Crônica social
Clarice Lispector
Era um almoço de senhoras. Não só a anfitrioa como cada convidada parecia estar
satisfeita por tudo estar saindo bem. Como se houvesse sempre o perigo de
subitamente revelar-se que aquela realidade de garçons mudos, de flores e de
elegância estava um pouco acima delas - não por condição social, apenas isso:
acima delas. Talvez acima do fato de serem simplesmente mulher e não apenas
senhoras. Se todas tinham direito a esse ambiente, pareciam no entanto recear o
momento da gafe. Gafe é a hora em que certa realidade se revela.
O almoço estava bem servido, inteiramente longe da ideia de cozinha: antes da
chegada das convidadas haviam sido retirados todos os andaimes.
O que não impediu que cada uma tivesse que perdoar um pequeno detalhe, a bem
dessa entidade: o almoço. O detalhe a perdoar de certa mente no seu penteado, o
que lhe dava um desses sobressaltos que pressagiam catástrofe. Havia dois
garçons. O que servia esta senhora ficou-lhe invisível o tempo todo. E não se
acredita que ele tivesse visto o rosto dessa senhora. Sem a possibilidade de se
conhecerem jamais, suas relações se estabeleciam através de periódicos toques
no penteado. E ele sentia. Através do penteado sentia-se aos poucos odiado e
ele mesmo começou a sentir cólera.
Supõe-se que cada conviva teve sua pequena veia de sangue no meio do grande
almoço. Cada uma deve ter tido, por um momento ao menos, esse aviso urgente e
pungente de um penteado que pode desabar - precipitando o almoço em desastre.
A anfitrioa usava de uma ligeira autoridade que não lhe ficasse mal. Às vezes,
porém, esqueça que a observavam e tomava expressões um pouco surpreendentes.
Como seja, um ar de cansaço excitado e de decepção. Os então como em certo
momento - que pensamento vago e angustiado passou-lhe pela cabeça? - olhou
inteiramente ausente a vizinha da direita que lhe falava. A vizinha lhe disse:
"A paisagem lá é soberba!" E a anfitrioa, com um tom de ânsia, sonho
e doçura, respondeu pressurosa:
- Pois é... é mesmo... não é?
Quem dentre todas aproveitou melhor foi a senhora X, convidada da honra que,
sempre convidadíssima por todos, já reduzira o almoço a apenas almoçar. Entre
gestos delicados e grande tranquilidade, devorou com prazer o cardápio francês
- mergulhava a colher na boca, e depois olhava-a com muita curiosidade, resquícios
da infância.
Mas em todas as outras convidadas, uma naturalidade fingida. Quem sabe, se
fingissem menos naturalidade ficassem mais naturais. Ninguém ousaria. Cada uma
tinha um pouco de medo de si própria, como se se achasse capaz das maiores
grosserias mal se abandonasse um pouco. Não: o compromisso fora o de tornar o
almoço perfeito.
E nem havia como se abandonar, a menos que fosse admitido o ocasional silêncio.
O que seria impossível. Mal um assunto vinha por acaso e natural, era
truculentamente que todas lhe caíam em cima, prolongando-o até às reticências.
Como todas o exploravam no mesmo sentido - pois todas estavam a par das mesmas
coisas - e como não ocorreria uma divergência de opinião, cada assunto era de
novo uma possibilidade de silêncio.
A senhora Z, grande, sadia, com flores no corpete, 50 anos, recém-casada. Tinha
o riso fácil e emocionado de quem casou tarde. Todas pareciam em cumplicidade
achá-la ridícula. O que aliviava um pouco a tensão. Mas ela era um pouco
claramente ridícula demais, não devia ser essa a sua chave - se a nossa vizinha
do lado nos desse tempo de procurar qualquer chave que fosse. Não dava tempo:
falava.
O pior é que uma das convidadas só falava francês. O que fazia com que a
senhora Y estivesse em dificuldades. A desforra vinha quando a estrangeira
dizia uma daquelas frases que, como resposta, podem ser exatamente repetidas,
apenas com uma mudança de entonação. "Il n'est pas mal", dizia a
estrangeira. Então a senhora Y, segura de que estaria falando certo, repetia enfim
a frase, bem alto, cheia de espanto e do prazer de quem pensou e descobriu:
"Ah, il n'est pas mal, il n'est pas mal." Pois, como disse outra
convidada sem ser estrangeira e a propósito de outra coisa: "C'est le tan
qui fait la chamon."
