Conto: O mal das montanhas
Heloisa Seixas
Na encosta, recoberta por uma neve rala
de verão, lá estava. Deitado de bruços, as costas, já despidas da roupa – que o
tempo ou os animais tinham arrancado –, brilhando ao sol com um estranho viço.
Parei olhando a fotografia, fascinada, embora sem entender ao certo o que havia
ali que me atraísse com tal força.

Era a foto de um alpinista, morto há
muitas décadas enquanto tentava subir o Monte Everest. Por causa de um verão
especialmente forte, com temperaturas subindo mais do que de costume, seu corpo
– que há tantos anos a montanha vinha escondendo – tinha afinal sido
encontrado. Sabia-se que ele morrera ao tentar chegar ao cume, numa época em
que ainda não havia roupas especiais nem comunicações que tornassem minimamente
segura a empreitada. Mas onde, não se sabia ao certo. Agora, seu corpo,
congelado em perfeitas condições, seria estudado.
Olhei ainda mais atentamente para a
fotografia. A pele muito branca, intacta. Quase como se ele dormisse – embora
eu conhecesse bem a história de seu sono eterno, gelado. Não podia ver-lhe o
rosto, pois caíra de bruços. Os braços ainda estavam vestidos pelo que lhe
restara das roupas. Mas aquelas costas nuas me comoviam para além do que seria natural.
Não conseguia passar a página da revista. E sabia que o que sentia não era
apenas curiosidade mórbida – era algo mais.
Olhei e olhei a foto, até que de
repente me veio à mente a lembrança de uma frase, dita pelo explorador inglês
George Mallory, ao ser perguntado por que razão queria escalar o Everest. Ele
(que também acabaria morrendo na escalada do monte) respondera, simplesmente:
“Porque está lá”. E, ante a lembrança dessa frase, senti subir de dentro de mim
uma sensação cujos rumores reconheci de imediato. Uma sensação de encontro, de
identificação.
É isso. Eu me sinto irmanada a esses
exploradores que dedicam a vida às mais loucas expedições, lançando-se montanha
acima com seus corpos castigados, enfrentando o frio mais agudo, o vento mais
cortante, o ar rarefeito. Semanas, meses, anos de planejamento e dedicação, de
tortura e terror, encarando o medo e a morte, apenas para alcançar o topo – um
momento efêmero, que mal pode ser desfrutado, tamanho o cansaço, tamanha a
adversidade das condições em que chegam lá em cima. E tudo, para quê? Por quê?
Porque a montanha está lá.
E é aí, nessa resposta, que eu me
encaixo. É ela que me faz irmã desses homens. Nós, escritores, somos como eles.
Deixando correr sobre o papel o sangue que se transformará em poemas, contos,
livros, para quê? Por quê? Não sabemos. Nunca saberemos. Escrever é igualmente
vão, igualmente louco – como essa febre que assola os exploradores, o mal
das montanhas.
Contos mínimos. Rio de
Janeiro: Record, 2001, p. 123-124.
Fonte: Português. Uma
proposta para o letramento. Magda Soares – 8º ano – 1ª edição. Impressão
revista – São Paulo, 2002. Moderna. p. 193-194.
Entendendo o conto:
01 – Qual a descoberta que
fascina a narradora no início do conto?
A descoberta do
corpo congelado de um alpinista morto há décadas no Monte Everest, encontrado
devido ao degelo causado por um verão excepcionalmente quente.
02 – O que atrai a narradora
na fotografia do alpinista morto?
A pele branca e intacta do alpinista, que
transmite uma sensação de sono eterno e gelado, e suas costas nuas, que evocam
uma comoção inexplicável na narradora.
03 – Qual a frase de George
Mallory que ressoa com a narradora?
"Porque está
lá". Essa frase, dita por Mallory ao ser questionado sobre sua motivação
para escalar o Everest, revela um senso de identificação e irmandade na
narradora.
04 – Como a narradora se
identifica com os alpinistas?
Ela se vê como
irmã desses exploradores, compreendendo a obsessão e a paixão que os
impulsionam a enfrentar desafios extremos, mesmo diante do perigo e da morte.
05 – Qual a comparação que a
narradora faz entre os alpinistas e os escritores?
Ambos
compartilham uma busca incessante e inexplicável, seja pela conquista do topo
de uma montanha ou pela criação de obras literárias, sem saber ao certo o
propósito final.
06 – Qual a metáfora central
do conto?
"O mal das
montanhas" representa a obsessão e a paixão que consomem tanto alpinistas
quanto escritores, impulsionando-os a perseguir seus objetivos com fervor e
determinação.
07 – Qual o significado da
frase "Escrever é igualmente vão, igualmente louco"?
Essa frase
expressa a incompreensão da narradora sobre a natureza da criação literária,
que, assim como a escalada de montanhas, parece não ter um propósito racional
ou justificativa lógica.
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