Conto: A margarida enlatada – Fragmento
Caio Fernando Abreu
Foi de repente. Nesse de repente, ele
ia indo pelo meio do aterro, quando viu um canteiro de margaridas. Margarida
era um negócio comum: ele via sempre margaridas quando ia para sua indústria,
todas as manhãs. Margaridas não o comoviam, porque não o comoviam levezas. Mas
exatamente de repente, ele mandou o chofer estacionar e ficou um pouco irritado
com a confusão de carros às suas costas. O motorista precisou parar um pouco
adiante, e ele teve que caminhar um bom pedaço de asfalto para chegar perto do
canteiro. Estavam ali, independentes dele ou de qualquer outra pessoa que
gostasse ou não delas: aquelas coisas vagamente redondas, de pétalas compridas
e brancas agrupadas em torno dum centro amarelo, granuloso. Margaridas. Apanhou
uma e colocou-a no bolso do paletó.
Diga-se em seu favor que, até esse
momento, não premeditara absolutamente nada. Levou a margarida no bolso,
esqueceu dela, subiu pelo elevador, cumprimentou as secretárias, trancou-se em
sua sala. Como todos os dias, tentou fazer todas as coisas que todos os dias
fazia. Não conseguiu. Tomou café, acendeu dois cigarros, esqueceu um no
cinzeiro do lado direito, outro no cinzeiro do lado esquerdo, acendeu um
terceiro, despediu três funcionários e passou uma descompostura na secretária.
Foi só ao meio-dia que lembrou da margarida, no bolso do paletó. Estava meio
informe e desfolhada, mas era ainda uma margarida.
[...]
No dia seguinte, acordou mais cedo do
que de costume e mandou o chofer rodar pela cidade. Os cartazes. As ruas cheias
de cartazes, as pessoas meio espantadas, desceu, misturou-se com o povo, ouviu
os comentários, olhou, olhou. Os cartazes. O fundo negro com uma margarida
branca, redonda e amarela, destacada, nítida. Na parte inferior, o slogan:
Ponha uma margarida na sua fossa.
Sorriu. Ninguém entendia direito.
Dúvidas. Suposições: um filme underground, uma campanha antitóxicos, um livro
de denúncia. Ninguém entendia direito. Mas ele e sua equipe sabiam. Os jornais
e revistas das duas semanas seguintes traziam textos, fotos, chamadas:
O índice de poluição dos rios é
alarmante.
Não entre nessa.
Ponha uma margarida na sua fossa.
Ou
O asfalto ameaça o homem e as
flores.
Cuidado.
Use uma margarida na sua fossa.
Ou
A alegria não é difícil.
Fique atento no seu canto.
Basta uma margarida na sua fossa.
Jingles. Programas de televisão.
Horário nobre. Ibope. Procura desvairada de margaridas pelas praças e jardins.
Não eram encontradas. Tinham desaparecido misteriosamente dos parques, lojas de
flores, jardins particulares. Todos queriam margaridas. E não havia margaridas.
As fossas aumentaram consideravelmente. O índice de alcoolismo subiu. A procura
de drogas também. As chamadas continuavam.
O índice de suicídios no país aumentou
em 50%.
Mantenha distância.
Há uma margarida na porta principal.
Contratos. Compositores. Cibernéticos.
Informáticos. Escritores. Artistas plásticos. Comunicadores de massa.
Cineastas. Rios de dinheiro corriam pelas folhas de pagamento. Ele sorria. Indo
ou vindo pelo meio do aterro, mandava o motorista ligar o rádio e ficava
ouvindo notícias sobre o surto de margaridite que assolava o país. Todos
continuavam sem entender nada. Mas quinze dias depois: a explosão.
As prateleiras dos supermercados
amanheceram repletas do novo produto. As pessoas faziam filas na caixa, nas
portas, nas ruas. Compravam, compravam. As aulas foram suspensas. As
repartições fecharam. O comércio fechou. Apenas os supermercados funcionavam
sem parar. Consumiam. Consumavam. O novo produto:
margaridas cuidadosamente acondicionadas em latas, delicadas latas acrílicas.
Margaridas gordas, saudáveis, coradas em sua profunda palidez. Mil utilidades:
decoração, alimentação, vestuário, erotismo. Sucesso absoluto. Ele sorria. A
barriga aumentava. Indo e vindo pelo aterro, mergulhado em verde, manhã e noite
— ele sorria. Sociólogos do mundo inteiro vieram examinar de perto o fenômeno.
Líderes feministas. Teóricos marxistas. Porcos chauvinistas. Artistas
arrivistas. Milionários em férias. A margarida nacional foi aclamada como a
melhor do mundo: mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil.
Em seguida começaram as negociações
para exportação: a indústria expandiu-se de maneira incrível. Todos queriam
trabalhar com margaridas enlatadas. Ele pontificava. Desquitou-se da mulher
para ter casos rumorosos com atrizes em evidência. Conferências. Debates.
