domingo, 19 de junho de 2022

CONTO: A SOPA - DALTON TREVISAN - COM GABARITO

 CONTO:A SOPA

              Dalton Trevisan

 Subiu lentamente a escada, arrastando os pés. Estacou para respirar apenas uma vez, no meio dos trinta degraus: ainda era um homem. Entrou na cozinha e, sem olhar para a mulher, sem lavar as mãos, sentou-se à mesa. Ela encheu o prato de sopa, colocou-o diante do marido. 

Olho vermelho de dorminhoco, o filho saiu do quarto e atravessou a cozinha. O homem batia as pálpebras, embevecido com os vapores capitosos.

-- Aonde é que vai? 

O filho abriu a torneira do banheiro:

-- Fazer a barba.

-- Hora da janta. Vem comer. 

Demorava-se o rapaz, torneira fechada. Com a toalha no pescoço, não olhou o pai.

-- Não quero jantar. Sem fome. 

O homem suspendeu a colher:

-- Não quer jantar, mas vem para a mesa. 

Todas as noites, esfomeado. Enchia a colher, aspirava o caldo de feijão e, fazendo bico nos lábios grossos, tragava-o com delícia. O filho desenhava com o garfo na toalha de flores estampadas. A mulher, essa, contemplava o fogo, mão no queixo.

-- Dar uma volta. 

O homem sugava ruidosamente e, a cada chupão, o filho revolvia a ponta do garfo ao coração das margaridas. 

-- Saiu agora do quarto, filho de barão! Mas eu... Quando me deitar de dia na cama é para morrer! 

A mão do filho abandonou o garfo e não se mexeu. 

-- Volta cedo, não é?

A voz cansada da mãe, ainda de costas para a mesa. Não sabia ela que, ao defendê-lo, perdia a causa do filho? O homem esvaziou o prato e, descansando a colher, examinou as mãos enrugadas. 

-- Estas mãos... 

Sacudidas de ligeiro tremor. 

-- ... de um velho! 

A mulher apanhou o prato, encheu-o até a beirada. O marido retorceu as pontas úmidas do bigode:

-- Você não come?

O filho contornava com o garfo as pétalas na toalha. 

-- Não estou com vontade. 

-- Depois o senhor vai para o quarto. 

Cheirava a colher e sorvia a sopa, estalando a língua. O filho ergueu-se da mesa. 

-- O senhor fica sentado. Não tem pão nesta casa?

A mulher trouxe o pão. Ele não o cortava: agarrava-o inteiro na mão e mordia várias vezes; em seguida partia-o em pedaços, alinhados diante do prato, atacando um por um, entre as colheradas. 

-- Volta cedo, não é, meu filho?

De novo a mãe, nunca aprenderia. 

-- Agora não vou mais. 

O pai dizia a última palavra:

-- Uma vergonha! O chefe tem de jantar sozinho. O filho preguiçoso... até para comer. A mulher... 

Com seus brados retiniam os talheres. 

-- ... tem o estômago delicado.

Não se mexeu, curvada sobre o fogão.

-- Olhe para mim quando falo com a senhora! 

Ela se virou, a enxugar as mãos na saia. 

-- Depois de velha, melindrosa. Não pode comer com o rei da casa, que lhe sustenta o filho e lhe dá o dinheiro?

-- Sabe por que não sento.

Os dois a olharam com espanto, nunca discutiu as ordens do marido. 

-- Sei não, dona princesa. Pois me conte. 

Ele pedia, a colher no ar:

-- Perdeu a coragem, que não fala?

Outra vez a mulher deu-lhe as costas. 

-- Só nojo de você. 

Ele começou a soprar, manchava de borrifos a toalha. 

-- O quê? O quê? Repita, mulher. 

A dona abriu o fogão, espertou as brasas, encheu-o de lenha:

-- Nada espero da vida. Mas não posso te ver comer. Sei que é triste para a mulher ter nojo do marido. Você chupa a colher como se eu fosse te roubar. Não sei o que fiz a Deus para esse castigo mais desgraçado. Fui boa mulher, ainda que tenha nojo. Lavo tua roupa, deito na tua cama, cozinho tua sopa. Faço isso até morrer. Me peça o que quiser. Não que eu me sente a essa mesa com você e tua sopa mais negra. 

