sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

NOTÍCIA: VIAGEM NO TEMPO É COISA DE FICÇÃO CIENTÍFICA? LUCAS MASCARENHAS DE MIRANDA - COM GABARITO

 Notícia: Viagem no tempo é coisa de ficção científica?

        Muitos filmes retratam viagens para o passado ou para o futuro, fenômeno que, embora gere reflexões sobre suas consequências, não é descartado pela teoria da relatividade de Einstein, a principal ferramenta da física para o estudo do universo

        Vivemos em um universo em mudança. Vemos o Sol nascer e se pôr, vemos as folhas das árvores caírem, vemos nosso corpo envelhecer. Todas essas mudanças são efeitos daquilo que chamamos de “tempo”.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDerZ40Gy4xyx3ZIFR4Q0TYE9Stvdg9pGonuCy0uEC0fYui98dhOpTwgmPQs8yDOFD9E4Bug9kJ0Cwsi6cH0orBYokbQy4MsH1yPVKPhNRTpgRF7DR0ynwA7o0ac_fNL9kBkSQWMmS_nVzTd5P2IZ-Rt8de8QNfIIbUUyfQJqamn3mxqo4V23LII5CX6M/s320/viagem-no-tempo-sem-paradoxos.jpg

        Para a ciência, tempo é uma forma de mensurar a mudança das coisas, assim como podemos medir a distância percorrida por um veículo ou a temperatura da sua pele. Ao atribuir números que indiquem a passagem do tempo, os cientistas foram capazes de construir equações que preveem, por exemplo, como os corpos se movimentam.

        Durante muitos séculos, acreditou-se que o tempo passava igual para todo mundo e não sofria interferência de nada. Mas, nos anos 1905 e 1915, o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) publicou as duas partes da sua teoria da relatividade, que colocou em xeque esse conceito de tempo, contrariando toda a ciência vigente. Na cultura pop, as empolgantes consequências da teoria da relatividade deram asas à imaginação de escritores e roteiristas e, desde então, não faltaram obras sobre buracos de minhoca, viagens no tempo e paradoxos temporais.

        O conceito moderno de tempo

        A teoria de Einstein trata o tempo como algo relativo, ou seja, ele não passa igual para todos os seres e objetos. Um relógio nas mãos do Flash, por exemplo, contaria o tempo mais lentamente quando o herói está em altas velocidades. Esse efeito é chamado de dilatação temporal. Graças a essa relação de dependência entre a velocidade com que nos movemos no espaço e a velocidade com que nos movemos no tempo (em outras palavras, o quão rápido o tempo passa), Einstein elaborou uma teoria na qual espaço e tempo estão interligados e se influenciam mutuamente, formando o chamado espaço-tempo.

        Mais tarde, Einstein descobriu que a presença de matéria e energia em uma região do espaço também pode afetar o espaço-tempo e causar distorções na forma como o tempo passa. Isso aparece no filme Interestelar, que mostra como um buraco negro poderia retardar a passagem de tempo, fazendo com que uma hora próximo a ele demore dezenas de anos para um observador distante. Esse filme, aliás, é sempre um ótimo exemplo (talvez o melhor), quando falamos de teoria da relatividade no cinema.

        Por mais exótica que essa teoria possa parecer, ela é muito bem fundamentada por diversos experimentos e até hoje nenhum deles a contrariou. Hoje, buracos negros são uma realidade incontestável – e os recém-laureados com o prêmio Nobel de física deram contribuições justamente nessa área. Há também várias provas do impacto da velocidade do observador e da gravidade na passagem do tempo. Mas não é essa a parte da teoria de Einstein que mais faz sucesso na cultura pop.

        As equações da relatividade não privilegiam uma direção temporal, ou seja, elas não proíbem viagens no tempo (seja para o futuro, seja para o passado). É claro que, o fato de uma equação matemática permitir determinadas soluções não significa que elas realmente existam no mundo real, ou que existam da forma como acreditamos que sejam. Mas, se os buracos negros (que, por muito tempo, eram apenas uma solução matemática de equações) foram comprovados por observações astronômicas, por que descartar a possibilidade da viagem no tempo?

        Viagem no tempo e seus paradoxos

        Queridinha da ficção científica, a possibilidade da viagem no tempo é, de fato, uma das mais empolgantes consequências das equações da relatividade.

        A sua popularidade reside no enorme potencial narrativo de se voltar para o passado (ou para o futuro). Além disso, são muitos os paradoxos que podem surgir quando imaginamos uma viagem no tempo.

        Um dos paradoxos temporais reside na pergunta: uma pessoa que viaja para o passado pode alterá-lo de modo a provocar mudanças no presente? Se isso fosse possível, o viajante poderia matar o próprio avô e tornar a sua existência impossível, ou matar o criador da máquina do tempo e fazer com que sua estadia no passado se tornasse impossível

        Esses e os vários outros paradoxos temporais que existem levam a crer que a viagem no tempo (ou, mais especificamente, a viagem para o passado) é impossível, mesmo sendo aparentemente permitida pela matemática.

        O astrofísico russo Igor Novikov (1935-) formulou, na década de 1970, o importante princípio de autoconsistência, que afirma que, se um evento pode dar origem a um paradoxo, ou causar qualquer alteração no passado que provoque uma inconsistência no universo, então a probabilidade de esse evento ocorrer é nula. Ou seja, se for possível voltar no tempo, essa viagem deve ocorrer de modo a não provocar nenhuma alteração no presente.

        O físico Stephen Hawking (1942-2018) argumentou, em artigo publicado em 1992 na revista Physical Review D, que suas pesquisas sustentam fortemente a chamada conjectura de proteção cronológica, segundo a qual “as leis da física não permitem o surgimento de curvas de tempo fechadas”, ou seja, a própria natureza não permitiria que algo voltasse a um ponto do passado e continuasse se movendo até chegar novamente ao ponto de partida (formando uma curva fechada). É essa linha do tempo fechada que gera os vários paradoxos e, por alguma razão, a própria natureza parece se encarregar de evitar que isso aconteça.

        Os buracos de minhoca, uma espécie de atalho que conecta dois pontos diferentes no espaço e no tempo, seriam uma forma de se criar essa curva de tempo fechada. No entanto, Hawking mostrou que a geometria desses buracos de minhoca (que nem sequer sabemos se existem) os torna objetos muito instáveis, que tendem a se desfazer quase instantaneamente, impedindo a passagem de uma partícula sequer.

        É possível viajar no tempo?

        Existem, sim, cientistas que não descartam essa possibilidade. Os pesquisadores Francisco Lobo e Paulo Crawford, da Universidade de Lisboa, afirmam, em texto publicado em 2002 no ArXiv, que a simples existência dos paradoxos temporais não prova que viagem no tempo seja matemática e fisicamente impossível.

