Texto: Sermão
da Sexagésima cap. III – Fragmento
Padre António Vieira
[...]
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no
Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da
parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de
um sermão, há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a
doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento,
percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a
si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é
cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite,
não se pode ver por falta de luz.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhm8aPHIgtVNE5OkpVsrG2x2A_40QYhNUjxJnLWmwmqtf80Z5UiNoGHZry3qmiiACIa-al-WCQsdJ0_dNo6IyuqteVZBho4LfVUtJpieqFGiT2mCdbpFWAjX84S8zT32bvteBU-uF26JoKu5jA6ayDWMbDc175wlRanoSmmM0gqtRLHasixPvbdc8IDqiE/s320/SERM%C3%83O.jpg
Logo, há mister luz, há mister espelho e há
mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro
em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária
luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina;
Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o
conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação
depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual
deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do
pregador, ou por parte de Deus?
Primeiramente, por parte de Deus, não
falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio
Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. [...]
Sendo, pois, certo que a palavra divina
não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do
pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa
aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a
palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito,
não é por parte dos ouvintes. Provo.
Os ouvintes, ou são maus ou são bons;
se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça
neles fruto, faz efeito. [...] a palavra de Deus é tão fecunda, que nos bons
faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz
efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos;
lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores
ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os
espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e
ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de
entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a
esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os
não pica. [...]
Mas os de vontades endurecidas ainda
são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e
vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma
coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais
agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. [...]
[...] E com os ouvintes de entendimentos
agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a
força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar
da dureza nasce nas pedras.
Pudéramos arguir ao lavrador do
Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de
semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se
visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra, que, sem
cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina
palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. [...] Tomai
exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras
agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o
aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.
Quando o semeador do Céu deixou o
campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações,
e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos
espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos
espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer
nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.
Supostas estas duas demonstrações;
suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de
Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por
parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra
de Deus? – Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a
palavra de Deus? – Por culpa nossa.
[...]
In: Eugênio Gomes, org.
Vieira – Sermões. 6. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1972. p. 94-99.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar
Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p.
93-94.
Entendendo o texto:
01 – Quais são os três
princípios que, segundo o Padre Vieira, podem impedir que a palavra de Deus
frutifique no mundo?
Os três
princípios são: a falta de empenho do pregador, a falta de atenção e
receptividade do ouvinte e a ausência da graça divina.
02 – Qual é a comparação
utilizada pelo Padre Vieira para explicar a necessidade da ação conjunta do
pregador, do ouvinte e de Deus na conversão de uma alma?
Ele compara a
conversão de uma alma com a necessidade de olhos, espelho e luz para que um
homem possa ver a si mesmo. O pregador seria o espelho (a doutrina), Deus seria
a luz (a graça) e o ouvinte seriam os olhos (o conhecimento).
03 – Por que o Padre Vieira
afirma que a palavra de Deus não deixa de frutificar por parte de Deus?
Ele se baseia na
fé e em ensinamentos bíblicos para afirmar que Deus sempre concede a graça
necessária para a conversão, portanto, a falta de fruto não pode ser atribuída
a Ele.
04 – Qual é o argumento
utilizado pelo Padre Vieira para refutar a ideia de que a falta de fruto da
palavra de Deus é culpa dos ouvintes?
Ele argumenta que
a palavra de Deus é tão poderosa que, mesmo em ouvintes maus (representados
pelos espinhos e pelas pedras), ela produz algum efeito, seja nos bons, seja
nos maus.
05 – Quem são os
"ouvintes de entendimentos agudos" e os "ouvintes de vontades
endurecidas" mencionados no texto?
Os "ouvintes
de entendimentos agudos" são aqueles que possuem grande capacidade de
compreensão, mas que podem usar essa inteligência para questionar e criticar a
palavra de Deus, em vez de acolhê-la. Já os "ouvintes de vontades
endurecidas" são aqueles que se mostram resistentes à mensagem divina,
mesmo que a compreendam.
06 – Que exemplo o Padre
Vieira utiliza para ilustrar a força da palavra de Deus, mesmo diante da
resistência dos ouvintes?
Ele cita o exemplo
das pedras e dos espinhos que, apesar de resistirem ao semeador (a palavra de
Deus), um dia o aclamarão e o coroarão, simbolizando a conversão que pode
ocorrer até nos corações mais endurecidos.
07 – Qual é a principal
conclusão do Padre Vieira sobre a razão pela qual a palavra de Deus não
frutifica como deveria?
Ele conclui que a
culpa é dos pregadores, que não estão cumprindo seu papel de transmitir a
mensagem divina de forma eficaz e persuasiva.