O filho abandonou a cozinha e desceu a escada. Os dois ouviram bater à porta da rua. O marido encarou pela primeira vez a mulher. Baixou os olhos, cabelos de gordura boiavam no caldo frio. Erguendo um lado do prato, acabou o resto de sopa e lambeu a colher. 

 

Faraco, Carlos Emílio Língua portuguesa: linguagem e interação / Faraco, Moura, Maruxo Jr. -- 3. ed. -- São Paulo: Ática, 2016.p.299/300.

Entendendo o texto

01.               De que se trata o conto?

         Relata o cotidiano de uma família durante a hora do jantar.

02.               Cite algumas características do chefe da casa.

            É um senhor mal-humorado, não muito educado, sem falta de modos e de higiene na hora de se alimentar.

03.               Quais os personagens que fazem parte dessa narrativa?

           O pai, a mãe e o filho.

04.               Qual é a tipologia predominante no conto:

a)   Narrativa.

b)   Argumentativa.

c)   Descritiva.

05.               Em relação ao discurso das personagens- Presença de discurso: a) direto

                b) indireto

06. Onde ocorrem os fatos?

       Na cozinha, na mesa do jantar.

07.Que fato provocou o desenrolar dos acontecimentos descritos no texto?

     O fato do homem comer a sopa sozinho.

08. Em que momento surge o conflito da história?

      Na hora em que a mulher diz que tem nojo do marido. “Você chupa a colher como se eu fosse te roubar. Não sei o que fiz a Deus para esse castigo mais desgraçado. Fui boa mulher, ainda que tenha nojo. Lavo tua roupa, deito na tua cama, cozinho tua sopa. Faço isso até morrer. Me peça o que quiser. Não que eu me sente a essa mesa com você e tua sopa mais negra”.

 09. Qual o desfecho (epílogo ou conclusão) da história?

       O filho abandonou a cozinha e desceu a escada. Os dois ouviram bater à porta da rua. O marido encarou pela primeira vez a mulher. Baixou os olhos, cabelos de gordura boiavam no caldo frio. Erguendo um lado do prato, acabou o resto de sopa e lambeu a colher. 

MÚSICA(ATIVIDADES): CTRL + ALT + DEL - SUBCONSCIENTE - COM GABARITO

 Música(Atividades): CTRL + ALT + DEL

         Subconsciente

O que veio pra ajudar
Só está te atrapalhando
Pouco a pouco, você está
Perdendo o seu lado humano

Vão te usar e dominar
Você vai ser robotizado
Cuidado pra no virar
mais um modelo ultrapassado

Refrão:
Control Alt Del
Control Alt Del
Vão finalizar
Vão te deletar

Informação via internet
Você virou marionete
Conectado ao computador
Você virou mais um robô

Servidor não encontrado
O Windows está travado
A operação é ilegal
Essa história é sempre igual.

SUBCONSCIENTE. CTRL + ALT + DEL. Disponível em: http://vagalume.uol.com.br/subconsciente/ctrl-alt-del.html. Acesso em: 20 jun. 2009

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 60-1.

Entendendo a música:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Control Alt Del: três teclas de computador normalmente usadas quando o computador está apresentando algum problema. Elas direcionam o usuário para o gerenciador de tarefas do computador, que oferecerá alternativas para solucionar o problema.

·        Servidor não encontrado: frase que aparece na tela dos computadores quando não foi possível conectar o computador à internet.

02 – Identifique o tema do texto, apresentado nas duas primeiras estrofes.

      O temor de que o ser humano se transforme num robô, perca seu lado humano pelo uso excessivo do computador (o que veio pra ajudar / só está te atrapalhando).

03 – Relacione o tema do texto ao vocabulário usado nele.

      O tema do texto é a crítica à mecanização a que o uso dos computadores pode levar os seres humanos. Ao usar uma linguagem própria dos computadores para tratar do tema, o autor promove uma reflexão sobre como esses termos invadiram o cotidiano, argumentando a favor de sua tese, a de que o ser humano pode estar se tornando uma máquina.