        O prodígio estudante Germain Tobar e seu supervisor Fabio Costa, da Universidade de Queensland (Austrália), publicaram recentemente, na revista Classical and Quantum Gravity, uma solução matemática capaz de remover os paradoxos da viagem no tempo.

        A matemática que desenvolveram sustenta a seguinte ideia: se você viaja para o passado e impede o paciente zero de ser infectado, você vai acabar se infectando e se tornando o paciente zero (ou outra pessoa será). Ou seja, você poderia mudar o passado, mas o universo se autoajustaria e o futuro não seria afetado.

        É uma visão determinista do passado (coerente com a ideia de que o passado já aconteceu e modificações nele não são capazes de modificar o futuro). Essa sofisticada matemática de fato remove os paradoxos da viagem no tempo, independentemente do quanto o passado seja alterado.

        O que fica evidente é que não há nada definitivo sobre viagem no tempo, nada que garanta que ela seja possível ou não. E esse é um dos grandes charmes da ciência: a incerteza, que move cientistas de todas as áreas a investigarem cada vez mais profundamente a natureza que vivemos.

        Por fim, vale dizer que os filmes sobre viagem no tempo (por mais incoerentes e cheios de paradoxos que sejam) são muito essenciais! Eles nos obrigam a refletir sobre esses paradoxos e nos ajudam a desenvolver uma concepção menos careta sobre o tempo (algo que a física já faz há mais de 100 anos). Por isso, nunca é demais assistir a um bom filme sobre viagem no tempo e desafiar suas convicções sobre a natureza, afinal, o que sabemos do universo ainda é uma gota no oceano.

Lucas Mascarenhas de Miranda – Físico e divulgador de ciência – Universidade Federal de Juiz de Fora.

Entendendo a notícia:

01 – O que é o conceito de tempo na ciência?

      O tempo é uma forma de mensurar as mudanças das coisas, assim como se mede distância ou temperatura. Ele permite aos cientistas atribuir números à passagem do tempo e prever fenômenos como o movimento dos corpos.

02 – Qual foi a principal contribuição de Albert Einstein sobre o tempo?

      Einstein demonstrou que o tempo é relativo, ou seja, ele não passa de maneira igual para todos. Essa ideia é central na teoria da relatividade, que interliga o espaço e o tempo, formando o espaço-tempo.

03 – O que é dilatação temporal?

      É o efeito que ocorre quando o tempo passa mais lentamente para um objeto que se move a grandes velocidades. Por exemplo, um relógio com alguém em alta velocidade contaria o tempo mais devagar comparado a um observador parado.

04 – Os buracos negros influenciam o tempo?

      Sim, a presença de buracos negros pode distorcer o espaço-tempo, retardando a passagem do tempo. Próximo a um buraco negro, o tempo pode correr de forma muito mais lenta em comparação com um observador distante.

05 – A viagem no tempo é permitida pelas equações da relatividade?

      Sim, as equações da relatividade não proíbem viagens no tempo, seja para o futuro ou para o passado. No entanto, isso não significa que tais viagens sejam possíveis no mundo real.

06 – O que é o princípio de autoconsistência de Novikov?

        O princípio afirma que, se um evento pode gerar um paradoxo ou inconsistência no universo, a probabilidade de ele ocorrer é nula. Assim, se viagens no tempo forem possíveis, elas devem ocorrer de forma que não alterem o presente.

07 – Como filmes sobre viagem no tempo contribuem para a ciência?

      Esses filmes ajudam a explorar os paradoxos temporais e desafiam nossas ideias sobre o tempo, promovendo reflexões e incentivando uma visão mais ampla sobre a natureza e o universo.

 

 

 

CONTO: O SEGUNDO DOUTOR: A CIDADE SEM NOME - (FRAGMENTO) - MICHAEL SCOTT - COM GABARITO

 Conto: O segundo doutor: A cidade sem nome – Fragmento

             Michael Scott

        [...]

        -- Parece que estamos viajando a dias – resmungou Jamie.

        -- Oito horas na contagem de tempo humana – respondeu o Doutor, sem desviar o olhar de um pequeno globo que parecia uma lâmpada aumentada, enquanto cuidadosamente enrolava dois fios, um dourado e outro prateado, em sua base.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiiZAR-t0T7cqClBPOQ6cvF9cMjg8njFw332ZX4VVX07caStIfQGOsM0f9JCSmtICopws27NhZ31GP2InqhYlnZACJGH62ftKmRZbHeHbRcsKzz6TygBVM5Dq1gdws8oMzdiQK5lSGLwkdB5N4Vj7J6zDYoqcjibyqEfmVlT4pbvfBrTNJCcsFkpjAcefQ/s320/CIDADE.jpg

        -- Achei que a TARDIS pudesse se locomover instantaneamente para qualquer lugar do tempo ou espaço.

        -- Ela pode, e normalmente consegue.

        -- Então por que está demorando tanto?

        -- Em todo o nosso tempo juntos, nunca viajamos para tão longe. – O globo brilhou, apagou e acendeu. – Ah, funcionou! Você sabia que eu sou um gênio?

        -- É o que você vive me dizendo. – O globo emitia uma pálida luz azul. O Doutor o encarava intensamente, girando-o devagar entre os dedos. – Consegui conectar isso aqui aos sensores tempo-espaciais do exterior. Agora, vejamos...

        O globo se tornou negro por um momento e então ficou repleto de pontos prateados. Uma faixa de névoa branca apareceu ao longo do centro.

        O Doutor arquejou, aterrorizado:

        -- Ah, pela madrugada! Porcaria!

        -- O que foi? O que você está vendo? – perguntou Jamie, tentando enxergar a imagem.

        -- Isto! Isto aqui! – O Doutor apontou para o globo. Jamie observou dando de ombros.

        -- Os pontos são estrelas – explicou o Doutor, exasperado.

        -- E a linha branca cortando ao meio... – complementou Jamie, mas prontamente ele percebeu a resposta da sua pergunta. – É a Via Láctea.

        -- Sim.

        -- Ela parece bem distante.

        -- Parece porque está.

        Enquanto falavam, a nuvem alongada da distante Via Láctea se esmaecia até desaparecer na escuridão do espaço. Então, uma a uma, as estrelas foram se apagando até que nada restou além da completa escuridão.

        -- Parou de funcionar? – Perguntou Jamie.

        -- Não – respondeu o Doutor em um tom sombrio. – Ainda está funcionando.

        -- Mas o que aconteceu com as estrelas?

        -- Elas se foram. Estamos seguindo rumo ao limite do espaço.

        [...]

Michael Scott. O segundo doutor: A cidade sem nome. Rio de Janeiro.

