CONTO: NININHO DE ANTÔNIO DE AFONSO
Zélia Cavalcanti
De certa feita, fiquei tanto tempo postado aqui nessa beira que o povo
saiu dizendo que eu tinha endoidado. Nada. Eu tava na pasmaceira das lembranças
da mocidade.
Água de rio faz assim comigo. Me deixa manso. Me traz recordação do
tempo em que andei lá pelas terras de São Paulo. Pela cidade grande. Tempo
doido, quando aprendi, de lá de longe, a gostar mais ainda da minha terra, do
meu rio, da sombra debaixo da ponte.
Foi Meu-Tio-Moura quem me guentou um ano e qualquer coisa lá na capital.
Tio de verdade, acho que nem era. Só contraparente com casa própria e emprego
garantido. Daí que quem se largasse aqui das bandas do Inhambupe pra tentar
sorte por lá, levava um anotado que dizia: “Seu Moura – Rua Emerina, 53 –
Jabaquara”.
Antes de ser de maior, nem chegara aos dezessete e ficou acertado que na
semana seguinte eu tomava o caminhão de seu Janu. Como não tinha cabeça pra
escola, ia tentar a sorte em São Paulo. Era o que meu pai dizia. Não queria que
ficasse homem-feito sem profissão. Sem ter do que ganhar a vida, na beira do
rio como ele, pescando pra ter do que comer.
Eu não queria. Tinha medo.
Ele falou, eu fui.
Fiquei azoado uns três dias antes de juntar o
pouco que tinha de meu, despedir do pai, da mãe e dos manos, e pegar coragem
pra subir na boleia do caminhão. Passar pelas roças mais distantes e apanhar os
companheiros de viagem. Homem, mulher, criança, velho. Famílias inteiras.
Dez dias. Em pé, atracado nas grades. Cansava. Sentava nos sacos de
farinha de mandioca que seu Janu levava entre os rolos de fumo, a tapioca, os
vidros de dendê. Sol a pino. Se chovia a gente abria lona e jogava sobre as
traves.
Era a primeira vez que eu viajava num pau-de-arara. A segunda foi quando
voltei pra cá.
Enquanto
o caminho passava pelas rodas do caminhão eu ia pensando, botando a cabeça pra
imaginar como era essa tal de São Paulo. Seu Né da farmácia dizia que até a
capital era pequena perto dela, mas eu não conseguia acreditar.
Maior que Salvador da Bahia? Parecia lorota. Mas seu Né não ia inventar,
era homem estudado, sabia das coisas, lia nos livros, não ia mentir pra mim.
Era verdade e eu ia indo.
Passei toda a viagem calado, acuado num canto, querendo que aquela
estrada não acabasse nunca. Vez por outra me subia um frio pela espinha, as
pernas ficavam moles, a barriga gasturava.
Cheguei. Além do chapéu de couro, da
alpercata de sola de pneu e da roupa do corpo, o resto dos trens vinha no meu
malotão. Daí que Meu-tio-Moura nem precisou alugar um carro. Fomos mesmo de
marinete pra casa.
Fiquei muitos dias sem sair pra rua. Ia só até a ponta da calçada. Tinha
medo de me perder naquele mundaréu de cidade!
[...]
A casa vivia cheia de gente da gente. Povo que vinha do Norte e trazia
farinha, doce cristalizado de cidra, de jenipapo, de caju, de figo miúdo, de
araçá-goiaba. A parentada mandava porque sabia que por lá era difícil encontrar
dessas coisas que quem é daqui fica triste se não tem. Chegava de um tudo até
carne-do-sol, camarão seco, castanha assada na brasa, cocada-puxa.
Fim de semana sempre parecia de festa. Almoço grande, sábado e domingo.
Na vitrola, tia botava música que me ajudava a não esquecer dos
arrasta-pés aqui da terra. O Rei do Baião Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e
Almira. Era uma alegria. Parecia que eu tinha saído de casa. A comida cheirava
à cozinha de minha avó. Moqueca, vatapá. Cururu pra Cosme e Damião. Sarapatel.
Carne-seca com jerimum. Baião-de-dois. Cada domingo uma gostosura.
[...]
Vez por outra tinha carta até pra mim. Era a tia Dá quem lia porque eu
não me acertava direito com o dizer das letras.
Ouvindo as notícias do meu povo eu nem dava pó mim, esquecido que tinha
ido pra São Paulo me fazer na vida.
Se fazer na vida! Tá aí uma coisa difícil. De estudo, tinha pouco. De
conhecimento na vida, um pouco de motor de caminhão, outro tanto de plantar
mandioca, colher e enrolar fumo.
Olhando meu pai, desde que me entendi por gente, aprendi de um tudo,
pouco. Mas, disso tudo, nada me ajudou na cidade grande.
Já tinha seis meses da minha chegada.
