Crônica: PROTESTO TÍMIDO
Fernando Sabino
Ainda há pouco eu vinha para casa a pé,
feliz da minha vida e faltavam dez minutos para a meia-noite. Perto da Praça
General Osório, olhei para o lado e vi, junto à parede, antes da esquina, algo
que me pareceu uma trouxa de roupa, um saco de lixo. Alguns passos mais e pude
ver que era um menino.
Escurinho, de seus seis ou sete anos,
não mais. Deitado de lado, braços dobrados como dois gravetos, as mãos protegendo
a cabeça. Tinha os gambitos também encolhidos e enfiados dentro da camisa de
meia esburacada, para se defender contra o frio da noite. Estava dormindo, como
podia estar morto. Outros, como eu, iam passando, sem tomar conhecimento de sua
existência. Não era um ser humano, era um bicho, um saco de lixo mesmo, um
traste inútil, abandonado sobre a calçada. Um menor abandonado.
Quem nunca viu um menor abandonado? A
cinco passos, na casa de sucos de frutas, vários casais de jovens tomavam sucos
de frutas, alguns mastigavam sanduíches. Além, na esquina da praça, o carro da
radiopatrulha estacionado, dois boinas-pretas conversando do lado de fora.
Ninguém tomava conhecimento da existência do menino.
Segundo as estatísticas, como ele
existem nada menos que 25 milhões no Brasil, que se pode fazer? Qual seria a
reação do menino se eu o acordasse para lhe dar todo o dinheiro que trazia no
bolso? Resolveria o seu problema? O problema do menor abandonado? A injustiça
social?
(....)
Vinte
e cinco milhões de menores – um dado abstrato, que a imaginação não alcança. Um
menino sem pai nem mãe, sem o que comer nem onde dormir – isto é um menor
abandonado. Para entender, só mesmo imaginando meu filho largado no mundo aos
seis, oito ou dez anos de idade, sem ter para onde ir nem para quem apelar.
Imagino que ele venha a ser um desses que se esgueiram como ratos em torno aos
botequins e lanchonetes e nos importunam cutucando-nos de leve – gesto que nos
desperta mal contida irritação – para nos pedir um trocado. Não temos
disposição sequer para olhá-lo e simplesmente o atendemos (ou não) para nos
livrarmos depressa de sua incômoda presença. Com o sentimento que sufocamos no
coração, escreveríamos toda a obra de Dickens. Mas estamos em pleno século XX,
vivendo a era do progresso para o Brasil, conquistando um futuro melhor para os
nossos filhos. Até lá, que o menor abandonado não chateie, isto é problema para
o juizado de menores. Mesmo porque são todos delinquentes, pivetes na escola do
crime, cedo terminarão na cadeia ou crivados de balas pelo Esquadrão da Morte.
Pode ser. Mas a verdade é que hoje eu
vi meu filho dormindo na rua, exposto ao frio da noite, e além de nada ter
feito por ele, ainda o confundi com um monte de lixo.
Entendendo
o crônica:
01 – Uma crônica, como a que
você acaba de ler, tem como melhor definição:
(A) registro de fatos
históricos em ordem cronológica;
(B) pequeno texto descritivo
geralmente baseado em fatos do cotidiano;
(C) seção ou coluna de
jornal sobre tema especializado;
(D) texto
narrativo de pequena extensão, de conteúdo e estrutura bastante variados;
(E) pequeno conto com
comentários, sobre temas atuais.
02 – O texto começa com os
tempos verbais no pretérito imperfeito – vinha, faltavam – e, depois, ocorre a
mudança para o pretérito perfeito – olhei, vi etc.; essa mudança marca a
passagem:
(A) do passado para o
presente;
(B) da descrição
para a narração;
(C) do impessoal para o
pessoal;
(D) do geral para o
específico;
(E) do positivo para o negativo.
03 – “...olhei para o lado e
vi, junto à parede, antes da esquina, ALGO
que me pareceu uma trouxa de roupa...”; o uso do termo destacado se deve a que:
(A) o autor pretende
comparar o menino a uma coisa;
(B) o cronista antecipa a
visão do menor abandonado como um traste inútil;
(C) a situação do
fato não permite a perfeita identificação do menino;
(D) esse pronome indefinido
tem valor pejorativo;
(E) o emprego desse pronome
ocorre em relação a coisas ou a pessoas.
04 – “Ainda há pouco eu vinha
para casa a pé, ...”; veja as quatro frases a seguir:
I – Daqui há pouco vou sair.
II – Está no Rio há duas
semanas.
III – Não almoço há cerca de
três dias.
IV – Estamos há cerca de
três dias de nosso destino.
As frases que apresentam
corretamente o emprego do verbo haver são:
(A) I – II
(B) I - III
(C) II - IV
(D) I - IV
(E) II – III
05 – O comentário correto
sobre os elementos do primeiro parágrafo do texto é:
(A) o cronista
situa no tempo e no espaço os acontecimentos abordados na crônica;
(B) o cronista sofre uma
limitação psicológica ao ver o menino abandonado;
(C) a semelhança entre o
menino abandonado e uma trouxa de roupa é a sujeira;
(D) a localização do fato
perto da meia-noite não tem importância para o texto;
(E) os fatos abordados nesse
parágrafo já justificam o título da crônica.
06 – Boinas-pretas é um
substantivo composto que faz o plural da mesma forma que:
(A) salvo-conduto;
(B) abaixo-assinado;
(C) salário-família;
(D) banana-prata;
(E) alto-falante.
07 – A descrição do menino
abandonado é feita no segundo parágrafo do texto; o que NÃO se pode dizer do
processo empregado para isso é que o autor:
(A) se utiliza de
comparações depreciativas;
(B) lança mão de vocábulo
animalizador;
(C) centraliza sua atenção
nos aspectos físicos do menino;
(D) mostra
precisão em todos os dados fornecidos;
(E) usa grande número de
termos adjetivadores.
08 – “Estava dormindo, como
podia estar morto”; esse segmento do texto significa que:
(A) a aparência do menino
não permitia saber se dormia ou estava morto;
(B) a posição do menino era
idêntica à de um morto;
(C) para os
transeuntes, não fazia diferença estar o menino dormindo ou morto;
(D) não havia diferença,
para a descrição feita, se o menino estava dormindo ou morto;
(E) o cronista não sabia
sobre a real situação do menino.
09 – Alguns textos, como
este, trazem referências de outros momentos históricos de nosso país; o
segmento do texto em que isso ocorre é:
(A) “Perto da Praça General
Osório, olhei para o lado e vi...”;
(B) “...ou
crivados de balas pelo Esquadrão da Morte”;
(C) “...escreveríamos toda a
obra de Dickens”;
(D) “...isto é problema para
o juizado de menores”;
(E) “Escurinho, de seus seis
ou sete anos, não mais”.
10 – “... era um bicho...”;
a figura de linguagem presente neste segmento do texto é uma:
(A) metonímia;
(B) comparação ou símile;
(C) metáfora;
(D) prosopopeia;
(E) personificação.