Entendendo o conto:

01 – Quanto tempo Jamie achava que estavam viajando, e qual foi a resposta do Doutor?

      Jamie pensava que estavam viajando há dias, mas o Doutor explicou que tinham passado apenas oito horas no tempo humano.

02 – Por que a viagem na TARDIS estava demorando tanto desta vez?

      Segundo o Doutor, essa era a viagem mais distante que já tinham feito juntos, justificando o tempo maior.

03 – O que o Doutor fez para rastrear o ambiente externo?

      Ele conectou um pequeno globo aos sensores tempo-espaciais do exterior, permitindo observar imagens do espaço e analisar onde estavam.

04 – Qual foi a reação do Doutor ao observar o globo pela primeira vez?

      Ele ficou aterrorizado ao ver o globo, exclamando: "Ah, pela madrugada! Porcaria!"

05 – O que o globo mostrou inicialmente e como Jamie interpretou a imagem?

      O globo mostrou pontos prateados (estrelas) e uma faixa branca (a Via Láctea), que Jamie reconheceu após a explicação do Doutor.

06 – O que aconteceu com a Via Láctea e as estrelas enquanto eles observavam?

      A Via Láctea desapareceu gradualmente, seguida pelas estrelas, deixando apenas a escuridão total.

07 – O que o Doutor concluiu ao ver que o globo ainda funcionava, mas as estrelas haviam desaparecido?

      Ele afirmou que as estrelas não haviam desaparecido por um mau funcionamento, mas porque estavam seguindo rumo ao limite do espaço, onde não havia mais estrelas.

 

 

 

CONTO: ADMIRÁVEL MUNDO NOVO - CAP.II - FRAGMENTO - ALDOUS HUXLEY - COM GABARITO

 Conto: Admirável Mundo Novo Cap. II – Fragmento

            Aldous Huxley

        [...]. O D. I. C. e seus alunos entraram no elevador mais próximo e foram levados ao quinto andar. 

        Berçários. Salas de Condicionamento Neopavloviano, indicava o painel de avisos.

        O Diretor abriu uma porta. Entraram numa vasta peça nua, muito clara e ensolarada, pois toda a parede do lado sul era constituída por uma única janela. Meia dúzia de enfermeiras, com as calças e jaquetas do uniforme regulamentar de linho branco de viscose, os cabelos assepticamente cobertos por toucas brancas, estavam ocupadas em dispor sobre o assoalho vasos com rosas numa longa fila, de uma extremidade à outra da peça. Grandes vasos, apinhados de flores.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjOqWkExhC-ql5jIizT2mO1sE-xfwF7acqqIWJsuB9C_SWxoQpY6VWFRZ7JJwEZ79mUOUnpIrqdQpdlUZXIeEihdMzBP3K8qwtqJMgTt0rOOvOCfwpD-OIu4IJb7DHneGDc94pH4xN7CuRh07g0B-a9yA20Nkf47n0o-bMM6RIjXOk-F7_Mg2hF7zXBxVw/s320/MUNDO.jpg


        Milhares de pétalas, amplamente desabrochadas e de uma sedosa maciez, semelhantes às faces de inumeráveis pequenos querubins, [...].

        As enfermeiras perfilaram-se ao entrar o D.I.C.

        -- Coloquem os livros – disse ele, secamente.

        Em silêncio, elas obedeceram à ordem. Entre os vasos de rosas, os livros foram devidamente dispostos – uma fileira de livros infantis, cada um aberto, de modo convidativo, em alguma gravura agradavelmente colorida, de animal, peixe ou pássaro.

        -- Agora, tragam as crianças.

        Elas saíram apressadamente da sala e voltaram ao cabo de um ou dois minutos, cada qual empurrando uma espécie de carrinho, onde, nas suas quatro prateleiras de tela metálica, vinham bebês de oito meses, todos exatamente iguais (um Grupo Bokanovsky, evidentemente) e todos (já que pertenciam à casta Delta) vestidos de cáqui.

        -- Ponham as crianças no chão.

        Os bebês foram descarregados.

        -- Agora, virem-nas de modo que possam ver as flores e os livros.

        Virados, os bebês calaram-se imediatamente, depois começaram a engatinhar na direção daquelas massas de cores brilhantes, daquelas formas tão alegres e tão vivas nas páginas brancas. Enquanto se aproximavam, o sol ressurgiu de um eclipse momentâneo atrás de uma nuvem. As rosas fugiram como sob o efeito de uma súbita paixão interna; uma energia nova e profunda pareceu espalhar-se sobre as páginas reluzentes dos livros. Das filas de bebês que se arrastavam a quatro pés, elevaram-se gritinhos de excitação, murmúrios e gorgolejos de prazer.

        O Diretor esfregou as mãos.

        -- Excelente! – comentou. – Até parece que foi feito de encomenda.

        Os mais rápidos engatinhadores já haviam alcançado o alvo. Pequeninas mãos se estenderam incertas, tocaram, pegaram, despetalando as rosas transfiguradas, amarrotando as páginas iluminadas dos livros. O Diretor esperou que todos estivessem alegremente entretidos. Depois disse:

        -- Observem bem. – E, levantando a mão, deu o sinal.

        A Enfermeira-Chefe, que se encontrava junto a um quadro de ligações na outra extremidade da sala, baixou uma pequena alavanca.

        Houve uma explosão violenta. Aguda, cada vez mais aguda, uma sirene apitou. Campainhas de alarme tilintaram, enlouquecedoras.

        As crianças sobressaltaram-se, berraram; suas fisionomias estavam contorcidas pelo terror.

        -- E agora – gritou o D.I.C. (pois o barulho era ensurdecedor) – agora vamos gravar mais profundamente a lição por meio de um ligeiro choque elétrico.

        Agitou de novo a mão, e a Enfermeira-Chefe baixou uma segunda alavanca. Os gritos das crianças mudaram subitamente de tom. Havia algo de desesperado, de quase demente, nos urros agudos e espasmódicos que elas então soltaram.

        Seus pequenos corpos contraíam-se e retesavam-se; seus membros agitavam-se em movimentos convulsivos, como puxados por fios invisíveis.

        -- Nós podemos eletrificar todo aquele lado do assoalho – berrou o Diretor como explicação. – Mas isso basta — continuou, fazendo um sinal à enfermeira.

        As explosões cessaram, as campainhas pararam de soar, o bramido da sirene foi baixando de tom em tom até silenciar. Os corpos rigidamente contraídos distenderam-se, o que antes fora o soluço e o ganido de pequenos candidatos à loucura expandiu-se novamente no berreiro normal do terror comum.

        -- Ofereçam-lhes de novo as flores e os livros.

        As enfermeiras obedeceram; mas à aproximação das rosas, à simples vista das imagens alegremente coloridas do gatinho, do galo que faz cocorocó e do carneiro que faz bé, bé, as crianças recuaram horrorizadas; seus berros recrudesceram subitamente.