Tio me pôs pra trabalhar num campo de futebol de time grande, importante.
Eu ficava ali apanhando as bolas nos jogos de treino. Fiquei pouco tempo.
Arranjaram um outro moleque mais “ligeiro e menos matuto”, disse o diretor.
Sem emprego, voltei a passar os dias limpando os canteiros do
jardinzinho da tia, olhando as brincadeiras dos meninos na rua, preparando as
leiras de verdura e cuidando das árvores de frutas que tio mantinha no quintal
da casa. Eu gostava de ficar ali dentro do pedaço da minha terra que cabia
dentro da cidade grande.
A lufa-lufa no comércio me punha azoado.
Se ia cumprir um mandado de tia, mesmo que fosse num lugar bem
conhecido, na casa de uma amizade dela ou dos meninos, ia e vinha correndo.
Quando tinha de ir pelas ruas cheias, seguia as passadas de tio que nem
um busca-pé. Nem apreciava os passantes. Nem arriscava o olho nas coisas que as
lojas mostravam. Queria logo voltar pra casa. Tinha medo de me perder, de ficar
sozinho no meio de tanto desconhecimento.
Quanto mais o tempo andava mais eu sentia que não ia dar certo pra mim,
ficar na cidade grande. Vivia de susto em susto, acanhado, desassossegado.
Tudo que aprendia, nada que eu via, fazia deixar de pensar na minha
terra, na calmaria do rio, na minha beira.
A cidade grande não me ensinou do trabalho, nem das palavras, nem das
riquezas. Do medo que sentia das coisas que não conhecia, aprendi que fui feito
homem pra viver aqui, pra roça e pro rio. Pra comer carne-do-sol de manhãzinha,
quentar sol na escadaria da igreja, ouvir os causos de seu Pedrito lá na rua do
Comércio, trabalhar no que sei e no que posso.
Tem homem que a vida faz pra viver na cidade grande.
Não eu.
(In: Heloísa Pietro, org. O livro dos
medos. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2001)
Vieira, Maria das Graças – Ler, entender, criar: Língua
portuguesa: 5ª série -manual do professor / São Paulo: Ática, 2005. p.58-63.
“De batismo sou João e de conhecimento sou Nininho de Antônio de Afonso.”
O que você entende pela expressão de conhecimento?
Que o nome pelo qual
ele era conhecido por todos era Nininho de Antônio de Afonso.
02. A respeito da cidade
onde Nininho morava, responda:
a) É uma cidade grande ou
pequena? Como você chegou a essa conclusão?
Conclui que é uma
cidade pequena, já que todos se conhecem pelo nome. Além disso, a reação de
Nininho diante do tamanho da cidade de São Paulo revela que ele vivia em um
lugar bem menor.
b) Em que estado brasileiro
ela se localiza?
Bahia.
c) Copie o trecho de onde
você tirou essas informações.
“Seu Né da farmácia
dizia que até a capital era pequena perto dela [...] Maior que Salvador da
Bahia.”
03. Por que Nininho deixou
sua cidade e partiu para a cidade grande?
Porque “não tinha
cabeça pra escola”, e seu pai não queria que ele se tornasse um adulto sem
profissão, pescando para ter o que comer.
04. Leia:
“Era a primeira vez que eu viajava num pau-de-arara”.
a) O que é um pau-de-arara?
Se não conseguirem chegar a uma conclusão, consultem o dicionário.
Caminhão coberto. Com
varas longitudinais na carroceria, nas quais os passageiros se seguram. Meio de
transporte comumente usado pelos retirantes nordestinos.
b) O que o fato de Nininho
ter viajado em um pau-de-arara revela sobre a situação financeira de sua
família?
Resposta pessoal.
Sugestão: A família
era pobre.
c) Por que vocês acham que
as pessoas viajam nas condições mostradas pelo texto?
Resposta pessoal.
05. Observe:
“Nininho sou eu.”
a) Quem é o autor do texto?
Zélia Cavalcanti.
b) Em que pessoa gramatical
o texto está escrito?
Na primeira pessoa
do singular.
c) Quem narra os
acontecimentos?
Nininho.
d) Quem é a principal
personagem?
Nininho.
06. Nininho partiu para São
Paulo para “se fazer na vida”. Ele conseguiu alcançar esse objetivo? Em que
trechos isso fica claro?
Não. “Quando mais o
tempo andava [...] desassossegado”; “A cidade grande não me ensinou do trabalho
[...] pra roça e pra rio”.
07. O que, principalmente,
Nininho aprendeu em sua viagem a São Paulo?
Aprendeu a gostar
mais ainda de sua terra e que não fora feito para viver na cidade grande.
08. Nininho sentia muito
medo na cidade grande. Você costuma sentir medos? Isso impede você de fazer
alguma coisa?
Resposta pessoal.