MEMÓRIAS DE UM SARGENTO
DE MILÍCIAS
O pequeno,
enquanto se achou novato em casa do padrinho, portou-se com toda a sisudez e gravidade; apenas porém foi tomando mais
familiaridade, começou a pôr as manguinhas de fora. Apesar disto porém captou
do padrinho maior afeição, que se foi aumentando de dia em dia, e que em breve
chegou ao extremo da amizade cega e apaixonada. Até nas próprias travessuras do
menino, as mais das vezes malignas, achava o bom do homem muita graça; não
havia para ele em todo o bairro rapazinho mais bonito, e não se fartava de
contar à vizinhança tudo o que ele dizia e fazia; às vezes eram verdadeiras
ações de menino malcriado, que ele achava cheio de espírito e de viveza; outras
vezes eram ditos que denotavam já muita velhacaria para aquela idade, e que ele
julgava os mais ingênuos do mundo. [...]
[O padrinho]
Gastava às vezes as noites em fazer castelos no ar a seu respeito; sonhava-lhe
uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de estudar os meios que o
levassem a esse fim. Eis aqui pouco mais ou menos o fio dos seus raciocínios.
[...] Seria talvez bom manda-lo ao estudo... porém para que serve o estudo?
Verdade é que ele parece ter boa memória, e eu podia mais para diante manda-lo
a Coimbra... Sim, é verdade... eu tenho aquelas patacas; estou já velho, não tenho filhos nem outros
parentes... mas também que diabo se fará ele em Coimbra? Licenciado
não: é mau ofício; letrado? era bom... sim, letrado... mas não; não,
tenho zanga a quem me lida com papéis e demandas...
Clérigo? ... um senhor clérigo é muito bom... é
uma coisa muito séria... ganha-se muito... pode vir um dia a ser cura. Está dito, há de ser clérigo... ora, se há de
ser: hei de ter ainda o gostinho de o ver dizer missa... de o ver pregar na Sé,
e então hei de mostrar a toda esta gentalha aqui
da vizinhança que não gosta dele que eu tinha muita razão em lhe querer bem.
Ele está ainda muito pequeno, mas vou tratar de o ir desasnando
aqui mesmo em casa, e quando tiver 12 ou 14 anos há de me entrar para a escola.
Tendo ruminado por muito tempo esta ideia, um dia de manhã
chamou o pequeno e disse-lhe:
--- Menino,
venha cá, você está ficando um homem (tinha ele 9 anos); é preciso que aprenda
alguma coisa para vir um dia a ser gente; de segunda-feira em diante (estava em
quarta-feira) começarei a ensinar-lhe o bê-á-bá. Farte-se de travessuras por este resto da
semana.
O menino
ouviu este discurso com um ar meio admirado, meio desgostoso, e respondeu:
--- Então eu
não hei de ir mais ao quintal, nem hei de brincar na porta?
--- Aos
domingos, quando voltamos da missa...
--- Ora, eu
não gosto da missa.
O padrinho
não gostou da resposta; não era bom anúncio para quem se destinava a ser padre;
mas nem por isso perdeu as esperanças.
O menino
tomou bem sentido nestas palavras do padrinho: “Farte-se
de travessuras por este resto da semana”, e acreditou que aquilo era uma
licença ampla para fazer tudo quanto de bom e de mau lhe lembrasse durante o
tempo que ainda lhe restava de folga. [...]
Ao
anoitecer, estando sentado à porta da loja, viu ao longe no princípio da rua um
acompanhamento alumiado pela luz de lanternas e
tochas, e ouviu padres a rezarem; estremeceu de alegria e pôs-se em pé de um
salto. Era a via-sacra do Bom Jesus.
Há bem pouco
tempo que existiam ainda em certas ruas desta cidade cruzes negras pregadas
pelas paredes de espaço em espaço.
Ás
quartas-feiras e em outros dias da semana saía do Bom Jesus e de outras igrejas
uma espécie de procissão composta de alguns padres conduzindo cruzes, irmãos de
algumas irmandades com lanternas, e povo em
grande quantidade; os padres rezavam e o povo acompanhava a reza. Em cada cruz
parava o acompanhamento, ajoelhavam-se todos, e oravam durante muito tempo.
Este ato, que satisfazia a devoção dos carolas, dava pasto e ocasião a quanta sorte de zombaria e de
imoralidade lembrava aos rapazes daquela época, que são os velhos de hoje, e
que tanto clamam contra o desrespeito dos moços
de agora. Caminhavam eles em charola atrás da
procissão, interrompendo a cantoria com ditérios
em voz alta, ora simplesmente engraçados, ora pouco decentes; levavam longos
fios de barbante, em cuja extremidade iam penduradas grossas bolas de cera. Se
ia por ali ao seu alcance algum infeliz, a quem os anos tivessem despido a
cabeça dos cabelos, colocavam-se em distância conveniente, e escondidos por
trás de um ou de outro, arremessavam o projétil
que ia bater em cheio sobre a calva do devoto;
puxavam rapidamente o barbante, e ninguém podia saber donde tinha partido o
golpe. Estas e outras cenas excitavam vozeria e gargalhadas na multidão.
Era a isto
que naqueles devotos tempos se chamava correr a via-sacra. [...]