        [...]

        -- Elas crescerão com o que os psicólogos chamavam um ódio "instintivo" aos livros e às flores. Reflexos inalteravelmente condicionados. Ficarão protegidas contra os livros e a botânica por toda a vida. – O Diretor voltou-se para as enfermeiras. – Podem levá-las.

        Sempre gritando, os bebês de cáqui foram colocados nos seus carrinhos e levados para fora da sala, deixando atrás de si um cheiro de leite azedo e um agradabilíssimo silêncio.

        Um dos estudantes levantou a mão.

        Embora compreendesse perfeitamente que não se podia permitir que pessoas de casta inferior desperdiçassem o tempo da Comunidade com livros e que havia sempre o perigo de lerem coisas que provocassem o indesejável descondicionamento de algum dos seus reflexos, no entanto... enfim, ele não conseguia entender o referente às flores. Por que dar-se ao trabalho de tornar psicologicamente impossível aos Deltas o amor às flores?

        [...]

        As flores do campo e as paisagens, advertiu, têm um grave-defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica. Decidiu-se que era preciso aboli-lo, pelo menos nas classes baixas; [...]  

Aldous Huxley. Admirável Mundo Novo. 2 ed. São Paulo. 2001. p. 51-55.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o objetivo do experimento realizado com as crianças?

      O experimento busca condicionar psicologicamente as crianças da casta Delta a desenvolverem um ódio "instintivo" a livros e flores. Isso visa protegê-las contra o desperdício de tempo com leituras e a natureza, que não são úteis para a produtividade da sociedade.

02 – O que ocorre quando as crianças são expostas aos estímulos das flores e dos livros?

      Inicialmente, as crianças sentem prazer e curiosidade pelas flores e pelos livros. No entanto, após serem submetidas a sons ensurdecedores e choques elétricos, passam a associar esses objetos ao medo e ao sofrimento, rejeitando-os completamente.

03 – Por que as crianças devem ser condicionadas a odiar as flores?

      O amor à natureza, representado pelas flores, é considerado improdutivo para as castas inferiores, pois as flores e paisagens não geram consumo ou atividade industrial. Por isso, é preciso eliminar esse interesse para favorecer a produtividade.

04 – Como o condicionamento é aplicado às crianças?

      O condicionamento é realizado com estímulos dolorosos e perturbadores, como sons altos e choques elétricos, para criar associações negativas entre as crianças e os objetos desejados, como flores e livros.

05 – Qual é a importância de impedir as castas inferiores de terem acesso a livros?

      Impedir o acesso aos livros evita que as castas inferiores leiam conteúdos que possam descondicionar seus reflexos ou questionar a ordem social, garantindo que permaneçam submissas e produtivas para a sociedade.

06 – Como os bebês da casta Delta são apresentados no experimento?

      Os bebês da casta Delta, idênticos por serem de um Grupo Bokanovsky, vestem-se de cáqui e são trazidos em carrinhos. Eles são posicionados para ver os livros e as flores antes de serem condicionados.

07 – O que revela o experimento sobre a sociedade do conto?

      O experimento mostra que a sociedade de Admirável Mundo Novo valoriza a manipulação e o controle psicológico desde a infância, eliminando qualquer comportamento ou interesse que não contribua para a eficiência, o consumo e a estabilidade social.

 

CONTO: OS DRAGÕES - FRAGMENTO - MURILO RUBIÃO - COM GABARITO

 Conto: Os Dragões – Fragmento

           Murilo Rubião

        Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXQMgQZAKMM6YyIQ43gOaXGErzgzxFSH1PXxFvXskZjhVOH51hUWZLLf6V3-UWLZtrNXBn0f5rrR_3mJFxaYIz8MEgB8_2aJvB3yc2GzdAnB1w35qqTRN5Nczq1hLK_FGJMamPjuPpnnNzDsI4Bt5UQv55-A63qEvdmade1qIYIGvIVlfE5EfoI4_35gk/s320/dragoes-520x286.jpg


        Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.

        A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático Você também pode

        Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.

        Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.

        [...]

Murilo Rubião. Os Dragões. Obras completas. São Paulo. Companhia das Letras. 2010.

Entendendo o conto:

01 – Como os primeiros dragões foram recebidos na cidade?

      Os dragões enfrentaram preconceito e ignorância por parte da população. Eles foram alvo de discussões sobre sua origem e natureza, sem receber a educação ou a compreensão necessária.

02 – Qual foi a reação do vigário à chegada dos dragões?

      O vigário acreditava que os dragões eram enviados do demônio, o que levou à decisão de isolá-los em uma casa velha previamente exorcizada, impedindo sua educação inicial.

03 – Quem tentou interpretar a natureza dos dragões e o que afirmava?

      Um leitor de jornais, com conhecimentos científicos limitados, sugeriu que os dragões poderiam ser monstros antediluvianos, enquanto o povo recorria a crenças populares, comparando-os a lobisomens e mulas sem cabeça.

04 – Qual era a percepção das crianças em relação aos dragões?

      As crianças, que brincavam secretamente com os dragões, sabiam que eles eram apenas simples dragões, sem maldade ou ameaça. No entanto, sua opinião foi ignorada pelos adultos.

05 – O que o fragmento revela sobre a sociedade em que os dragões chegaram?

      O texto mostra uma sociedade presa ao preconceito, ignorância e superstição, incapaz de lidar de forma racional e compassiva com o desconhecido, deixando de aproveitar a oportunidade de educar e compreender os dragões.

 

 

PEÇA DE TEATRO: SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO - WILLIAM SHAKESPEARE - ATO III - CENA II - COM GABARITO

 PEÇA DE TEATRO: SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO

                            William Shakespeare

ATO III,Cena II


Outra parte do bosque. Entra Oberon.

OBERON - Saber eu desejara se Titânia já despertou, e mais: o que primeiro lhe caiu sob os olhos, de que esteja perdida de paixão. Mas eis que chega meu mensageiro.
(Entra Puck.)
Então, travesso espírito, qual foi a brincadeira mais estranha que aparelhaste neste bosque mágico?