Quanto à senhora K., vestida de cinza, estava sempre disposta a ouvir e a
responder. Sentia-se bem em ser um pouco apagada. Descobriria que sua melhor
era a da discrição e usava-a com certa abundância. "Desse modo de ser que
arranjei ninguém me tira", diziam seus olhos sorridentes e maternais.
Arranjara mesmos sinais para a sua discrição, como a história dos espiões que
usavam distintivos de espiões. Assim, vestia-se claramente com roupas chamadas
discretas. Suas joias eram francamente discretas. Aliás, as discretas formam
uma corporação. Elas se reconhecem a um olhar, e, louvando uma a outra,
louvam-se ao mesmo tempo.
A conversa começou sobre cachorros. A conversa final, na hora do licor, não se
sabe por que tendência ao círculo perfeito, tratou de cachorros. A doce anfitrioa
tinha um cão chamado José. O que nenhuma da corporação das discretas faria. O
cachorro delas se chamaria Rex, e, ainda assim, em algum momento discreto, elas
diriam: "Foi meu filho quem deu o nome." Na corporação das discretas
usa-se muito falar dos filhos como de adoráveis tiranos das casas. "Meu
filho acha este meu vestido horrível." "Minha filha comprou entradas
para o concerto mas acho que não vou, ela vai com o pai." De um modo geral
uma dama pertencente à corporação das discretas é convidada por causa de seu
marido, homem de altos negócios, ou de falecido pai, provavelmente jurista de
nome.
Levantam-se da mesa. As que dobram ligeiramente o guardanapo antes de se erguer
é porque assim foram ensinadas. As que o deixam negligentemente largado têm uma
teoria sobre deixar guardanapos negligentemente largado.
O café suaviza um pouco a copiosa e fina refeição, mas o licor mistura-se aos
vinhos anteriores, dando uma vaguidão arfante às convidadas. Quem fuma, fuma:
quem não fuma, não fuma. Todas fumam. A anfitroa sorri, sorri, cansada. Todas
enfim se despedem. Com o resto da tarde estragada. Umas voltam para a casa com
a tarde partida. Outras aproveitam o fato de já estarem vestidas para fazer
alguma visita. Só Deus sabe, se não de pêsames. Terra é terra, come-se,
morre-se.
De um modo geral o almoço foi perfeito. Será preciso retribuir em breve. Não.
01. Qual é
a atmosfera predominante descrita na crônica durante o almoço das senhoras?
A atmosfera predominante é de tensão
e artificialidade, onde cada detalhe é cuidadosamente mantido para sustentar
uma ilusão de perfeição.
02. Como
as convidadas parecem se comportar durante o almoço?
As convidadas parecem se comportar de
maneira tensa e preocupada, tentando manter uma fachada de naturalidade e
elegância, mas com medo constante de cometer uma gafe.
03. Qual é
o papel da anfitriã nesse contexto social?
A anfitriã tenta liderar e controlar
o ambiente, mas ocasionalmente mostra sinais de cansaço e descontentamento.
04. Como a
crônica retrata as relações entre as convidadas e os garçons?
As relações entre as convidadas e os
garçons são distantes e estranhas, marcadas por interações mínimas e
mal-entendidos.
05. Qual é
a ironia presente na maneira como as senhoras interagem entre si durante o
almoço?
A ironia está na artificialidade e na
tensão subjacentes às interações, onde a busca por perfeição contrasta com a
inevitável inadequação e insegurança.
06. Como a
crônica retrata a preocupação das senhoras com a aparência e o comportamento
social?
As senhoras demonstram uma
preocupação constante com sua aparência e comportamento, temendo uma possível
ruptura da fachada cuidadosamente mantida.
07. Qual é
o contraste entre a convidada especial, senhora X, e o restante das convidadas?
Senhora X parece desfrutar
genuinamente do almoço, contrastando com as outras que estão mais preocupadas
com as formalidades sociais.
08. Que
tipo de conversas predominam durante o almoço?
As conversas predominantes parecem
ser superficiais e triviais, com destaque para assuntos como cachorros,
mantendo-se dentro de um escopo seguro e compartilhado.
09. Como a
crônica utiliza detalhes como a maneira de dobrar os guardanapos para transmitir
nuances sociais?
A crônica utiliza esses detalhes para
ilustrar as regras não ditas e as expectativas sociais que permeiam o evento,
revelando a complexidade por trás de gestos aparentemente simples.
10. Qual é
a mensagem central transmitida pela crônica em relação às convenções sociais e
à natureza humana?
A crônica destaca a fragilidade das
convenções sociais e a inevitabilidade das imperfeições humanas, sublinhando a
tensão entre a busca pela perfeição e a realidade da natureza humana com suas
falhas e inseguranças.
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