Vinha
aproximando-se o acompanhamento, e o menino palpitava de prazer. Chegou mesmo
defronte da porta; teve ele então um pensamento que o fez estremecer; tornou-se
a lembrar das palavras do padrinho: “farte-se de travessuras”; espiou para
dentro da loja, viu-o entretido, deu um salto do lugar onde estava, misturou-se
com a multidão, e lá foi concorrendo com suas gargalhadas e seus gritos para
aumentar a vozeria. Era um prazer febril que ele sentia; esqueceu-se de tudo,
pulou, saltou, gritou, rezou, cantou, e só não fez daquilo o que não estava em
suas forças. Fez camaradagem com dois outros meninos do seu tamanho que também
iam no rancho, e quando deu acordo de si estava
de volta com a via-sacra na Igreja do Bom Jesus.
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de
um sargento de milícias.
São Paulo: Ática, 1998, p. 119-22.
Clérigo: padre, sacerdote cristão.
Coimbra: cidade de Portugal, conhecida
principalmente por sua universidade.
Cura: vigário, padre responsável por uma
paróquia.
Demanda: processo judicial.
Desasnar: tirar a ignorância.
Ensinar o bê-á-bá: alfabetizar.
Gentalha: gente das camadas inferiores da
sociedade, ralé.
Letrado: advogado, jurista.
Licenciado: pessoa com nível universitário.
Pataca: moeda de prata corrente no Brasil
no período imperial.
Ruminado: muito pensado.
Sisudez: seriedade.
Acompanhamento: cortejo, comitiva, procissão.
Carola: pessoa extremamente apegada à
Igreja Católica e às práticas religiosas.
Clamar: reclamar, protestar.
Dar pasto: motivar, estimular.
Devoto: seguidor fervoroso de uma religião.
Ditério: zombaria, gozação.
Em charola: em fila, carregando-se uns aos
outros.
Fartar-se: saciar-se, satisfazer uma vontade.
Irmandade: sociedade religiosa.
Projétil: qualquer coisa lançada com o
objetivo de atingir alguém; no caso, a bola de cera.
Rancho: conjunto de pessoas reunidas em uma
jornada ou marcha.
Via-sacra: itinerário composto de 14 estações,
identificadas por imagens (esculturas, quadros ou cruzes) que lembram os
principais momentos da Paixão de Cristo.
1 – Leonardo é descrito como uma criança bastante travessa.
Complete o quadro com palavras e expressões que indicam a diferença entre a
visão do narrador e a do padrinho com relação às atitudes do menino.
Atitudes Visão do narrador visão do padrinho
Travessuras
malignas muita graça
Ações
de menino malcriado cheio de espírito e viveza
Ditos denotavam velhacaria os mais ingênuos do
Mundo.
2 – O padrinho imaginava um futuro para Leonardo. Pelos
“castelos no ar” que fazia, é possível observar o valor dado na época a algumas
carreiras.
a) Que carreiras são valorizadas?
A carreira de Direito (pela
presença da palavra “demandas”) e a de clérigo.
b) De acordo com o padrinho, qual
carreira seria a melhor para o afilhado? Por quê?
Ser clérigo, pois é uma
carreira que impõe respeito (status) e ganha-se muito.
3 – O narrador reproduz o raciocínio do padrinho.
a) Que evidências há no texto de que a
“voz” que ouvimos em parte do segundo parágrafo é do padrinho?
O uso da primeira pessoa
(por exemplo, “eu tenho aquelas patacas”); a presença de interrogativas
(dúvidas), aproximando o trecho da forma pela qual o pensamento, na busca de
uma solução, costuma se processar.
b) Uma das questões do padrinho é “para
que diabo serve o estudo?”. O que esse questionamento revela sobre a
personagem?
Ao tentar escolher a futura
profissão do afilhado, o padrinho baseia-se no valor dado socialmente a
determinadas carreiras, para as quais é necessário estudar. Entretanto, pessoalmente,
o padrinho parece não valorizar tanto assim o estudo.
c) Como você responderia à pergunta do
padrinho?
Resposta pessoal.
4 – Uma prática comum às classes sociais privilegiadas da
época era enviar seus filhos para estudar em Portugal. O padrinho tinha recursos
para essa prática?
Embora
não pertencesse a uma classe social muito privilegiada, o padrinho tinha
algumas economias das quais poderia dispor, uma vez que estava velho e não
tinha família para sustentar.
É
interessante discutir com os alunos se estudar no exterior ainda é uma prática
comum hoje em dia e se todos tem acesso a isso.
5 – A procissão, um costume frequente da época, é apresentada
no texto.
a) Podemos dividir os participantes da
procissão em dois grupos. Identifique-os.
O grupo dos padres e a dos
jovens.
b) Há diferenças na intenção e no
comportamento dos dois grupos participantes da procissão? Justifique sua
resposta.
A diferença é que: o grupo
dos Padres e carolas, estavam lá pela fé; e os jovens para divertir, provocando
o riso por meio de ditos, por vezes pouco decentes, e lançando bolas de cera na
cabeça de carecas.
6 – Referindo-se aos rapazes que seguem a procissão, o
narrador informa “que são os velhos de hoje, e que tanto clamam contra o
desrespeito dos moços de agora”.
a) Lembrando-se de que o narrador
descreve, em meados do século XIX, uma procissão que teria acontecido no início
do século XIX, quem seriam “os velhos de hoje”?
Os jovens rapazes que
tumultuavam a procissão.
b) Que comportamento costumeiro está
sendo aí criticado?
O fato dos idosos
criticarem ações de jovens, esquecendo-se de que tiverem um comportamento
similar quando tinham pouca idade.
7 – Há indícios no texto de que o sonho do padrinho não vai
se realizar?
Além de
o menino não gostar de missa, o que o atrai na procissão é a possibilidade de
se divertir, de fazer travessuras.