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgVZziG4uPdrIK1ViGfosH5185E7p84KnNtcNNjJMzfv_892urUgE2nvdGWkphAJyAivlIdpzyHab0S_SJE3Vdt9r0uHS4wSzOIBUYb2r-prRIbmaD7qvQCyxN9ybU6mClmtskdlZfFSRu3lnSkMjEiM0iIebdHqRzqoAPjU62Pq7I83fqXUBDf_Fi42BA/s320/BOSQUE.jpg



PUCK - A rainha se encontra loucamente de um monstro apaixonada. Quase em frente do sagrado lugar em que ela a sono mui tranquilo se achava em abandono, unia tropa de artífices de Atenas, capazes de trabalho rude, apenas, para ganhar o pão com o suor do rosto, ensaiava uma peça de mau gosto, para o dia solene do himeneu da Amazona garbosa e o grão Teseu. O casca-grossa de mais rude engenho de todos eles, que, com muito empenho, de Píramo fazia, a cena deixa por um momento, à espera de sua deixa. Eu, então, da ocasião me aproveitando para em um monstro o transformar, infando, sobre os ombros lhe pus, sem mais demora, de burro uma cabeça. Eis chegada a hora da resposta de Tisbe, o instante azado para na peça eu por o meu bocado. Ao vê-lo, os outros, tal como bulhento bando de patos bravos, no momento em que percebem caçador matreiro que para eles se arrasta sorrateiro, ou como gralhas de pés rubros, quando a um tiro súbito, a gritar, voando, se espalham pelo céu - cheios de medo
também se afundam logo no arvoredo. Para mais assustá-los, sapateio sem parar, deles todos pelo meio: uns sobre os outros caem, por socorro gritando, em desespero: Atenas! Morro! Minguando-lhes o senso na medida que aumenta o medo, quanto não tem vida lhes causa dano, que, pelos caminhos vão deixando
nas pontas dos espinhos aqueles membros do teatro imbele parte das roupas, dos chapéus, da pele.
Dominados, assim, todos do medo, deixei-os ir. Só fica no brinquedo nosso Píramo, em burro transformado. Nesse instante, porém, tendo acordado. Titânia, apaixonou-se loucamente do belo monstro que lhe estava em frente.

OBERON - Eu próprio melhor plano não teria podido excogitar. Mas a magia da planta no ateniense já puseste, conforme te falei, de peito agreste?

PUCK - A dormir o encontrei, Já liquidado ficou também esse negócio. Ao lado dele estava a ateniense desprezada que por ele vai ser alcandorada.
(Entram Demétrio e Hérmia)

OBERON - Põe-te de lado; eis o ateniense duro.
PUCK - Ela é a mesma; mas que este é outro eu juro.
DEMÉTRIO - Por que tais expressões gastais comigo? Deixai rigores para o vosso inimigo.


HÉRMIA - Com censuras agora me contento, mas sobejas razões teu ardimento num crescendo me dá de amaldiçoar-te. Se de Lisandro a vida, em qualquer parte, no sono tu tiraste, e já manchado de sangue tens o pé, nenhum cuidado te cause prosseguir na furibunda devastação: a perna inteira afunda,.. Oh!
mata-me, também! O sol não era tão fiel ao dia, como ele a mim. Possível lhe seria fugir de mim, para fazer-me guerra? Mais fácil fora acreditar que a terra se deixasse furar por uma pua e que emitisse através dela a lua sua luz clara para, do outro lado, deixar o irmão ao meio-dia enfiado. Dúvida já não tenho: és assassino; esse rosto o proclama, o olhar ferino.

DEMÉTRIO - O aspecto devo ter de assassinado, não de assassino, porque transpassado me deixou tua insólita crueldade. Mas brilhas com tão grande claridade, apesar da feição dura e severa, como a luzente Vênus na alta esfera.

HÉRMIA - A que vem isso com Lisandro, agora? Ah, bom Demétrio, dá-mo sem demora.

DEMÉTRIO - Antes eu dera aos cães sua carcaça.

HÉRMIA - Sai, monstro! Cão! Desfaçatez tão crassa minha paciência virginal esgota. Já não tenho esperança nem remota. Sei que o mataste; mas, como um bargante, dos homens fugir deves de ora em diante. Oh! Por amor de mim, conta-me tudo, que em minha grande dor encontro escudo. De frente a olhá-lo sempre te abstiveste, e, no sono, o mataste? Oh peito agreste! Poderia algum verme, alguma cobra, tão depressa causar tão hedionda obra? Víbora, disse, que ela mais pungente picada do que tu não
dá, serpente!

DEMÉTRIO - Funda-se nalgum erro o teu cuidado. Se Lisandro está mal, não sou culpado, nem sei que morto esteja ele, também.

HÉRMIA - Dize, então, por favor, que ele está bem.

DEMÉTRIO - Se o disser, que vantagem me vem disso?

HÉRMIA - A de jamais me ver; maior serviço possível não será, como ora o faço, sejas ou não culpado em seu trespasso.
(Sai.)

DEMÉTRIO - Nessa disposição não há segui-la. Vou esperar que fique mais tranquila e procurar dormir.
Quando em falência se acha o sono, menor é a resistência ao peso da tristeza. Desta sorte talvez melhor esse ônus eu suporte.
(Deita-se e dorme.)

OBERON - Que fizeste? Houve engano manifesto; foi posto o suco em um amante honesto; deixaste falso um fido namorado, sem que o remisso fosse castigado.

PUCK - O fado o quis; para um sincero amante, mil falsos há de haver a cada instante.

OBERON - Percorre a mata, mais veloz que o vento, e acha Helena de Atenas num momento. De aqui trazê-la ficas incumbido, enquanto o peito eu mudo ao moço infido.

PUCK - Já vou! Já vou! Vê como eu vou ligeiro, tal qual seta de Tártaro guerreiro.
(Sai.)

OBERON - Botão de rosa ferido pela flecha de Cupido,
(Espreme a flor nos olhos de Demétrio.) no espírito entra vencido deste moço adormecido. Ao despertar, ao ruído que ela fizer, que rendido se lhe torne o peito fido.
(Volta Puck.)

PUCK - Capitão do nosso bando de duendes, já vem andando para cá Helena bela e o jovem da tal querela por mim causada, também. Ora dizei se convém prosseguir na brincadeira, porque a tenhamos
inteira. Oh mestre! Como são loucos os mortais! De senso há poucos.

OBERON - Retira-te; ao vir o par vai Demétrio despertar.

PUCK - Dois namorados para uma só mulher! Não há nenhuma brincadeira que me agrade, como ciúme de verdade.
(Entram Helena e Lisandro.)

LISANDRO - Por que dizes que tudo é só ironia? Se assim fosse, tão fundo eu não chorara. No meu pranto comprova-se a magia que exerce em mim tua figura rara. Como haveria em meu amor suspeita, se minha fé se encontra a ti sujeita?

HELENA - Vossa ousadia aumenta; é uma querela santa e infernal matar o amor com juras. Vossa fé é só de Hérmia; abris mão dela? Vossas juras são falsas e inseguras. Como conto falaz é o juramento que a ela e a mim fazeis num só momento.

LISANDRO - Ao lhe jurar amor, não tinha eu senso.

HELENA - E ao deixarde-la, menos; é o que eu penso.