04 – A partir do contexto geral do texto, explique com suas palavras o sentido do refrão.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O ser humano será deletado, ou seja, deixará de existir, de importar num mundo guiado por máquinas, programas de computador e ações mecânicas como a de apertar as teclas Control, Alt e Del.

05 – Qual é a crítica implícita no uso do termo “marionete” na penúltima estrofe do texto?

      A crítica é dirigida à falta de critério na recepção de informações. As pessoas se deixariam manipular como marionetes, sem critérios e juízos próprios, acreditando em tudo aquilo que veem e leem na internet.

 

MÚSICA(ATIVIDADES): TODO CAMBURÃO TEM UM POUCO DENAVIO NEGREIRO - MARCELO YUKA - COM GABARITO

Música(Atividades): Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro

              Marcelo Yuka

Tudo começou quando a gente conversava
naquela esquina ali
de frente àquela praça
veio os homens
e nos pararam
documento por favor
então a gente apresentou
mas eles não paravam
qual é negão? Qual é negão?
o que que tá pegando?
qual é negão? 

Qual é negão?

É mole de ver
que em qualquer dura
o tempo passa mais lento pro negão
quem segurava com força a chibata
agora usa farda
engatilha a macaca
escolhe sempre o primeiro
negro pra passar na revista
pra passar na revista

todo camburão tem um pouco de navio negreiro
todo camburão tem um pouco de navio negreiro


É mole de ver
que para o negro
mesmo a AIDS possui hierarquia
na África a doença corre solta
e a imprensa mundial
dispensa poucas linhas
comparado, comparado
ao que faz com qualquer
comparado, comparado
figurinha do cinema
comparado, comparado
ao que faz com qualquer
figurinha do cinema
ou das colunas sociais

todo camburão tem um pouco de navio negreiro
todo camburão tem um pouco de navio negreiro.

YUKA, Marcelo. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Disponível em: www.lyricsmania.com/. Acesso em: 10 nov. 2009.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 89.

Entendendo a música:

01 – Que situação é descrita nas duas primeiras estrofes do texto?

      Uma batida policial, ou seja, os policiais estão revistando alguns homens, no caso, negros. “Os homens” é uma gíria usada para se referir à polícia. A palavra “camburão” também faz referência ao contexto da batida policial.

02 – Que termo empregado no texto evidencia a intertextualidade proposta pelo título?

      Chibata, ou seja, o açoite, o chicote usado para punir os escravos.

03 – Explique o sentido do refrão a partir das ideias expostas no texto.

      Segundo se pode inferir da leitura, assim como os escravos eram punidos com a chibata na época da escravidão, os negros continuam a ser punidos contemporaneamente. Em vez do uso da chibata, hoje se usa a arma, mas, em ambas as épocas, o negro é o principal suspeito, o principal punido.

04 – Qual é a principal crítica social presente no texto? Justifique sua resposta.

      A crítica central é a diferença de tratamento que recebem os negros e os brancos na sociedade brasileira, como consequência das heranças do escravismo, como se vê no trecho: “Em qualquer dura o tempo passa mais lento pro negão”.

 

 


POEMA: MEU SONHO - ÁLVARES DE AZEVEDO - COM GABARITO

 Poema: Meu Sonho

             Álvares de Azevedo

EU
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Porque brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso....
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas.... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? — que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?

O FANTASMA
Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...

           AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. Rio de Janeiro / Belo Horizonte: Garnier, 1994. p. 153-4.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 80.

Entendendo o poema:

01 – O poema apresenta certa regularidade na distribuição dos versos. Identifique o critério de organização dos versos no poema.

      O poema é composto por três estrofes de seis versos e uma estrofe de seis versos que aparece “quebrada”, composta por duas estrofes de três versos.

02 – Faça a escansão dos dois primeiros versos do poema. O poema apresenta que métrica?

      Ca-va-lei-ro-das-ar-mas-es-cu-ras, / On-de-vais-pe-las-ter-vas-im-pu-ras. Trata-se de versos com métrica regular: versos com nove sílabas poéticas, também chamados eneassílabos.      

03 – O ritmo é uma das marcas centrais desse poema. Releia o poema em voz alta e identifique a estrutura rítmica que ele apresenta.

