sexta-feira, 6 de setembro de 2024

CONTO: O ALIENISTA - CAPÍTULO IV: UMA TEORIA NOVA - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: O alienistaCapítulo IV: Uma teoria nova

            Machado de Assis

        Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos.

        Um dia de manhã,— eram passadas três semanas,— estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhavx78bPi3-PQaw-iUDd1c_iuBffptd4HzTeL0Sze-dc0cgjIpFUqvtjfdf3866agFzuSZG0HM_Ge8Bx2LMZCb-ZAjGOldFj8XNSSiQr2H4ePzvpfRZBgOB7dQmJE91fj2OP4YNSNEf223s24_LE6q3ZCjl4-jBxwLrLLJTaIsss-CU4eNEN7TyEsD788/s320/CRISPIM.jpg


        — Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.

        Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: — "Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amem a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!" — E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.

        Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço.

        — Estou muito contente, disse ele.

        — Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.

        O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:

        — Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

        Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:

        — A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.

        — Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.

        Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz; — ou por meio de matraca.

        Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão.

        De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, — um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores, — aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde, — desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século.

        — Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.

        E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.

        — Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.

        Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:

        — Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.

        O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução.

        — Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?

        Sobre o lábio fino e discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.

        A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: L&PM Editores, 1998.

Fonte: Linguagens em Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 212-214.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Fâmulo: servo, criado, empregado.

·        Fracalhão: muito fraco, medroso, covarde.

·        Biltre: cafajeste, canalha.

·        Circunspeção: cautela, cuidado, sensatez.

·        Sezão: febre intermitente.

·        Regímen: forma antiga de regime.

·        Egrégio: distinto, notável, ilustre.

02 – Qual é a ideia "arrojada e nova" que Simão Bacamarte estava desenvolvendo?

      Simão Bacamarte estava desenvolvendo a ideia de que a loucura, até então vista como uma "ilha perdida no oceano da razão", na verdade poderia ser um "continente", ou seja, algo muito mais comum e abrangente do que se pensava.

03 – Qual foi a reação inicial de Crispim Soares ao ser chamado por Simão Bacamarte?

      Crispim Soares ficou extremamente nervoso e preocupado, pensando que o chamado estava relacionado à viagem de sua esposa, D. Evarista, da qual estava muito apreensivo.

04 – Como Simão Bacamarte explica a relação entre loucura e razão para Crispim Soares?

      Simão Bacamarte explica que a razão é o "perfeito equilíbrio de todas as faculdades" e qualquer coisa fora desse equilíbrio é insânia, ou seja, loucura.

05 – Quais exemplos históricos Simão Bacamarte utiliza para sustentar sua teoria sobre a loucura?

      Simão Bacamarte cita Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, e outras figuras históricas como Maomé, Caracala, Domiciano e Calígula, entre outros.

06 – Qual foi a reação do Vigário Lopes à nova teoria de Simão Bacamarte?

      O Vigário Lopes declarou que não entendia a teoria e a considerou absurda ou colossal demais para ser praticada. Ele acreditava que a definição de loucura e razão já estava bem delimitada e que não havia necessidade de novas teorias.

07 – O que significa a expressão "caso de matraca" usada por Crispim Soares?

      "Caso de matraca" se refere à prática de anunciar algo publicamente por meio de um homem que andava pelas ruas tocando uma matraca e fazendo anúncios, uma forma antiga de divulgar informações importantes em Itaguaí.

08 – Qual é o objetivo final de Simão Bacamarte com sua nova teoria?

      O objetivo final de Simão Bacamarte é "demarcar definitivamente os limites da razão e da loucura" e extrair a "pérola" da razão, separando claramente o que é insânia do que é sanidade.

09 – Como Simão Bacamarte reage às críticas do Vigário Lopes?

      Simão Bacamarte reage com uma vaga sombra de riso, combinando desdém com comiseração, mas não verbaliza nenhuma crítica direta, apenas mantém sua confiança na ciência.

10 – Por que Crispim Soares não discorda abertamente da teoria de Simão Bacamarte?

      Crispim Soares não discorda abertamente por conta de sua modéstia e respeito por Bacamarte. Embora ache a ideia extravagante, ele prefere não contestar e expressa entusiasmo pela teoria.

11 – Como Machado de Assis utiliza a figura do alienista para explorar temas de ciência e razão?

      Machado de Assis utiliza Simão Bacamarte, o alienista, para explorar as fronteiras entre ciência e razão, questionando a definição de loucura e a autoridade dos cientistas sobre a mente humana, e também como a ciência pode ser usada para justificar ações extremas.

 

 

 

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