quinta-feira, 30 de maio de 2024

CRÔNICA: ÁLVARO, ME ADICIONA - GREGÓRIO DUVIVIER - COM GABARITO

 Crônica: Álvaro, me adiciona

              Gregório Duvivier

        “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” Espanta que Álvaro de Campos tenha dito isso antes do advento das redes sociais. O heterônimo parece estar falando da minha timeline: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwrg52xW8lQFgW_xu7bzcA-oKqAmA4KPtsu3aZ-Y-PxP4vhJ-vKhyphenhyphenQuMDSoS3lBaFygUyt_gdBS95VnLsVTMf1MfvQo41sOFbPKQBe54zU0IUcuUGJ5HcxAKFsPueNq6GdIIw0lL3t_kQoSzftjexEvoP3VQBI0K03QJiYFVShsSnDWKJ2-XAErH2x_9w/s320/Time-Timelines.png

        Todo post é autoelogioso. Não se deixe enganar. Talvez você pense o contrário: meu Facebook só tem gente reclamando da vida. Olhe de novo. Por trás de cada reclamação, de cada protesto, de cada autocrítica, perceba, camufladinha, a vontade de parecer melhor que o resto do mundo.

        “Humblebrag” é uma palavra que faz falta em português. Composta pela junção das palavras humble (humilde) e brag (gabar-se), seria algo como a gabação modesta. Em vez de simplesmente gabar-se: “Ganhei um prêmio de melhor ator no Festival de Gramado”, você diz: “O Festival de Gramado está muito decadente. Para vocês terem uma ideia, me deram um prêmio de melhor ator”. Ou então: “Pessoal, moro num apartamento mínimo! Por favor, parem de me dar prêmios, não tenho mais onde guardá-los. Grato.”

        O “humblebragging” pode tomar muitas formas. “Tenho um defeito terrível. Sou perfeccionista.” Ou então: “Tenho uma falha imperdoável. Sou sincero demais”. Quero ver alguém falar a verdade: “Tenho um defeito: só penso em mim mesmo, o que faz com que eu seja pouquíssimo confiável – além de ter uma higiene deplorável.”

        Não menos sutil é o elogio-bumerangue. Você começa falando bem de alguém. Ali, no meio do elogio alheio, você encaixa uma menção a si mesmo, disfarçadinha. “O Rafa é muito humano, parceiro, sincero. Se não fosse ele, eu nunca teria chegado onde cheguei, e criado o maior canal do YouTube brasileiro. Obrigado, Rafa. Obrigado.”

        O elogio-bumerangue tem uma subdivisão especialmente macabra: o elogio bumerangue-post-mortem, no qual você aproveita os holofotes gerados pela morte de alguém para chamar atenção para si (às vezes até atribuindo palavras ao defunto). “O Zé era um gênio. Ainda por cima muito generoso. Foi a primeira pessoa a perceber o meu talento como ator. Um dia me disse: Gregório, você é o melhor ator da sua geração. Obrigado, Zé. Obrigado.”

        Atenção: se todo post é vaidoso, toda coluna também. Percebam o uso de palavras em inglês, a citação a Fernando Pessoa. Tudo o que eu mais quero é que vocês me achem o máximo. “Então sou só eu que sou vil e errôneo nessa terra?” Não, Álvaro. Me adiciona.

DUVIVIER, Gregório. Publicada em: 4 maio 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2015/05/1624271-alvaro-me-adiciona.shtml. Acesso em: 19 ago. 2015.

Fonte: Língua Portuguesa. Se liga na língua – Literatura – Produção de texto – Linguagem. Wilton Ormundo / Cristiane Siniscalchi. 1 Ensino Médio. Ed. Moderna. 1ª edição. São Paulo, 2016. p. 292-293.

Entendendo a crônica:

01 – O texto revela que o cronista é leitor de textos diversos. Quais tipos de texto foram citados?

      Textos literários e textos que circulam nas redes sociais.

02 – Quem é Álvaro de que fala o título? Faça uma breve pesquisa para entender por que o cronista se refere a ele como “heterônimo”.

      O cronista refere-se a Álvaro de Campos, um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935).

03 – Em que parte do texto o cronista dá ao leitor que desconhece Álvaro uma pista de sua identidade? Ela lhe parece suficiente? Por quê?

      Na conclusão, o cronista afirma ter citado Fernando Pessoa, o que pode ajudar alguns leitores a lembrar do autor e de seus heterônimos. Um leitor que realmente desconheça essa informação tenderá a ficar confuso.

04 – Releia os versos citados no primeiro parágrafo. Que relação existe entre eles e o assunto da crônica?

      O cronista reclama do fato de, nas redes sociais, as pessoas sempre destacarem seus aspectos positivos, mentindo sobre suas fragilidades ou omitindo-as.

05 – Em que contexto deve ser entendido o pedido “me adiciona”?

      Nas redes sociais, adicionar significa aceitar o outro como parte de seus contatos; o cronista quer ser “adicionado” por Álvaro porque compartilha sua visão de mundo.

06 – A palavra humblebragging não pertence à língua portuguesa. Quais outros termos também são estrangeirismos? A presença deles no código usado para a transmissão da mensagem a prejudica? Por quê?

      São citados post, timeline e os nomes próprios Facebook e Youtube. Embora não façam parte da língua portuguesa, em geral não prejudicam a comunicação por terem um uso já popular. O termo humblebragging, único possivelmente desconhecido, é explicado pelo autor.

07 – Compare a formação das palavras humblebragging e elogio-bumerangue. Os dois substantivos compostos foram formados com a junção de dois termos. Que relação existe entre as duas palavras que formam cada um dos termos?

      As palavras formadoras de humblebragging – humble (“humilde”) e bragging (“gabação”) – têm uma relação antitética, isto é, são opostas. Em elogio-bumerangue há uma relação de especificação: bumerangue, uma peça de arremesso que retorna ao lançador, qualifica elogio.

08 – A intertextualidade e a citação de termos estrangeiros são empregadas como argumentos no último parágrafo da crônica. Que ideia elas provam? Que efeito essa ideia provoca na crônica?

      As palavras provam que o cronista também procura criar uma imagem positiva de si mesmo, o que cria um efeito de humor, já que esse era o alvo da crítica.

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