      É provável que os alunos precisam de ajuda para perceber a construção rítmica do poema. Nesse caso, leia para a classe a primeira estrofe do poema acentuando com força as sílabas tônicas e lendo com menos intensidade as sílabas átonas. Isso revelará de forma evidente o ritmo do poema: são nove sílabas poéticas absolutamente regulares: a terceira, a sexta e a nona são sempre pronunciadas com mais intensidade. Ca-va-LEI-ro-das-AR-mas-es-CU-ras/on-de-VAIS-pe-las-TER-vas-im-PU-ras/com-a es-PA-da-san-GREN-ta-na-MÃO?/por-que-BRI-lham-teus-O-olhos-ar-DENtes/ e-ge-MI-dos-nos-LÁ-bios-fre-MEN-tes/ver-tem-FO-go-do-TEU-co-ra-ÇÃO?

04 – Faça o levantamento do esquema de rimas do poema.

      O poema apresenta um esquema de rimas regular: AABCCB.

05 – O poema apresenta um diálogo. Quem são os interlocutores desse diálogo?

      O eu lírico, apresentado como “eu” e um “fantasma”, que responde nos três últimos versos.

06 – Em que ambiente ocorre o diálogo? Justifique com elementos do texto.

      Num ambiente campestre, durante a noite. Há um cavaleiro a galope, numa longa montanha, e referências ao ambiente noturno – escuridão, treva, noite.

07 – O Romantismo, em especial o ultrarromantismo, valorizava o mistério, o sinistro. De que modo o ambiente identificado na resposta anterior contribui para a atmosfera de mistério que predomina no poema?

      As imagens noturnas estão associadas, no poema de Álvares de Azevedo, ao mistério, como se comprova pelo uso de termos como: remorso, caveiras, morto, vingança, assombrada, febre, delírio, etc.

08 – Ao lado das imagens que se referem ao mistério e ao sinistro, há palavras / imagens no poema que fazem referência ao sentimento amoroso erótico. Identifique-as no texto.

      O contexto geral do poema, associado ao ritmo, faz com que algumas imagens adquiram conotação erótica: olhos ardentes, gemidos, lábios frementes, fogo do teu coração.

09 – Escrever a paráfrase de um texto consiste em recontar o texto usando suas próprias palavras. Mesmo quando se trata de poemas, as paráfrases são feitas em parágrafos, não em versos. Esse procedimento auxilia bastante na compreensão de textos mais simbólicos, em que pode ser difícil apreender as ideias numa primeira leitura. Com o objetivo de compreender melhor o poema lido, faça a paráfrase dele.

      O sujeito poético parece ser seguido por um cavaleiro que tem nas mãos uma espada suja de sangue. Esse cavaleiro tem olhos ardentes, lábios frementes, ou seja, vibrantes. Ele não consegue identificar quem é o cavaleiro e estabelece hipóteses: seria ele o remorso, galopando no vale, por trevas impuras, pálido como um morto na tumba? Pode ser também alguém que busca vingança, alguém misterioso, que assombra o sujeito poético. O fantasma responde que é o sonho da esperança do sujeito poético, uma febre que nunca descansa, um delírio que irá causar a morte do eu lírico.

10 – Retome o título do poema. Em sua opinião, ele é adequado? Justifique sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Pode-se dizer que sim, pois o poema apresenta uma atmosfera fantasiosa, uma situação que foge aos padrões da realidade, ou seja, uma atmosfera onírica, isto é, de sonho. Por outro lado, é possível responder que a atmosfera se aproxima à de um pesadelo, já que as sensações angustiosas são as que predominam ao longo do poema.

11 – Um dos temas centrais do ultrarromantismo é a conjugação de amor e morte, numa abordagem muitas vezes erótica. É possível inferir que esse tema é trabalhado no poema? Justifique sua resposta.

      Sim. A partir do diálogo entre o “Eu” e o “Fantasma”, é possível inferir que o temor do cavaleiro vem do medo de amar, de seu erotismo, marcados pela febre, pela angústia. Embora a ideia de morte esteja muito mais presente no poema que a ideia de amor, que vem subentendida, é possível inferir que é o amor e a culpa pela ideia de amar, pela descoberta do sexo, representada pela “impureza”, que fazem com que o “Eu” se sinta delirante, febril.

