CRÔNICA(Fragmento): Camelos e beija-flores...
Rubem Alves
Respondi
também delicadamente: “Comigo não. Quando escrevo ‘estória’ eu quero dizer
‘estória’. Quando escrevo ‘história’ eu quero dizer ‘história’. Estória e
história são tão diferentes quanto camelos e beija-flores...”
Escrevi
um livro baseado na diferença entre “história” e “estória”. O revisor,
obediente o dicionário, corrigiu minhas “estórias” para “história”. Confiando
no rigor do revisor, não li o texto corrigido. Aí, um livro que era para falar
de camelos e beija-flores, só falou de camelos.
Foram-se
os beija-flores engolidos pelo camelo...
Escoro-me
no Guimarães Rosa. Ele começa o Tutameia com esta afirmação: “A estória não
quer ser história. A estória, em rigor, deve
ser
contra a história”.
Qual é
a diferença? É simples. Quando minha filha era pequena eu lhe inventava
estórias. Ela, ao final, me perguntava: “Papai, isso aconteceu de verdade?” E
eu ficava sem lhe poder responder porque a resposta seria de difícil
compreensão para ela. A resposta que lhe daria seria: “Essa estória não
aconteceu nunca para que aconteça sempre...”
A
história é o reino das coisas que aconteceram de verdade, no tempo, e que estão
definitivamente enterradas no passado. Mortas para sempre. [...]
Mas as
estórias não aconteceram nunca. São invenções, mentiras. O mito de Narciso é
uma invenção. O jovem que se apaixonou por sua própria imagem nunca existiu.
Aí, ao ler o mito que nunca existiu eu me vejo hoje debruçado sobre a fonte que
me reflete nos olhos dos outros. Toda estória é um espelho. [...]
[...]
A
história nos leva para o tempo do “nunca mais”, tempo da morte. As estórias nos
levam para o tempo da ressurreição. Se elas sempre começam como o “era uma vez,
há muito tempo” é só para nos arrancar da banalidade do presente e nos levar
para o tempo mágico da alma.
Assim,
por favor, revisora: quando eu escrever “estória” não corrija para “história”.
Não quero confundir camelos e beija-flores...
(Folha
de S. Paulo, 14/11/2006.)
Fonte da imagem -https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fbrasilescola.uol.com.br%2Fanimais%2Fcamelo.htm&psig=AOvVaw3YTR5ne04U-Fk-idVNsEL8&ust=1626737151036000&source=images&cd=vfe&ved=0CAsQjRxqFwoTCLCvmqbi7fECFQAAAAAdAAAAABAD
Fonte: Livro- Português: Linguagens, 1/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São Paulo: Saraiva, 2016.p.249/50.
a) Por que a revisora
corrigiu a palavra estória, mudando-a para história?
Porque esse
procedimento era norma do jornal, uma vez que a forma estória é considerada
anacronismo pelos dicionários, isto é, uma forma fora de uso.
b) Por que o autor da
crônica não concorda com o procedimento da revisora?
Porque, para ele, estória
e história são palavras que têm sentidos bastante diferentes.
2. Associe os termos história
e estória às palavras e expressões da coluna da direita, de acordo com o texto:
a) história b) estória
1. invenções, mentiras
2. reino das coisas que
aconteceram de verdade
3. tempo do “nunca mais”
4. tempo da ressurreição
5. tempo mágico da alma
6. tempo da banalidade do
presente
1b, 2a, 3a, 4b,
5b, 6a.
3. Conclua: Para o autor do
texto, qual é a diferença de sentido entre história e estória?
Para ele, história
é o relato de fatos reais, e estória é um relato ficcional, poético.
4. O autor conta que
escreveu um livro baseado na diferença entre história e estória. Segundo ele:
a) Por que, quando
publicado, o livro falava só de camelos?
Porque todas as
palavras estória foram trocadas por história.
Revela que ela não
compreendeu o que leu, tendo feito apenas uma leitura técnica.
c) Levando em conta a
analogia estabelecida pelo autor do texto entre história/estória, de um lado, e
beija-flor/camelo, de outro lado, interprete a afirmação: “Foram-se os
beija-flores, engolidos pelos camelos”.
Toda a poesia do
texto desapareceu; ele virou uma história banal.
5. O autor do texto diz
escorar-se na afirmação de Guimarães Rosa: “A estória não quer ser história. A
estória, em rigor, deve ser contra a história”. Os argumentos apresentados por
Rubem Alves acerca da diferença de sentido entre história e estória confirmam o
ponto de vista de Guimarães Rosa? Por quê?
Sim, pois para
ambos os autores os dois mundos estão em oposição, isto é, o mundo ficcional é
o oposto do mundo real.
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