Crônica: A palavra
Rubem Braga
Tanto que tenho falado, tanto que tenho
escrito como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa
pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de
mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse
por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de
cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma
palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido
alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti
no momento – e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava.
Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele,
cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando
trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia,
algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco
alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em
casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven – o canário
começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do
velho artista morto e o pequeno pássaro de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído – talvez palavras de algum poeta antigo –
foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente
soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste
tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as
suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
Rubem
Braga
PS: Esta crônica foi publicada em 13/11/1959
Entendendo a crônica:
01 – Assinale a
alternativa correta que indica inferência em relação a crônica de
Rubem Braga.
a)
Somente pessoas tristes é que despertam com
melodias esquecidas dentro da alma de alguém.
b)
As palavras têm, às vezes, o poder de nos
irritar em qualquer etapa da vida.
c)
As nossas remotas esperanças precisam de um
sorriso de princesa que vive num reino muito distante.
d)
À semelhança da narrativa do autor,
determinada palavra pode nos remeter ao passado e trazer momentos de alegria na
vida.
e)
Pessoas que não sabem viver em voz alta são
hostis e cheias de mágoas, por isso uma frase espontânea não lhe faz bem algum.
02 – O cronista qualifica
seu ofício de “imprudente”. O ofício de cronista é imprudente porque:
a)
É obrigado a viver em voz alta.
b)
Tem de escrever muito.
c)
Pode ferir alguém.
d)
Pode ajudar alguém.
03 – Observe o seguinte
fato ocorrido no texto: “Minha amiga assobiou uma pequena frase melódica de
Beethoven”. A consequência desse fato foi que:
a)
O autor ficou distraído.
b)
O cronista ajudou alguém a se reconciliar
consigo mesmo.
c)
O canário começou a cantar
alegremente.
d)
Uma princesa que estava triste, sorriu.
04 – Melodias é uma
metáfora usada no texto para representar:
a)
Uma canção esquecida.
b)
Coisas boas, sonhos.
c)
Palavras espontâneas, amigas.
d)
Palavras de algum poeta antigo.
05 – A frase que expressa
a ideia principal da crônica é:
a)
Sem querer, a palavra fere.
b)
Por acaso, a palavra ajuda.
c)
Pela palavra, vivemos em voz alta.
d)
Sempre a palavra é perigosa.
06 – Segundo o texto, sentir
numa pessoa uma reticência de mágoas significa que a pessoa:
a)
Confessa timidamente que foi magoada.
b)
Demonstra mágoa sem dizer nada.
c)
Interrompe o que estava dizendo,
magoada.
d)
Manifesta indiferença.
07 – Para o autor Rubem
Braga, escrever crônicas é:
a)
Ser conhecido por todo mundo.
b)
Não conseguir esconder nada de
ninguém.
c)
Contar aos outros suas experiências pessoais.
d)
Escrever tudo o que pensa e sente.
08 – Nos dois
primeiros parágrafos, o cronista fala dos efeitos da palavra que tanto pode
ferir, como ajudar.
a)
Gerar mágoas ou levar alguém a se
reconciliar consigo mesmo.
b)
Levar alguém a sentir vontade de fazer algo
bom.
c)
Gerar hostilidade em alguém.
d)
Gerar tristeza e revolta em alguém.
09 – “Agora sei que outro
dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém”. As
palavras sublinhadas no período acima exercem, respectivamente, a função
sintática de:
a)
Sujeito – Objeto indireto.
b)
Sujeito – Objeto direto.
c)
Sujeito – complemento nominal.
d)
Adjunto adnominal – sujeito.
10 – “Minha amiga
assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven”. O sujeito da oração
acima é:
a)
Minha amiga.
b)
Beethoven.
c)
Uma pequena frase.
d)
Frase melódica.
11 – Imprudente ofício é
este, de viver em voz alta. O ofício a que Rubem Braga se refere é o seu
próprio, o de escritor. Para caracterizá-lo, além do adjetivo “imprudente”, ele
recorre a uma metáfora: “Viver em voz alta”. O sentido dessa metáfora relativa
ao ofício de escrever, pode ser entendido como:
a)
Superar conceitos antigos.
b)
Prestar atenção aos leitores.
c)
Criticar prováveis interlocutores.
d)
Tornar públicos seus pensamentos.
12 – Alguma coisa que eu
disse distraído – talvez palavras de algum poeta antigo – foi despertar
melodias esquecidas dentro da alma de alguém. O cronista revela que sua fala ou
escrita pode conter algo escrito por “algum poeta antigo”. Ao fazer essa revelação,
o cronista se refere ao seguinte recurso:
a)
Polissemia.
b)
Pressuposição.
c)
Exemplificação.
d)
Intertextualidade.
13 – O episódio do canário
traz uma contribuição importante para o sentido do texto, ao estabelecer uma
analogia entre a palavra do escritor e a música assobiada pela amiga. A
inserção desse episódio no texto reforça a seguinte ideia:
a)
A intolerância leva o artista ao isolamento.
b)
A arte atinge as pessoas de modo
inesperado.
c)
A solidão é remediada com soluções
artísticas.
d)
A profissão envolve o artista com conflitos
desnecessários.
14 – O final do texto revela
uma reflexão do escritor acerca do poder da sua escrita, a partir da menção a
uma princesa e a um povo. Essa menção sugere, principalmente, que o escritor
deseja que suas palavras tenham o poder de:
a)
Desfazer as ilusões antigas.
b)
Permear as classe sociais.
c)
Ajudar as pessoas discriminadas.
d)
Abolir as hierarquias tradicionais.