Crônica: O gigolô das palavras
Luís Fernando Veríssimo
Quatro ou cinco grupos diferentes de
alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por seu
professor de Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática
indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua. Cada grupo
portava um gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia
moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor
lia esta coluna, se descabelava diariamente com suas afrontas às leis da
língua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até
preparando, às pressas, minha defesa (“Culpa da revisão! Culpa da revisão!”).
Mas os alunos desfizeram o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos
tinham escolhido os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza que não
pegaram o Veríssimo errado? Não. Então vamos em frente.
Respondi que a linguagem, qualquer
linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como
tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames
mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não
de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por
exemplo: dizer “escrever claro” não é certo, mas é claro, certo? O importante é
comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover… Mas aí
entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática.) A
Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de
interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco
comunicativa. Aquela gravidade sombria que a gente nota nas fotografias em
grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação total pelo
Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português
morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o
esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele sozinho não informa nada, como a
Gramática é a estrutura da língua mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As
múmias conversam entre si em Gramática pura.
Claro que eu não disse tudo isso para
meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa
se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas
— isto eu disse — vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão dispensável
que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria. Sou
um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas a exemplar
conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as
desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não
raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro.
Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Se bem que não
tenha também o mínimo escrúpulo de roubá-las de outro, quando acho que vou
ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas.
Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.
Um escritor que passasse a respeitar a
intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô
que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de
um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria sua
patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair
com elas em público, alvo da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e
colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa
apanhar todos os dias para saber quem é que manda.
Luís Fernando Veríssimo. O gigolô
das palavras. Porto Alegre: LP&M, 1982.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é a ideia do
escritor sobre a gramática?
Livro de regras
sobre o uso do idioma.
02 – Respeitadas algumas
regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras
são dispensáveis. Que regras você consideraria básicas? Quais seriam as
dispensáveis?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: As regras que evitam os “vexames” podem não ser iguais para
todos. Compare essas regras com “regras de etiqueta”, por exemplo, variáveis de
acordo com a cultura, a região, o período histórico.
03 – Analise a analogia
original que Luís Fernando Veríssimo estabelece entre sua relação com as
palavras e a relação de um gigolô com seu “plantel”. Por que ele se considera
um gigolô das palavras?
Porque, segundo o
cronista, ele não respeita a “intimidade” gramatical de cada uma delas. As
palavras funcionam ao bel-prazer do escritor.
04 – De o significado das
palavras abaixo:
·
Necrólogos: é aquele que realiza elogios sobre alguém falecido.
·
Cáften,
gigolô: é aquele que vive da
prostituição.
·
Calão: é um linguajar grosseiro.
·
Plantel: é um grupo de profissionais.
·
Lexicógrafo: é um dicionarista.
·
Etimologista: é aquele que estuda a origem das palavras.
05 – Leia, atentamente, as
seguintes proposições acerca da crônica “O Gigolô das palavras”:
I – Luís Fernando Veríssimo considera-se
um “gigolô das palavras” em sua arte de escrever, o que permite ao leitor
inferir pelo contexto que é preciso que haja uma relação íntima e, ao mesmo tempo,
respeitosa com as palavras.
II – A expressão “na boca do
povo”, utilizada por Veríssimo, é uma gíria, atribuída a palavras cujo uso
tornou-se frequente em situações de comunicação informal.
III – De acordo com
Veríssimo, a gramática é o esqueleto da língua, e, portanto, quando tratada
isoladamente, torna-se elemento dispensável a uma comunicação eficaz.
IV – Segundo Veríssimo, a
linguagem deve ser um meio de comunicação, não advindo de padrões gramaticais
atrelados em nossa mente, e sim da forma como interagimos e nos entendemos
através de nosso próprio linguajar.
V – Pelo contexto de “O
Gigolô das palavras”, infere-se que o domínio das regras e normas da gramática,
pelo ponto de vista do autor deste texto, é indispensável a um profissional,
como ele, da área da comunicação oral ou escrita.
Marque a alternativa CORRETA:
a) Apenas I, II e IV estão corretas.
b) Apenas
I, IV e V estão corretas.
c) Apenas
II, III, e IV estão corretas.
d) Apenas
III, IV e V estão corretas.
e) Apenas
II, III e V estão corretas.
06 – Ao expressar, em
diversos trechos do texto “O Gigolô das palavras”, sua concepção em torno do
que seja LÍNGUA e GRAMÁTICA, Luís Fernando Veríssimo empregou as palavras
abaixo em destaque para referir-se à gramática normativa, EXCETO em:
a)
“A sintaxe
é uma
questão de uso, não
de princípios. Escrever bem
é escrever claro, não necessariamente certo.”
b)
“... minha implicância com a Gramática na
certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português.”
c)
“Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas
palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu
plantel.”
d)
“Suspeitei de saída que o tal
professor lia esta coluna, se descabelava diariamente com suas afrontas às leis da língua.”
e)
“... a intimidade com a Gramática é tão
dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria.”