 

 

POEMA: QUEBRANTO - CUTI - COM GABARITO

 Poema: Quebranto 

            Cuti


às vezes sou o policial que me suspeito

me peço documentos

e mesmo de posse deles

me prendo

e me dou porrada

 

às vezes sou o zelador

não me deixando entrar em mim mesmo

a não ser

pela porta de serviço

 

às vezes sou o meu próprio delito

o corpo de jurados

a punição que vem com o veredicto

 

às vezes sou o amor que me viro o rosto

o quebranto

o encosto

a solidão primitiva

que me envolvo no vazio

 

às vezes as migalhas do que sonhei e não comi

outras o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas

 

um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto

depois um imperador deposto

a república de conchavos no coração

e em seguida uma constituição

que me promulgo a cada instante

também a violência dum impulso

que me ponho do avesso

com acessos de cal e gesso

chego a ser

 

às vezes faço questão de não me ver

e entupido com a visão deles

me sinto a miséria concebida como um eterno

começo

 

fecho-me o cerco

sendo o gesto que me nego

a pinga que me bebo e me embebedo

o dedo que me aponto

e denuncio

o ponto em que me entrego.

 

às vezes!...

Cadernos negros: Os melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998. p. 48.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 92-3.

Entendendo o poema:

01 – Releia as quatro primeiras estrofes do poema. Segundo o texto, que papéis o sujeito poético assume em diferentes circunstâncias de sua vida?

      Às vezes ele assume o papel de policial, que reprime mesmo sem motivos; às vezes assume o papel de zelador, exercendo discriminação contra si mesmo; às vezes assume o papel de crime (que não cometeu) e da justiça (que condena injustamente); e, por fim, às vezes assume o papel do amor preconceituoso, que o abandona à própria solidão.

02 – Releia a estrofe a seguir:

“às vezes sou o zelador

não me deixando entrar em mim mesmo

a não ser

pela porta de serviço”

Agora explique: como você entende esses versos? Que contexto eles sugerem?

      Os versos remetem a uma situação de desigualdade e de preconceito. O entrar pela “porta de serviço” aponta para a humilhação muitas vezes imposta de não se poder usar a “porta social”, o que sugere a oposição casa grande & senzala, existente no passado.

03 – Releia estes versos:

“às vezes as migalhas do que sonhei e não comi

outras o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas”

a)   Que verbo está implícito neles?

O verbo implícito, nos dois versos, é o ser. Às vezes (sou) a migalha do que sonhei e não comi / outras (sou) o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas.

b)   Que recursos de linguagem são usados pelo autor no segundo verso dessa estrofe?

O autor faz uso da comparação (outras como o bem-te-vi) e também da aliteração, figura de linguagem em que se repetem os sons consonantais (outras o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas.)

04 – O poema faz referências claras à história do Brasil, sugerindo que os negros sempre estiveram à margem dos processos históricos, sofrendo duramente as suas consequências. À luz dessa perspectiva, interprete o verso: “um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto”.

      O verso refere-se ao modo como foi conduzida a abolição dos escravos no Brasil. O sujeito poético, que assume a sua afrodescendência, coloca-se no lugar de seus antepassados que, depois da abolição, ficaram sem lugar social, pois não houve políticas públicas para sua integração no universo do trabalho assalariado. Como se sabe, esse fato está na base da exclusão social dos negros que se perpetua até hoje.

05 – Releia com atenção os seguintes versos:

“às vezes faço questão de não me ver

e entupido com a visão deles

me sinto a miséria concebida como um eterno

começo”.

Quem seriam “eles”, os responsáveis por formular uma determinada visão capaz de “entupir” o sujeito poético?

      O pronome “eles” pode ser entendido como “os outros” – os não negros –, que veiculam uma visão negativa em relação aos afrodescendentes. Trata-se de uma visão hegemônica em nossa sociedade, reiterada nos jornais, nos programas de televisão, nas novelas, enfim, nos meios de comunicação que frequentemente (re)produzem uma visão estereotipada sobre o negro.