LISANDRO - Demétrio a Hérmia idolatra e vos detesta.

DEMÉTRIO (despertando) - O Helena, deusa, ninfa sublimada, que há de mais fascinante que a alvorada desses olhos tão lindos? Tosco e baço é o cristal junto deles; um pedaço de cereja esses lábios tentadores que a toda hora me falam só de amores. A neve virginal do Tauro altivo, sempre apagada pelo vento estivo, em corvo se transforma, horrente e feio, quando agitas a mão, num galanteio. Oh! Vou beijar a sede da ventura, essa princesa feita de luz pura!

HELENA - Oh dor! Vejo que estais de acordo, acinte, para de mim zombar com tal requinte. Se em vós houvesse sombra de respeito, jamais me ofenderíeis desse jeito. Odiar-me não vos basta; a zombaria nesta farsa a vosso ódio se associa. Se fôsseis homens, como a forma o mostra, não daríeis de vós tão triste mostra, zombando assim de mim, com tantas juras, porque me causem tão-somente agruras. Sois rivais, porque tendes amor a Hérmia, e ainda rivais para zombar de Helena. Oh feito altivo! Oh sublimada empresa! Fazer chorar quem se acha ora indefesa. Cavalheiro nenhum ofenderia uma virgem qualquer, nem tiraria a paciência dela, por folia.

LISANDRO - Demétrio, sois cruel; tenho certeza de que a Hérmia amais. Usemos de franqueza: de todo o coração te cedo a parte que eu ter pudesse em seu amor; desta arte me cedereis também vosso quinhão do amor de Helena, a quem estendo a mão-

HELENA - Jamais se ouviu tão vã declaração.

DEMÉTRIO - Lisandro, não me causas alegria; de Hérmia saber não quero. Se algum dia lhe tive amor, está tudo acabado. Tal amor foi um simples convidado que em seu peito morou, mas que, ao presente, para Helena retorna alegremente.

LISANDRO - Não creias nisso, Helena.

DEMÉTRIO - Não permito que menoscabes o meu peito aflito. Se insistes, provarás a minha espada. Mas eis que vem chegando a tua amada.
(Entra Hérmia.)

HÉRMIA - A noite que da vista tira tudo deixa o ouvido dez vezes mais agudo. Quanto parece a vista ter perdido, em agudeza ganha o outro sentido. Bom Lisandro, não foste ora encontrado com o auxílio da vista. Se ao teu lado me vejo, é que tua voz estremecida de guia me serviu nesta corrida. Por que me abandonaste tão sozinha?

LISANDRO - Para ir ver meu amor, minha rainha.

HÉRMIA - Que rainha ou amor de mim te aliena?

LISANDRO - A amada de Lisandro, a bela Helena, que ao teu lado ficar não me deixava e que brilha, com sua coma flava, por tudo iluminando a noite escura mais do que esses luzeiros de luz pura. Por que me buscas? Pois não viste ainda que por ti sinto antipatia infinda?

HÉRMIA - Não dizes o que pensas; é impossível.

HELENA - Hérmia está ao lado deles; será crível? Vejo que os três estão, de igual maneira, mancomunados nesta brincadeira, para rirem de mim. Ó ingrata Hérmia, jovem maldosa, de comum
acordo vos pusestes com estes dois mancebos. para tamanho escárnio me atirardes? As confidências que fazer soíamos, nossos votos de irmã, tantos momentos de conversa amigável, quando o tempo de passadas velozes nós culpávamos por nos vir separar: tudo esquecestes? A amizade dos bancos escolares? A inocência da infância? Hérmia, nós duas como deusas prendadas, muitas vezes a mesma flor tecemos com agulhas, de um modelo valendo-nos, sentadas numa almofada só, cantarolando sempre
no mesmo tom iguais cantigas, como se corpos, mãos, almas e vozes em comum nós tivéssemos. Desta arte crescemos juntas, aparentemente separadas, mas, ainda assim, unidas; dois frutos amorosos num só talo, um coração apenas em dois corpos ao parecer, tal como dois escudos encimados por uma crista
apenas. Quereis romper uma amizade dessas, para ao lado vos pordes desses moços que escarnecem de vossa pobre amiga? Não é procedimento de amizade, nem é conduta feminil, tampouco. Por mim, todo o meu sexo te condena, muito embora eu, somente, a injúria sinta.

HÉRMIA - De espanto me enche esse discurso insólito. De vós não zombo; o que suponho certo, é que alvo sou de vossa zombaria.

HELENA - Instigado por vós não foi Lisandro a me seguir e me fazer encômios por pura zombaria, enaltecendo-me os olhos e a figura? Não fizestes que este outro vosso admirador, Demétrio - que, até há pouco, com o pé me repelia - me chamasse de ninfa, deusa, rara, preciosa, celestial, irresistível? Por que fala desta arte a quem detesta? Por que razão Lisandro ora se mostra perjuro ao vosso amor que a alma lhe adorna, e afeição me protesta formalmente, se instigado por vós não se encontrasse? Por ser
destituída dos encantos que vos são próprios e não ter nenhuma sorte no amor, amando como o faço, sem ser correspondida? Isso piedade despertar deveria, não desprezo.

HÉRMIA - De vossa fala o nexo não percebo.

HELENA - Continuai a fingir olhares tristes e, quando eu me virar, fazei caretas; um para o outro piscai; levai avante vossa pilhéria fina; a brincadeira bem planejada vai passar à história. Se de moral, piedade, ou sentimento fosseis dotados, não me escolheríeis para objeto de vosso passatempo. Mas passai bem; em parte é minha a culpa; a ausência ou a morte ensejará o remédio.

LISANDRO - Não vás, gentil Helena; ouve-me os votos, amor, vida, minha alma, Helena linda!

HELENA - Admirável!

HÉRMIA - Meu bem, não troces dela.

DEMÉTRIO - Se com seus rogos Hérmia o não convence a força empregarei.

LISANDRO - Tuas ameaças me obrigam tanto quanto o seu pedido. Amo-te, Helena. Sim, por minha vida, por esta vida que por ti arrisco, juro provar que falsidade afirma quem se atreva a dizer que eu não te adoro.

DEMÊTRIO - Maior que o dele é o meu amor. afirmo-o.

LISANDRO - Então vinde comigo.

DEMÊTRIO - Neste instante.

HÉRMIA - A que tende, Lisandro, a brincadeira?

LISANDRO - Para trás, negra etíope!

DEMÉTRIO - Ele finge que está furioso mas, realmente, abstém-se de me seguir. Homem pacato,vamos!

LISANDRO (a Hérmia) - Gata, vai te enforcar! Bardana! Monstro! Se não, serás tratada como víbora.

HÉRMIA - Por que tão rude assim ficais de súbito? Qual a causa, meu bem, dessa mudança?

