quarta-feira, 2 de abril de 2025

CONTO: O MAL DAS MONTANHAS - HELOISA SEIXAS - COM GABARITO

 Conto: O mal das montanhas

           Heloisa Seixas

        Na encosta, recoberta por uma neve rala de verão, lá estava. Deitado de bruços, as costas, já despidas da roupa – que o tempo ou os animais tinham arrancado –, brilhando ao sol com um estranho viço. Parei olhando a fotografia, fascinada, embora sem entender ao certo o que havia ali que me atraísse com tal força.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEivdWcEUsIeJ_v4CO4UHtOswgb-47LgncQr0Jenh3iRImRPsCTbn7infxbIxYVP7gixtOwY5E_ptuHbiJqO69Fhu8CcRxeMcTqv5JuquN0Wg8we39vhXwth5UWqX7vNpewKq79Inwm5iR4SPAcKgXWLrR8wpceKWg5dsadWkHFmLcqqxOzBxrQtZHxF12o/s1600/MONTANHA.jpg


        Era a foto de um alpinista, morto há muitas décadas enquanto tentava subir o Monte Everest. Por causa de um verão especialmente forte, com temperaturas subindo mais do que de costume, seu corpo – que há tantos anos a montanha vinha escondendo – tinha afinal sido encontrado. Sabia-se que ele morrera ao tentar chegar ao cume, numa época em que ainda não havia roupas especiais nem comunicações que tornassem minimamente segura a empreitada. Mas onde, não se sabia ao certo. Agora, seu corpo, congelado em perfeitas condições, seria estudado.

        Olhei ainda mais atentamente para a fotografia. A pele muito branca, intacta. Quase como se ele dormisse – embora eu conhecesse bem a história de seu sono eterno, gelado. Não podia ver-lhe o rosto, pois caíra de bruços. Os braços ainda estavam vestidos pelo que lhe restara das roupas. Mas aquelas costas nuas me comoviam para além do que seria natural. Não conseguia passar a página da revista. E sabia que o que sentia não era apenas curiosidade mórbida – era algo mais.

        Olhei e olhei a foto, até que de repente me veio à mente a lembrança de uma frase, dita pelo explorador inglês George Mallory, ao ser perguntado por que razão queria escalar o Everest. Ele (que também acabaria morrendo na escalada do monte) respondera, simplesmente: “Porque está lá”. E, ante a lembrança dessa frase, senti subir de dentro de mim uma sensação cujos rumores reconheci de imediato. Uma sensação de encontro, de identificação.

        É isso. Eu me sinto irmanada a esses exploradores que dedicam a vida às mais loucas expedições, lançando-se montanha acima com seus corpos castigados, enfrentando o frio mais agudo, o vento mais cortante, o ar rarefeito. Semanas, meses, anos de planejamento e dedicação, de tortura e terror, encarando o medo e a morte, apenas para alcançar o topo – um momento efêmero, que mal pode ser desfrutado, tamanho o cansaço, tamanha a adversidade das condições em que chegam lá em cima. E tudo, para quê? Por quê?

        Porque a montanha está lá.

        E é aí, nessa resposta, que eu me encaixo. É ela que me faz irmã desses homens. Nós, escritores, somos como eles. Deixando correr sobre o papel o sangue que se transformará em poemas, contos, livros, para quê? Por quê? Não sabemos. Nunca saberemos. Escrever é igualmente vão, igualmente louco – como essa febre que assola os exploradores, o mal das montanhas.

Contos mínimos. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 123-124.

Fonte: Português. Uma proposta para o letramento. Magda Soares – 8º ano – 1ª edição. Impressão revista – São Paulo, 2002. Moderna. p. 193-194.

Entendendo o conto:

01 – Qual a descoberta que fascina a narradora no início do conto?

      A descoberta do corpo congelado de um alpinista morto há décadas no Monte Everest, encontrado devido ao degelo causado por um verão excepcionalmente quente.

02 – O que atrai a narradora na fotografia do alpinista morto?

      A pele branca e intacta do alpinista, que transmite uma sensação de sono eterno e gelado, e suas costas nuas, que evocam uma comoção inexplicável na narradora.

03 – Qual a frase de George Mallory que ressoa com a narradora?

      "Porque está lá". Essa frase, dita por Mallory ao ser questionado sobre sua motivação para escalar o Everest, revela um senso de identificação e irmandade na narradora.

04 – Como a narradora se identifica com os alpinistas?

      Ela se vê como irmã desses exploradores, compreendendo a obsessão e a paixão que os impulsionam a enfrentar desafios extremos, mesmo diante do perigo e da morte.

05 – Qual a comparação que a narradora faz entre os alpinistas e os escritores?

      Ambos compartilham uma busca incessante e inexplicável, seja pela conquista do topo de uma montanha ou pela criação de obras literárias, sem saber ao certo o propósito final.

06 – Qual a metáfora central do conto?

      "O mal das montanhas" representa a obsessão e a paixão que consomem tanto alpinistas quanto escritores, impulsionando-os a perseguir seus objetivos com fervor e determinação.

07 – Qual o significado da frase "Escrever é igualmente vão, igualmente louco"?

      Essa frase expressa a incompreensão da narradora sobre a natureza da criação literária, que, assim como a escalada de montanhas, parece não ter um propósito racional ou justificativa lógica.

 

 

 

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