06 – O poema apresenta um tom melancólico, decorrente do pessimismo expresso pelo eu lírico. Porém, essa visão negativa é relativa é relativizada no último verso do poema: “Às vezes!...”. Explique por que isso acontece.

      O último verso do poema – “Às vezes!...” – enfatiza que a percepção negativa que o eu lírico tem de si mesmo não é permanente, mas ocasional, ocorrendo apenas “às vezes”. Essa constatação nos dá margem para imaginar que, em outras situações, o que acontece é justamente o contrário – a sua autovalorização. As reticências que finalizam o texto sugerem justamente a continuidade da reflexão proposta.

07 – Você sabe o que significa “quebranto”? Confira o sentido da palavra no dicionário e, depois, elabore uma hipótese para explicar por que o termo foi escolhido para dar título ao poema.

      O significado de “quebranto” é “mau-olhado”, ou seja, um suposto efeito malévolo que a atitude ou o olhar de algumas pessoas produzem em outras. O poema chama-se “quebranto” exatamente porque aborda o efeito negativo que a perspectiva hegemônica de desvalorização do negro exerce sobre o sujeito poético, fazendo com que ele interiorize o preconceito veiculado socialmente.

POEMA: SAUDADES DO ESCRAVO - LUIZ GAMA - COM GABARITO

 Poema: SAUDADES DO ESCRAVO

            Luiz Gama

Escravo – não, não morri

Nos ferros da escravidão;

Lá nos palmares vivi,

Tenho livre o coração!

Nas minhas carnes rasgadas,

Nas faces ensanguentadas

Sinto as torturas de cá;

Deste corpo desgraçado

Meu espírito soltado

Não partiu – ficou-me lá!...

 

Naquelas quentes areias

Naquela terra de fogo,

Onde livre de cadeias

Eu corria em desafogo...

Lá nos confins do horizonte...

Lá nas alturas do céu...

De sobre a mata florida

Esta minh’alma perdida

Não veio – só parti eu.

 

A liberdade que eu tive

Por escravo não perdi-a;

Minh’alma que lá só vive

Tornou-me a face sombria,

O zunir do fero açoite

Por estas sombras da noite

Não chega, não, aos palmares!

Lá tenho terras e flores...

Nuvens e céus... os meus lares!

 

[...]

 

Escravo – não, ainda vivo,

Inda espero a morte ali;

Sou livre embora cativo,

Sou livre, inda não morri!

Meu coração bate ainda

Nesse bater que não finda;

Sou homem – Deus o dirá!

Deste corpo desgraçado

Meu espírito soltado

Não partiu – ficou-me lá!

São Paulo, 1850.

GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas e outros poemas. Edição preparada por Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 162-164. Fragmento.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 90.

Entendendo o poema:

01 – Quem é o eu lírico do poema? Justifique com base no texto.

      É um homem negro, um escravo que vive cativo, mas sente sua alma livre.

02 – No poema, é possível notar uma oposição entre um “lá” e um “cá”, num diálogo intertextual com a Canção do exílio de Gonçalves Dias. No poema gonçalvino, o “lá” era representado pelo Brasil e o “cá” representado por Portugal. Identifique os lugares representados pelo “lá” e pelo “cá” no poema de Luiz Gama.

      O “lá” é o lugar da liberdade: o quilombo dos Palmares (Lá nos palmares vivi). Já o “cá” é o lugar da escravidão, a senzala (Nas faces ensanguentadas / Sinto as torturas de cá).

03 – O eu lírico apresenta idealismo em seu poema, ao separar o corpo da alma, com privilégio da alma sobre o corpo. Qual a importância desse idealismo no contexto de escravidão do poema?

      Esse idealismo é responsável por reiterar a liberdade: embora o corpo do eu lírico possa estar escravo, sua alma é livre, como ele expressa no trecho: “A liberdade que eu tive / Por escravo não perdi-a: / Minh’alma que lá só vive”. Ou seja, ainda que cativo, a alma do escravo não se rende e se recusa a abandonar a esperança de liberdade, vagando pelo “lá” onde era livre.

