Crônica: A cesta
Paulo Mendes Campos Quando a cesta chegou, o dono não
estava. Embevecida, a mulher recebeu o presente. Procurou logo o cartão, leu a
dedicatória destinada ao marido, uma frase ao mesmo tempo amável e respeitosa.
Quem
seria? Que amigo seria aquele que estimava tanto o marido dela? Aquele cesta,
sem dúvida nenhuma, mesmo a uma olhada de relance, custava um dinheirão. Como é
que ela nunca tivera notícia daquele nome? Ricos presentes só as pessoas ricas
recebem. Eles eram remediados, viviam de salários, sempre inferiores ao custo
das coisas. Sim, o marido, com o protesto dela, gostava de bons vinhos e boa
mesa, mas isso com o sacrifício das verbas reservadas a outras utilidades.
De qualquer forma, aquela cesta
monumental chegava em cima da hora. E se fosse um engano? Não, felizmente o
nome e o sobrenome do marido estavam escritos com toda a clareza e o endereço
estava certo.
Alvoroçada, examinou uma a uma as peças
de envoltas em flores e serpentinas de papel colorido. Garrafas de uísque
escocês, champanha francês, conhaque, vinhos europeus, patê, licores, caviar,
salmão, champignon, uma lata de caranguejos japoneses ... Tudo do melhor.
Mulher prudente, surrupiou umas garrafas e escondeu-as nas gavetas femininas do
armário. Conhecia de sobra a generosidade do marido: à vista daquela cesta
farta, iria convidar todo o mundo para um devastador banquete. Isso não tinha
nem conversa, era tão certo quanto dois e dois são quatro. Mas quem seria o
amigo? Esperou o regresso do marido, morrendo de curiosidade.
E ei-lo que chega, ao cair da noite,
cansado, sobraçando duas garrafas de vinho espanhol, uma garrafa de uísque
engarrafado no Brasil, um modesto embrulho de salgadinhos. Caiu das nuvens ao
deparar com a gigantesca cesta. Pálido de espanto, não tanto pelo material do
presente (era um sentimental), mas pelo valor afetivo que o mesmo significava,
começou a ler o cartão que a mulher lhe estendia. Houve um longo minuto de
densa expectativa, quando, terminada a leitura, ele enrugou a testa e se
concentrou no esforço de recordar. A mulher perguntava aflita:
-- Quem é?
Mais da metade da esperança dela
desabou com a desolada resposta.
-- Esta cesta não é pra mim.
-- Como assim? Você anda ultimamente
precisando de fósforo.
-- Não é minha.
-- Mas olhe o endereço: é o nosso! O
nome é o seu.
-- O meu nome não é só meu. Há um
banqueiro que tem o nome o igualzinho. Está na cara que isso é cesta pra
banqueiro.
-- Mas, o endereço?
-- Deve ter sido procurado na lista
telefônica.
Ela não queria, nem podia, acreditar na
possibilidade do equívoco.
-- Mas faça um esforço.
-- Não conheço quem mandou a cesta.
-- Talvez um amigo que você não vê há
muito tempo.
-- Não adianta.
-- Você não teve um colega que era
muito rico?
-- O nome dele é completamente
diferente. E ficou pobre!
-- Pense um pouco mais, meu bem.
Novo esforço foi feito, mas a
recordação não veio. Ela apelou para a hipótese de um admirador. Afinal, ele
era um grande escritor, autor de um romance que fizera sucesso e de um livro
para crianças, que comovera grandes e pequenos.
-- Um fã, quem sabe é um fã?
-- Mulher, deixa de bobagens... Que fã
coisa nenhuma!
-- Pode ser sim! Você é muito querido
pelos leitores.
A ideia o afagou. Bem, era possível.
Mas, em hipótese nenhuma, ficaria com aquela cesta, caso não estivesse
absolutamente certo de que o prêmio lhe pertencia.
-- Sou um homem de bem!
Era um homem de bem. Pegou o catálogo,
procurou o telefone do homônimo banqueiro, falou diretamente com ele depois de
alguma demora: não é muito fácil um desconhecido falar a um banqueiro.
Aí,
a mulher ouviu com os olhos arregalados e marejados:
-- Pode mandar buscar a cesta
imediatamente. O senhor queira desculpar se minha mulher desarrumou um pouco a
decoração. Mas não falta nada.
A mulher foi lá dentro, quase chorando,
e voltou com umas garrafas nas mãos:
-- Eu já tinha escondido estas.
-- Você é de morte. Coloque as garrafas
na cesta.
Vinte minutos depois, um carro enorme
parava à porta, subindo um motorista de uniforme. A cesta engalanada cruzou a rua
e sumiu dentro do automóvel. Ele sorria, filosoficamente. Dos olhos da mulher
já agora corriam lágrimas francas. Quando o carro desapareceu na esquina, ele
passou o braço em torno do pescoço da mulher:
-- Que papelão, meu bem! Você ficou olhando
aquela cesta como se estivesse assistindo à saída de meu enterro.
E ela, passando um lenço nos olhos:
-- Às vezes é duro ser casada com um
homem de bem.
Paulo Mendes
Campos. Supermercado.
Entendendo a crônica:
01 – Vocábulo – pesquise e
responda:
·
Embevecida: estática.
·
Estimava:
gostava.
·
De
relance: rapidamente.
·
Remediado: sem muitos recursos financeiros.
·
Verbas: quantias.
·
Monumental: grandiosa.
02 – Nessa crônica a mulher
fica admirada com a entrega de uma cesta de vinhos ao marido. Apesar de o nome
e o endereço estarem completos e corretos, era apenas uma coincidência:
a)
Quais foram os argumentos usados pelo marido
para convencer a mulher de que a cesta não era para ele?
-- Que existia um banqueiro com o mesmo nome que o dele.
-- Não conhecia quem mandou a cesta.
-- Tinha um amigo rico, mas ficou pobre.
b)
A mulher tentou convencer o marido de todas
as formas a ficar com a cesta, porém não conseguiu. Ele afirmou ser um homem de
bem e decidiu devolvê-la. Comente o que ele fez para entrega-la.
Ele procurou na lista telefônica o telefone do verdadeiro dono da
cesta, o banqueiro, e pediu para buscar a cesta que havia sido entregue por
engano em sua casa.
03 – Que tema é abordado na
crônica?
O tema é o consumismo.
04 – Que fato desencadeou os
acontecimentos narrados na crônica?
A chegada de uma
cesta de vinho.
05 – no texto estudado
predomina a ação ou a reflexão? Comente.
Predomina a ação,
desde o momento que a mulher recebe a cesta até o final, quando o marido
devolve a cesta para o verdadeiro dono.
06 – O que tinha na cesta?
Flores,
serpentinas de papel colorido, garrafas de uísque escocês, champanha francês,
conhaque, vinhos europeus, patê, licores, caviar, salmão, champignon, uma lata
de caranguejos japoneses.