LISANDRO - Teu bem, Tártara escura? Para trás, vomitório! Veneno odioso, fora!

HÉRMIA - Estais brincando?

HELENA - Sim, e vós com ele.

LISANDRO - Demétrio, manterei minha palavra.

DEMÉTRIO - Quisera ter a obrigação escrita por vossa própria mão, pois estou vendo que obrigação mui fraca ora vos prende. Vossa palavra para mim não vale.

LISANDRO - Como! Devo bater-lhe? Assassiná-la? Embora a odeie, mal não lhe desejo.

HÉRMIA - Como! É possível maior mal do que isso de me odiardes assim? Ódio votardes-me? Por quê? Por quê? Oh Deus! Amor, que houve? Hérmia não sou e vós não sois Lisandro? Sou tão formosa agora quanto era antes. Amáveis-me esta noite, e nesta mesma noite me rejeitais. Serei forçada, pois, a pensar - oh! Deus tal não permita! - que de caso pensado me deixastes. Dizei: é isso?

LISANDRO - Sim, por minha vida, e não te quero ver nunca jamais. Perde, pois, a esperança; não te iludas, não me faças perguntas sem sentido. Não é pilhéria, podes estar certa; nada há mais verdadeiro; tenho-te ódio e apaixonadamente a Helena adoro.

HÉRMIA - Ai de mim! Feiticeira! Vil gusano, ladra de amor! Durante a noite viestes para roubar o coração do peito do meu amado?

HELENA - Fina, realmente! Pudor não tendes virginal, modéstia, resquício de vergonha? Será crível?
Quereis forçar-me a gentil boca a dar-vos respostas impacientes? Oh! Que opróbrio! Fora, boneca falsa!

HÉRMIA - É assim: boneca! Esclarece-se agora a brincadeira. Começo a perceber que ela o confronto fez de nossas alturas, insistindo no seu porte mais alto, na aparência mais elevada, em sua alta compostura, e desse modo pode seduzi-lo. Subistes tanto em sua estima, apenas por eu ser anãzinha e diminuta? Qual é minha estatura? Vamos, fala, varapau rebocado. Sou pequena, não é verdade? Mas não tanto, ainda, que com as unhas os olhos não te alcance.

HELENA - Senhores, muito embora estejais todos de mim fazendo troça, por obséquio não consintais que mal ela me cause. Nunca fui má, nem queda jamais tive para essas discussões; mulher me sinto até mesmo na minha covardia. Não deixeis que me bata, pois decerto não pensais que por ela ser mais baixa do que eu, serei capaz de dominá-la.

HÉRMIA - Baixa, baixa outra vez.

HELENA - Hérmia bondosa, não vos mostreis zangada assim comigo. Sempre vos tive amor; ofensa alguma jamais vos fiz e sempre fui discreta com relação a vossas confidências. Sim, por amor, apenas, de Demétrio, lhe revelei que havíeis combinado fugir para este bosque; ele seguiu-vos; eu o segui, também, por amor dele, mas fui por ele repelida, sobre me ver ameaçada de pancada e até mesmo de morte. Mas agora, se deixardes que em paz eu me retire, não mais vos seguirei; torno com a minha loucura para
Atenas. Sim, deixai-me; bem vedes como eu sou simples e dócil.

HÉRMIA - Voltai logo; quem é que vos retém?

HELENA - O louco coração que atrás eu deixo.

HÉRMIA - Com Lisandro, não é?

HELENA - Não, com Demétrio.

LISANDRO - Não tenhas medo, Helena; nenhum dano ela te causará.

DEMÉTRIO - De nenhum modo, senhor, ainda mesmo que do lado dela vos coloqueis.

HELENA - Quando zangada, sarcástica ela fica e arrebatada. Verdadeira raposa era na escola; apesar de pequena, é perigosa.

HÉRMIA - "Pequena", sempre; é só "pequena" e "baixa". Permitis que me insulte desse modo?
Deixai-me segurá-la um só momento.

LISANDRO - Para trás, anãzinha! Dedo mínimo, ser composto de grama retardante, semente, conta de rosário, fora!

DEMÉTRIO - Insistis por demais junto a uma dama que não desce a aceitar-vos os serviços. Deixai-a só; não mais faleis de Helena, nem tomeis seu partido, pois se a mínima demonstração de amor lhe revelardes, pagareis caro.

LISANDRO - Ela já não me prende. Se tens coragem, segue-me; vejamos qual de nós dois a Helena tem direito.

DEMÉTRIO - Seguir-te? Não! Irei junto contigo, rosto com rosto.
(Saem Lisandro e Demétrio.)

HÉRMIA - Vós, senhora, a causa sois dessa briga; não convém sairdes.

HELENA - Em vós eu não confio; não me agrada ficar em companhia amaldiçoada. Se dessas mãos me podem vir feridas, para correr tenho eu pernas compridas.
(Sai.)

HÉRMIA - Não sei o que pensar dessas mexidas.
(Sai.)

OBERON - Tudo provém de tua negligência. Sempre te enganas, caso não se trate de alguma brincadeira voluntária.

PUCK - Ó rei das sombras, podeis crer-me: houve erro. Não disseste que fácil me seria reconhecer o moço, pelas vestes de modelo ateniense? Não mereço censura desta vez, pois encantado deixei de Atenas jovem namorado. Mas alegra-me ver tudo assim torto, que para mim não há melhor desporto.

OBERON - Viste que os dois rivais foram em busca de uma clareira para duelo. Embrusca depressa a noite, bom Robim; defronte deles espalha as trevas do Aqueronte; aparta um do outro os moços
namorados e os faze andar por diferentes lados. Imita de Lisandro a voz aguda, porque mais a Demétrio o ódio sacuda; ou de Demétrio finge a voz, de modo que não se encontrem nunca e, sobremodo cansados, possa o sono, irmão da morte, surpreendê-los com seu pesado porte, infundindo-lhes plácido sossego com suas tenras asas de morcego. Depois, nos olhos de Lisandro espreme desta outra plantazinha o suco estreme, que apresenta a virtuosa propriedade de lhes restituir a claridade, da ilusão lhes deixando
inteiramente liberta a vista, o coração e a mente. Despertos, pensarão que esta balbúrdia tivesse sido, tão-somente, estúrdia visão, talvez um simples sonho, apenas. Voltarão, desse modo, para Atenas os dois casais de fidos namorados, em laços sempiternos amarrados. Enquanto isso fizeres com carinho, pedirei a Titânia o pajenzinho, da vista logo lhe tirando o encanto que a faz de um monstro apaixonar-se tanto.

