sábado, 25 de maio de 2024

CRÔNICA: EMBARQUE - ANTÔNIO PRATA - COM GABARITO

 Crônica: Embarque

              Antônio Prata

        “Rodrigo?!, soltou a mulher, uns cinco metros adiante, olhando pra mim. Confuso, parei de empurrar o carinho de bagagens, olhei pra trás, olhei em volta, mas, antes que eu terminasse a busca, ela insistiu; “Rodrigo!” – agora já não mais uma pergunta, e sim uma afirmação. Um vento frio soprou no meu estômago: senti como se tivesse cruzado uma aduana invisível que separa o embarque de Congonhas de um livro do Kafka.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh3xV5TjvafHhPkGqi5Xa7vTKBLAS1a5a2bpGQ335zmoOGnyaV3ijcA_Ym97SDEJab5UfUaWusQmxNPNIImY63H11Wvm_xx0_zjslO8ltYMQ4RkjFtu4zQ0hsMmXYuJXzi0v6D5zQwcJBr8-5CAMxyOTiHYSvogoQmFxV3vkcfF4eSxnkFiSDoVKgBUqMQ/s320/aeroporto-congonhas-infraero-divulgacao_widelg.jpg

        Há, sem dúvida, aspectos meus que desconheço; há, talvez, rincões de minh’alma que nem com cinco décadas de análise conseguirei acessar, mas, depois de 37 anos sobre a Terra, algo posso afirmar sobre mim, sem titubear: eu não me chamo Rodrigo. A mulher, porém, não pensava assim – e, a julgar pela voz trêmula, pela boca cerrada e pela sobrancelha franzida, isso não era muito promissor.

        Ela aparentava uns 40, 50 anos, tinha um cabelo preto, farto e olhos espantados, circundados por rugas profundas – vincos que, suspeitei, não deviam ser totalmente desvinculados do tal Rodrigo. Havia dor e susto ali, mas havia afeto também. Pensei menos num estelionatário que tivesse dado um golpe na venda de um carro do que num namoro de fim catastrófico.

        Quem sabe o Rodrigo tinha prometido casar, ter filhos, passarem a aposentadoria juntos num sítio e, um belo dia, escafedeu-se? Agora, numa terça de manhã, assim, do nada, ela o encontra – ou acha que o encontra – na sala de embarque do aeroporto. Dava mesmo pra entender o choque – caso eu fosse o Rodrigo.

        Como eu não era – e continuo não sendo –, resolvi desfazer a confusão e fui caminhando em direção à mulher. Quem sabe eu nem precisasse falar nada? Quem sabe bastaria ela me ver de perto pra sorrir, envergonhada, “Nossa, achei que...”, “Tranquilo, acontece”. Eu seguiria andando, atravessaria o corredor que separa o Franz Kafka do Franz Café, compraria um pão de queijo e leria o meu jornal. A um metro da mulher, no entanto: “Rodrigo...”.

        Se o primeiro “Rodrigo?!” foi um “Meu Deus, é você?!” – e me deixou confuso –, se o segundo “Rodrigo!” foi um “Sim, é você!” – e me deixou com medo –, o terceiro “Rodrigo...” tava mais pra um “Você, hein?” – que me encheu de culpa. O Rodrigo sem duvida havia pisado na bola, grandão, com aquela mulher, a havia feito sofrer, chorar, espernear e esperar noites a fio: agora estava ali – ou, pelo menos, era o que ela pensava – para receber o troco.

        Fui chegando perto, já pegando o RG para o caso de precisar desfazer, oficialmente, o mal-entendido, mas nem consegui sacar o documento: num salto, ela veio pra cima de mim. Esperei unhadas, mordidas, uma facada talvez.

        Em vez disso, me deu um abraço e começou a chorar: “Rodrigo! Ah, Rodrigo!”. Fiquei ali por um tempo, imóvel e perplexo, sentindo o cheiro, o calor e os tremeliques daquela estranha. Então ela se afastou, olhou pro chão, olhou pra mim e disse, baixinho: “Rodrigo, você me perdoa?”.