04 – Considerando suas respostas aos itens anteriores, é possível ou não afirmar que se trata de um poema de resistência? Justifique.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim, trata-se um poema de resistência. A própria citação do Quilombo dos Palmares corrobora essa leitura, já que esse foi um lugar de união e luta conjunta dos escravos contra a realidade escravista. Afora isso, o eu lírico não apresenta uma postura de resignação em relação à escravidão, mas luta pela liberdade, alimentando-se da memória dos tempos em que viveu livre, recusando-se a aprisionar sua alma.

POEMA: SE EU MORRESSE AMANHÃ - ÁLVARES DE AZEVEDO - COM GABARITO

 Poema: SE EU MORRESSE AMANHà

              Álvares de Azevedo

Se eu morresse amanhã, viria ao menos

Fechar meus olhos minha triste irmã;

Minha mãe de saudade morreria

Se eu morresse amanhã!

 

Quanta glória pressinto em meu futuro!

Que aurora de porvir e que manhã!

Eu perdera chorando essas coroas

Se eu morresse amanhã!

 

Que sol! Que céu azul! Que doce n’alva

Acorda a natureza mais louçã!

Não me batera tanto amor no peito

Se eu morresse amanhã!

 

Mas essa dor da vida que devora

A ânsia de glória, o dolorido afã...

A dor no peito emudecera ao menos

Se eu morresse amanhã!

AZEVEDO, Álvares de. Cadernos Poesia brasileira: Romantismo. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1995. p. 18.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 79-80.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Louçã: bela, viçosa.

·        Afã: trabalho, empenho.

02 – Identifique como estão distribuídas as rimas no poema.

      Apenas os segundos versos do poema rimam com o quarto, que funciona como um refrão, repetido ao final de cada estrofe.

03 – Qual é a métrica apresenta no poema?

      O poema é composto por versos decassílabos, à exceção do refrão, que é composto por uma redondilha maior: Se eu/mor/res/se a/ma/nhã, vi/ri/a ao /me/nos; Fe/char/meus/olhos/mi/nha/tris/te ir/mã (dez cada); Se/eu/mor/res/se a/ma/nhã (sete).

04 – O título do poema funciona também como refrão. Que efeito de sentido essa repetição, associada ao ritmo, produz no poema?

      O ritmo do refrão é diferente dos demais versos, como se constata no item 3. Aliada a isso, a repetição do título na forma de refrão faz com que a frase “Se eu morresse amanhã” se torne uma ladainha, uma lamentação, mas também uma espécie de desejo, muitas vezes repetido.

05 – O eu lírico apresenta-se dividido: de um lado lamenta perder a vida, de outro, vislumbra algumas vantagens em sua morte. O que ele lamenta perder e o que vê como vantagem?

      O eu lírico lamenta causar sofrimento à mãe e à irmã, perder as glórias futuras e o contato com a natureza; por outro lado, acredita que a morte seria capaz de terminar com a “dor no peito”.

06 – Relacione esse poema às características do ultrarromantismo.

      O poema de Álvares de Azevedo é típico do ultrarromantismo: apresenta o sentimento de spleen, descontentamento com a vida, a temática é mórbida, o tom, melancólico

CRÔNICA: A CHAVE DO TAMANHO - JOSÉ GERALDO COUTO - COM GABARITO

 Crônica: A chave do tamanho

             José Geraldo Couto

        No futebol brasileiro, o “ao” e o “inho” expressam muito mais do que a mera estatura dos jogadores


        A grande contratação do Corinthians para tentar se reerguer, por enquanto, é o zagueiro Chicão, ex-Figueirense, que já chega ao clube suspenso por duas partidas.

        Como o novo contratado vem se juntar a Betão, Zelão e Carlão, fiquei pensando nessa fartura de nomes no aumentativo num time que já teve dias melhores com jogadores como Tupãzinho, Silvinho, Marcelinho e Ricardinho.

        Na história do futebol brasileiro, é muito mais fácil encontrar craques cujo nome termina em "inho" do que em "ão".

        Por que será?

        Talvez porque o aumentativo geralmente conote força física, disposição e uma certa brutalidade, mas raramente esteja associado a uma técnica refinada.

        De um lado, Ditão, Betão, Ronaldão, Chicão.

        Do outro, Julinho, Luizinho, Marcelinho, Palhinha, Juninho, Djalminha, Ronaldinho...