PUCK - Meu rei dos duendes, isso vai ser, feito com toda a pressa, como o pede o pleito, que os velozes dragões da noite escura não cessam de apartar com a viatura aquelas nuvens negras. Não demora, vai nos surgir o anunciar da aurora, ante o qual os espíritos nefandos procuram logo o cemitério, aos bandos; os espectros de quantos pelas ondas, ou nas encruzilhadas, as hediondas sepulturas tiveram, para os leitos de vermes já se foram, com trejeitos; de medo de mostrar suas vergonhas, escondem da luz clara as carantonhas, ocultando de grado o aspecto impuro na negra noite de sobrolho escuro.

OBERON - Nossa essência, porém, é diferente. Com o amante da Aurora, no nascente rubicundo costumo divertir-me; às vezes, como caçador, a firme terra me apraz cortar, até que a rubra porta ecoa a
Netuno nos descubra, com amarelo de ouro colorindo a verde superfície do mar lindo. Mas apressa-te; a mágica abrevia; urge fazer tudo isso antes do dia.
(Sai Oberon.)

PUCK - Com toda a velocidade vou trazê-los. Nenhum há de me escapar. Minha vontade nas choupanas, na cidade, por tudo tem validade. Trazê-los vou, sem maldade, com toda a velocidade. Lá vem um.
(Entra Lisandro.)

LISANDRO - Tua fúria, Demétrio, deu em nada?

PUCK - Aqui, vilão! Arranca logo a espada!

LISANDRO - Já vou! Já vou!

PUCK - Então, para a clareira me acompanha.
(Sai Lisandro, na direção da voz.)
(Volta Demétrio.)

DEMÉTRIO - Lisandro, essa carreira de veloz gamo impede que eu conheça em que buraco escondes a cabeça.

PUCK - Covarde, com as estrelas é tua briga? Ou com as árvores? Mandas que te siga, e te escondes de mim? Bonito duelo! Vem, menino; uma vara de marmelo tenho aqui, pois vergonha fora, imensa, com ferro te punir por esta ofensa.

DEMÉTRIO - Já vais ver. Onde estás?

PUCK - É muito fácil seguir-me a voz tua figura grácil.
(Saem.)
(Volta Lisandro.)

LISANDRO - Sempre me vai à frente em meu caminho; mas, ao querer pegá-lo, estou sozinho. Corro a valer, mas ele é mais veloz; só tem forças nas pernas e na voz. Exausto estou de tanta correria.
Vou descansar. (Deita-se.) Vem, abençoado dia! Se eu vir de novo a tua luz risonha, me pagará Demétrio esta vergonha.
(Dorme.)
(Voltam Puck e Demétrio.)

PUCK - Olá, covarde! Em que lugar te escondes?

DEMÉTRIO - para, se tens coragem. Não respondes? Por tudo corres, a mudar de posto, sem que jamais eu possa ver-te o rosto. Onde estás?

PUCK - Aqui mesmo; não me fujas.

DEMÉTRIO - Vamos brigar no claro; só corujas podem ver em tamanha escuridão. Se eu te pegar de dia... A lassidão me constrange a medir a compostura em qualquer parte...nesta pedra dura.
(Deita-se e dorme.)
(Volta Helena.)

HELENA - Ó noite tediosa e cansativa, passa depressa! Vem, radiante aurora! porque a Atenas eu possa chegar viva, livre de quem minha alma em vão implora. Sono, que esquecer fazes a agonia, liberta-me da minha companhia.
(Deita-se e dorme.)

PUCK - Somente três? Falta gente porque o outro par descontente fique completo. Coitada! Como vem triste e cansada, por Cupido transtornada!
(Volta Hérmia.)

HÉRMIA - Jamais tal dor senti, tanto cansaço; toda molhada estou, dilacerada; não me é possível dar mais um só passo; os pés não me obedecem quase nada. Aqui esperarei o dia belo;Deus proteja a
Lisandro nesse duelo.
(Deita-se e dorme.)

PUCK - No solo duro dorme; conjuro de grande efeito transforme o peito também deste namorado.
(Deita o suco da planta nos olhos de Lisandro.)
Quando acordares com novos ares, fiques rendido do peito fido de que já foste afeiçoado. Cada mulher com um varão, proclama velho rifão com muita boa intenção. Com prosa lhana João pega Joana. Quem boa potranca tem, acha que tudo está bem.
(Sai.)

Entendendo o texto

01. Quem é o primeiro personagem a aparecer na Cena II do Ato III?
      a) Oberon
      b) Puck
      c) Demétrio
      d) Titânia
02. Qual foi a brincadeira feita por Puck com um dos artesãos?
      a) Transformou-o em burro.
      b) Colocou-o para dormir.
      c) Fez com que ele se apaixonasse por Titânia.
      d) Tirou a voz dele.
03. Por que Titânia se apaixona por um monstro?
      a) Foi uma maldição de Oberon.
      b) Por causa do feitiço da flor mágica.
      c) Ela estava sonhando.
      d) Foi enganada por Puck.
04. Que erro Puck comete ao usar o suco da flor mágica?
     a) Aplica o suco em Lisandro em vez de Demétrio.
     b) Aplica o suco na pessoa errada e cria mais confusões.
     c) Não usa a flor mágica corretamente.
     d) Faz com que Oberon perca a paciência.

05. Qual é o sentimento predominante de Hérmia quando descobre que Lisandro a rejeita?
      a) Raiva.
      b) Tristeza e incredulidade.
      c) Desprezo por Helena.
      d) Confusão.

06. Como Helena interpreta o comportamento de Lisandro e Demétrio ao se declararem para ela?
     a) Ela acredita que é uma piada cruel contra ela.
     b) Ela pensa que eles estão apaixonados por ela de verdade.
     c) Ela acredita que ambos estão enfeitiçados.
     d) Ela desconfia de Hérmia.

07. O que Oberon ordena a Puck fazer para consertar a confusão?
     a) Trazer Helena até eles.
     b) Fazer Lisandro voltar a amar Hérmia.
     c) Usar o feitiço no momento certo.
     d) Transformar Demétrio em outro animal.
08. O que causa o conflito entre Hérmia e Helena?
    a) O ciúme e a desconfiança de Hérmia.
    b) A acusação de Helena de que Hérmia ajudou na zombaria.
    c) As declarações de amor feitas por Lisandro e Demétrio a Helena.
    d) A traição de Demétrio.
09. Qual é a principal emoção demonstrada por Helena durante a cena?
    a) Gratidão.
    b) Indignação e tristeza.
    c) Alegria.
    d) Raiva por Hérmia.
10. No final da Cena II do Ato III, o que Oberon pretende fazer para resolver a situação?
    a) Fazer com que Demétrio ame Helena de verdade.
    b) Separar Lisandro de Helena imediatamente.
    c) Reverter o feitiço em Lisandro.
    d) Acalmar todos os personagens para evitar mais conflitos.