domingo, 18 de julho de 2021

CRÔNICA(FRAGMENTO): CAMELOS E BEIJA-FLORES... RUBEM ALVES - COM GABARITO

 CRÔNICA(Fragmento): Camelos e beija-flores...

                           Rubem Alves

 A revisora informou delicadamente que era norma do jornal que todas as “estórias” deveriam ser grafadas como “histórias”. É assim que os gramáticos decidiram e escreveram nos dicionários.

Respondi também delicadamente: “Comigo não. Quando escrevo ‘estória’ eu quero dizer ‘estória’. Quando escrevo ‘história’ eu quero dizer ‘história’. Estória e história são tão diferentes quanto camelos e beija-flores...”

Escrevi um livro baseado na diferença entre “história” e “estória”. O revisor, obediente o dicionário, corrigiu minhas “estórias” para “história”. Confiando no rigor do revisor, não li o texto corrigido. Aí, um livro que era para falar de camelos e beija-flores, só falou de camelos.

Foram-se os beija-flores engolidos pelo camelo...

Escoro-me no Guimarães Rosa. Ele começa o Tutameia com esta afirmação: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve

ser contra a história”.

Qual é a diferença? É simples. Quando minha filha era pequena eu lhe inventava estórias. Ela, ao final, me perguntava: “Papai, isso aconteceu de verdade?” E eu ficava sem lhe poder responder porque a resposta seria de difícil compreensão para ela. A resposta que lhe daria seria: “Essa estória não aconteceu nunca para que aconteça sempre...”

A história é o reino das coisas que aconteceram de verdade, no tempo, e que estão definitivamente enterradas no passado. Mortas para sempre. [...]

Mas as estórias não aconteceram nunca. São invenções, mentiras. O mito de Narciso é uma invenção. O jovem que se apaixonou por sua própria imagem nunca existiu. Aí, ao ler o mito que nunca existiu eu me vejo hoje debruçado sobre a fonte que me reflete nos olhos dos outros. Toda estória é um espelho. [...]

[...]

A história nos leva para o tempo do “nunca mais”, tempo da morte. As estórias nos levam para o tempo da ressurreição. Se elas sempre começam como o “era uma vez, há muito tempo” é só para nos arrancar da banalidade do presente e nos levar para o tempo mágico da alma.

Assim, por favor, revisora: quando eu escrever “estória” não corrija para “história”. Não quero confundir camelos e beija-flores...

(Folha de S. Paulo, 14/11/2006.)

Fonte da imagem -https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fbrasilescola.uol.com.br%2Fanimais%2Fcamelo.htm&psig=AOvVaw3YTR5ne04U-Fk-idVNsEL8&ust=1626737151036000&source=images&cd=vfe&ved=0CAsQjRxqFwoTCLCvmqbi7fECFQAAAAAdAAAAABAD

Fonte: Livro- Português: Linguagens, 1/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São Paulo: Saraiva, 2016.p.249/50.

 ENTENDENDO O TEXTO

 1. O texto comenta uma oposição de natureza ortográfica que, ao ser desconsiderada, resulta, na opinião do autor, em perdas de sentido. De acordo com o texto:

a) Por que a revisora corrigiu a palavra estória, mudando-a para história?

Porque esse procedimento era norma do jornal, uma vez que a forma estória é considerada anacronismo pelos dicionários, isto é, uma forma fora de uso.

b) Por que o autor da crônica não concorda com o procedimento da revisora?

Porque, para ele, estória e história são palavras que têm sentidos bastante diferentes.

2. Associe os termos história e estória às palavras e expressões da coluna da direita, de acordo com o texto:

a) história       b) estória

1. invenções, mentiras

2. reino das coisas que aconteceram de verdade

3. tempo do “nunca mais”

4. tempo da ressurreição

5. tempo mágico da alma

6. tempo da banalidade do presente

1b, 2a, 3a, 4b, 5b, 6a.

3. Conclua: Para o autor do texto, qual é a diferença de sentido entre história e estória?

Para ele, história é o relato de fatos reais, e estória é um relato  ficcional, poético.

4. O autor conta que escreveu um livro baseado na diferença entre história e estória. Segundo ele:

a) Por que, quando publicado, o livro falava só de camelos?

Porque todas as palavras estória foram trocadas por história.

 b) O que esse fato revela sobre a compreensão do texto pela revisora?

Revela que ela não compreendeu o que leu, tendo feito apenas uma leitura técnica.

c) Levando em conta a analogia estabelecida pelo autor do texto entre história/estória, de um lado, e beija-flor/camelo, de outro lado, interprete a afirmação: “Foram-se os beija-flores, engolidos pelos camelos”.

Toda a poesia do texto desapareceu; ele virou uma história banal.

5. O autor do texto diz escorar-se na afirmação de Guimarães Rosa: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a história”. Os argumentos apresentados por Rubem Alves acerca da diferença de sentido entre história e estória confirmam o ponto de vista de Guimarães Rosa? Por quê?

Sim, pois para ambos os autores os dois mundos estão em oposição, isto é, o mundo ficcional é o oposto do mundo real.

 

 

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