        À primeira vista poderia haver uma divisão de trabalho baseada nessa "chave do tamanho".

        Os grandões na defesa, os baixinhos no ataque.

        Mas não é bem assim.

        Houve zagueiros de primeira ordem com nomes no diminutivo –Edinho, Marinho Peres, Luisinho (do Atlético-MG e da seleção brasileira) – assim como bons atacantes terminados em "ão": Luizão, Fernandão.

        Deixo de fora dessa brincadeira, é claro, os nomes e apelidos que terminam em "ão" mas não são aumentativos: Tostão, Falcão, Alemão.

        O interessante é notar como o "ão" e o "inho" têm a ver com a nossa cultura luso-afro-brasileira, com o nosso jeito e com o nosso afeto.

        O ditongo "ão" é um som que praticamente só existe na língua portuguesa. Se você estiver numa cidade estrangeira e captar numa conversa alheia um "ão" bem anasalado, pode saber que ali está um português, um brasileiro ou um africano de ex-colônia lusa.

        Já o "inho", a tendência de nomear tudo no diminutivo, que encantou sábios como Mário de Andrade e Darcy Ribeiro, é uma característica da nossa afetividade luso-afro-brasileira.

        "Tudo aquilo que o malandro pronuncia/ com voz macia/ é brasileiro, / já passou de português", cantou Noel.

        O modo mais carinhoso e encantador de modular esse diminutivo talvez seja o mineiro: "Miguelim", "um bocadim", "amorzim".

        Para quem trabalha com a linguagem verbal, o nome das coisas e dos seres é tudo.

        Quando chamamos alguém pelo aumentativo, exprimimos respeito e, quem sabe, temor. Usando o diminutivo, comunicamos carinho, fazemos um afago com a voz, mesmo que involuntariamente.

        Parte da tragédia social em que estamos afundados se revela no fato de chamarmos bandidos inescrupulosos de "Fernandinho Beira-Mar", "Marcinho VP" e outros apelidos semelhantes.

        Talvez seja um modo de reconhecer que esses meninos-monstros são frutos do nosso ventre, são os rebentos que, em nossa infinita negligência, colocamos no mundo.

        Mas do que estávamos falando mesmo?

          COUTO, José Geraldo. A chave do tamanho. Folha de S. Paulo, Caderno Esportes, D4, 15 dez. 2007.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 122-3.

Entendendo a crônica:

01 – A crônica reflete sobre o uso de sufixos diminutivos e aumentativos empregados em um universo específico. Que universo é esse?

      É o universo do futebol, já que são discutidos os nomes pelos quais chamamos os jogadores.

02 – Identifique a hipótese elaborada pelo autor do texto para justificar a existência de um maior número de craques cujos nomes terminam em –inho.

      Segundo o autor do texto, isso aconteceria porque o sufixo –inho estaria relacionado à “técnica refinada” e o sufixo –ão estaria identificado com força física, disposição e brutalidade. Assim, os jogadores cujos nomes terminam em –inho estariam no ataque (fazendo gols) e os jogadores cujos nomes terminam em –ão estariam na defesa (possuindo menor visibilidade).

03 – Ao afirmar “Mas não é bem assim”, o autor do texto relativiza a hipótese anteriormente formulada e tece considerações sobre a “cultura luso-afro-brasileira”. O que expressariam os nomes próprios terminados em –inho e –ão no interior dessa cultura?

      Os nomes terminados em –ão expressariam respeito e temor; os terminados em –inho expressariam carinho e afeto.

04 – Ainda segundo o autor do texto, parte da tragédia social brasileira se revela no fato de chamarmos bandidos de “Fernandinho Beira-Mar” e “Marcinho VP”. O que ele quis dizer com isso?

      Ele quis dizer que há certa afetividade no modo como chamamos essas pessoas. Em última instância, isso poderia indicar nossa complacência e tolerância com o crime.

05 – Justifique o título do texto.

      O título se justifica porque o texto se propõe a interpretar os sentidos do uso de sufixos diminutivos e aumentativos na língua portuguesa, especialmente no universo do futebol. Assim, encontrar a “chave do tamanho” seria justamente compreender o sentido da escolha dos nomes dos jogadores.