Entrevistas. Tornou-se uma espécie de guru tropical. Comentava-se em rodinhas
esotéricas que seus guias seriam remotos mercadores fenícios. Ele havia tornado
feliz o seu país. Ele se sentia bom e útil e declarou uma vez na televisão que
se julgava um homem realizado por poder dar amor aos outros. Declarou
textualmente que o amor era o seu país. Comentou-se que estaria na sexta ou
sétima grandeza. Místicos célebres escreviam ensaios onde o chamavam de
mutante, iniciado, profeta da Era de Aquarius. Ele sorria. Indo e vindo. Até que
um dia, abrindo uma revista, viu o anúncio:
Margarida já era, amizade.
Saca esta transa:
O barato é avenca.
Não demorou muito para que tudo
desmoronasse. A margarida foi desmoralizada. Tripudiada. Desprestigiada. Não
houve grandes problemas. Para ele, pelo menos. Mesmo os empregados, tiveram
apenas o trabalho de mudar de firma, passando-se para a concorrente. O quente
era a avenca. Ele já havia assegurado o seu futuro — comprara sítios,
apartamentos, fazendas, tinha gordos depósitos bancários na Suíça. Arrasou com
napalm as plantações deficitárias e precisou liquidar todo o estoque do produto
a preços baixíssimos. Como ninguém comprasse, retirou-o de circulação e
incinerou-o.
Só depois da incineração total é que
lembrou que havia comprado todas as sementes de todas as margaridas. E que
margarida era uma flor extinta. Foi no mesmo dia que pegou a mania de caminhar
a pé pelo aterro, as mãos cruzadas atrás, rugas na testa. Uma manhã, bem de
repente, uma manhã bem cedo, tão de repente quanto aquela outra, divisou um
vulto em meio ao verde. O vulto veio se aproximando. Quando chegou bem perto,
ele reconheceu sua ex-esposa.
Ele perguntou:
– Procura margaridas?
Ela respondeu:
– Já era.
Ele perguntou:
– Avencas?
Ela respondeu:
– Falou.
ABREU, Caio Fernando. A margarida enlatada. In: O novo conto brasileiro.
Rio de Janeiro. INL 1985. p. 194-7.
Fonte: livro Língua e
Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª
edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 52-54.
Entendendo o conto:
01
– Qual a principal ironia presente no conto?
A ironia reside
na transformação da margarida, um símbolo de simplicidade e beleza natural, em
um produto de consumo em massa, perdendo sua essência e gerando um frenesi
consumista. A intenção inicial de criar um alerta ambiental acaba sendo
pervertida, resultando em um novo tipo de poluição: a obsessão por um produto
artificial.
02
– Qual o papel do protagonista na história?
O protagonista é
um manipulador que, a partir de uma ideia aparentemente inofensiva, desencadeia
uma verdadeira histeria coletiva. Ele se beneficia financeiramente da situação,
mas sua manipulação acaba tendo consequências imprevistas e destrutivas.
03
– Qual a crítica social presente no conto?
O conto critica o
consumismo desenfreado, a manipulação da mídia, a superficialidade das relações
humanas e a busca incessante por novidades. A sociedade retratada é facilmente
influenciável e disposta a consumir qualquer produto, mesmo que este seja
artificial e sem valor real.
04
– Qual o significado da "margarida enlatada"?
A margarida
enlatada simboliza a perda da autenticidade, a alienação e a padronização. Ela
representa a transformação de algo natural e espontâneo em um produto
industrializado e homogêneo, perdendo sua beleza e significado original.
05
– Qual o papel da natureza no conto?
A natureza,
representada pela margarida, é inicialmente um elemento de beleza e
simplicidade. No entanto, ela é transformada em um produto artificial e
explorado comercialmente. A natureza é vista como mais um objeto de consumo,
perdendo sua importância e valor intrínseco.
06
– Qual a relação entre o protagonista e a sociedade?
O protagonista
manipula a sociedade, explorando suas necessidades e desejos mais profundos.
Ele se torna uma figura de poder e influência, mas sua relação com a sociedade
é baseada na manipulação e na exploração.
07 –
Qual o final do conto?
O final do conto
é irônico e trágico. A moda da margarida enlatada passa rapidamente, e o
protagonista, após ter acumulado uma grande fortuna, vê seu império ruir. A
margarida, que antes era um símbolo de poder e riqueza, torna-se obsoleta e é
descartada.
08
– Qual o papel da mídia no conto?
A mídia
desempenha um papel fundamental na criação e na disseminação da histeria coletiva.
Os anúncios, as notícias e os programas de televisão são utilizados para
manipular a opinião pública e gerar um desejo insaciável pelo produto.
09
– Qual a mensagem principal do conto?
A mensagem
principal do conto é um alerta sobre os perigos do consumismo desenfreado e da
manipulação da mídia. A história nos convida a refletir sobre o valor das
coisas simples e a importância de preservar a autenticidade e a
individualidade.
10
– Como o conto pode ser relacionado com a sociedade contemporânea?
O conto "A
margarida enlatada" é uma crítica à sociedade contemporânea, marcada
pelo consumismo exacerbado, pela busca incessante por novidades e pela
superficialidade das relações humanas. A história continua relevante, pois os
temas abordados, como a manipulação da mídia, a obsessão por produtos e a
alienação, são cada vez mais presentes em nosso cotidiano.
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