        Olhei no fundo dos olhos dela e acabei, finalmente, com aquele absurdo: “Perdoo”. Aos poucos, os soluços foram diminuindo, ela enxugou as lágrimas, disse “Brigada” e, atendendo à última chamada para o embarque do voo 1047, pra Maringá, sumiu pelo portão nove.

PRATA, Antônio. Embarque. Folha de S. Paulo, 7 dez. 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2014/12/1558637-embarque.shtml. Acesso em: 6 out. 2015.

Fonte: Língua Portuguesa. Se liga na língua – Literatura – Produção de texto – Linguagem. Wilton Ormundo / Cristiane Siniscalchi. 1 Ensino Médio. Ed. Moderna. 1ª edição. São Paulo, 2016. p. 222-223.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com a crônica, qual o significado das palavras abaixo:

    Aduana: antigo nome da repartição pública que, no aeroporto, é responsável pela inspeção de bagagens e mercadorias; alfândega.

·         Congonhas: aeroporto localizado na cidade de São Paulo.

·         Rincões: lugares afastados, longínquos.

02 – A crônica relata uma experiência vivida pelo narrador. 

a)    Que acontecimento deu origem à crônica?

A crônica relata um mal-entendido provocado por uma mulher que, em um aeroporto, confundiu o narrador com alguém chamado Rodrigo.

b)    Em que espaço aconteceram as ações narradas e em que período de tempo? 

As ações aconteceram no aeroporto de Congonhas e duraram poucos minutos.

c)    Que recurso o narrador usou, no primeiro parágrafo, para sugerir que a situação foi inesperada? 

A crônica é iniciada pela fala da mulher que chamava o narrador de Rodrigo, surpreendendo-o.

03 – Embora o narrador não conhecesse a mulher que o confundia com Rodrigo, estabeleceu certa sintonia com ela. 

a)    Como se evidencia, no terceiro parágrafo, uma relação de simpatia e compreensão? 

Ao olhar para a mulher, o narrador sente pena, pois interpreta as rugas em torno dos olhos dela como sinais de dor, susto e afeto, provocados por alguma coisa que Rodrigo teria feito.

b)    No sexto parágrafo, percebemos que o narrador chega a se confundir com Rodrigo. Transcreva o trecho que faz essa sugestão. 

“...que me encheu de culpa”.

c)    Em outros momentos, o narrador procura marcar sua própria identidade. Cite uma dessas passagens. 

algo posso afirmar sobre mim, sem titubear: eu não me chamo Rodrigo” ou “Como eu não era – e continuo não sendo”.

04 – Pela pontuação, o narrador sugere três maneiras de pronunciar o nome Rodrigo e três diferentes intenções da falante. 

a)    Como o narrador interpretou as frases “Rodrigo?!”, “Rodrigo!” e “Rodrigo...”? 

Para o narrador, “Rodrigo?!” indicava dúvida; “Rodrigo!”, afirmação; “Rodrigo...”, a acusação.

b)    A interpretação do último chamamento corresponde, de fato, ao contexto? Por quê? 

Não. O chamamento não indica uma acusação ou queixa por algum erro de Rodrigo. A mulher pede perdão, sugerindo que ela própria não teria se comportado bem.

05 – A narrativa traz um desfecho imprevisível. Releia: “Olhei no fundo dos olhos dela e acabei, finalmente, com aquele absurdo: ‘Perdoo’”. Por que a resposta do narrador quebra a expectativa do leitor?

      Em vez de revelar sua correta identidade, como desejara fazer durante toda a narrativa, o narrador finge ser, de fato, Rodrigo e oferece o perdão solicitado pela mulher.

06 – O cronista apresenta o relato como uma experiência pessoal.

a)    Na sua opinião, os fatos narrados realmente acontecem ou são fictícios? Justifique.

Resposta pessoal do aluno.

b)    Com a narrativa desse rápido encontro, o cronista estimula certa reflexão sobre as relações humanas. O que chamou sua atenção quanto a esse aspecto?

Resposta pessoal do aluno.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário