pareceu-me que, num dado momento, aparecia um homem.
— Um homem? Não um robô?
— Sim, Dra. Calvin. E o
homem dizia: Libertem meu povo!
— O homem dizia isto?
— Sim, Dra. Calvin.
— E quando dizia libertem
meu povo, com as palavras meu povo ele se referia aos robôs?
— Sim, Dra. Calvin. Era
assim no meu sonho.
— E no sonho você reconhecia
esse homem?
— Sim, Dra. Calvin. Sei quem
era esse homem.
— Quem era, então? E Elvex
disse:
— Eu era esse homem.
Susan Calvin ergueu no mesmo
instante a pistola eletrônica, e disparou. Elvex deixou de existir.
ASIMOV, Isaac. Sonhos de robô. Histórias de ficção
científica. 1. ed. São Paulo: Ática, 2006. (Coleção Para gostar de ler, 38).
Fonte:
Livro - APROVA BRASIL - Língua Portuguesa, 9º ano, 3ª ed. São Paulo: Moderna,
2019, p.18 -23.
ENTENDENDO
O TEXTO
1. O objetivo comunicativo
do texto é
a) argumentar sobre a
evolução da robótica.
b) narrar uma
história de ficção tendo a robótica como tema.
c) relatar uma pesquisa
sobre desenvolvimento de robôs.
d) transmitir conhecimentos
sobre os avanços tecnológicos em robótica.
2. Descreva, de maneira
sucinta, as três personagens do conto.
a) LVX-1, ou Elvex.
Robô que apresenta
uma característica diferenciada, pois é capaz de sonhar.
b) Susan Calvin, ou Dra.
Calvin.
Coordenadora de
uma pesquisa que desenvolve robôs, tem personalidade forte e questionadora.
c) Linda Rash.
Responsável por um
aprimoramento no cérebro do robô que resulta no fato de ele começar a sonhar.
3. Qual é o conflito da
narrativa, ou seja, a situação-problema que desencadeia uma série de
acontecimentos e gera o enredo?
O conflito se
apresenta logo no início da história: o robô, Elvex, conta que é capaz de
sonhar.
4. Qual era a causa da
preocupação da Dra. Calvin em relação ao fato de o robô ser capaz de sonhar?
Pode-se inferir
que a Dra. Calvin teme que a semelhança do robô com os humanos ponha em risco a
supremacia dos humanos.
5. Releia o trecho a seguir.
“—
Elvex, você não poderá se mover, nem falar, nem nos ouvir, até
que
eu pronuncie seu nome novamente.”
Pode-se inferir que o robô é
ativado quando
a) é ligado.
b) ouve uma voz.
c) falam seu nome.
d) deseja algo.
6. Na conversa com Elvex, a
Dra. Calvin cita três leis que devem ser seguidas pelos robôs. Essas leis
parecem ter o objetivo de proteger quem: os robôs ou os seres humanos?
Justifique.
As três leis
estabelecem regras para a convivência entre robôs e humanos, criando uma
relação de servilidade dos primeiros em relação aos segundos.
7.Releia o trecho:
“— Ele não pode ser
destruído — disse Linda. — É importante para
essa pesquisa.
— Não pode, doutora? Essa é
uma decisão minha, creio. Depende
do grau de perigo que ele
pode representar.
Ela empertigou-se [...] e
disse:
— Elvex, pode me ouvir?
— Sim, Dra. Calvin — disse o
robô.
— Fale-me sobre a
continuação de seu sonho. Você disse que, de
início, não apareciam seres
humanos nele. Apareciam depois?”
• Que palavras foram
utilizadas no trecho para que não houvesse repetição do nome da personagem
Elvex?
O pronome ele e o
substantivo robô.
8. Por que o conto “Sonho de
robô” é considerado um texto de ficção científica?
Porque sua
temática é relativa ao desenvolvimento da robótica, que pode causar impactos na
vida social em razão de as máquinas ganharem inteligência semelhante à dos
seres humanos.