CONTO: A CANOA FURADA
Graciliano Ramos
Mestre Gaudêncio curandeiro,
homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e
fica longe do sol umas cem léguas. — Já me disseram isso, murmurou Cesária.
Das Dores arregalou os olhos,
seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto
Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo:
– Conversa, mestre Gaudêncio.
Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro, papel
aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre
Gaudêncio.
– Ora, seu Firmino! exclamou
Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do
homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E
a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às
varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa,
Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.
Levantou-se, foi acender o
cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.
– Embarca. E por falar em
canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos.
Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para
contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns
meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas?
Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no
alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária.
Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de vender a fazenda e os
cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir
com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas
bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se
trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que
um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes,
onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns
pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de
educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o
seu nome. Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava
com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da
cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em
pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante
do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado
nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando
importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito
que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, deem um salto à
ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinquenta léguas em redor, de
vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. A história da
onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas
espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre,
tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só
o que eu fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na
viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo
que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva
pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de
cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da
canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar
nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O
acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se
converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de
uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei
diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa
nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela
vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta.
Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais
encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de
arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para
casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão
azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores.
Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S.
Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do
mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos,
tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por
cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre
Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema
em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante
largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um
boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu
ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que
morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo
estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já
viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia
e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um
vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S.
Francisco empanzinado, soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido
as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas.
Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas
de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas. — “Seu
moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?” E o homem respondeu, de
cara enferrujada:
– “Segura ela é. Mas garantir
que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para
dentro, que ainda cabe um.” Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na
goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para
usar de franqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar
com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na
popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres
velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal
nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços
estavam boiando. Foi um deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres
soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira
dos pecados.
— “Então, seu mestre,
perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?” E o
desgraçado respondeu: “Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não
é.”
— “Que é que vamos fazer?”
gritei desadorado.
— “Sei lá, disse o homem. Quem
tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.” A minha
vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos
veem que não havia tempo.
— “Está bem, tornei. Nós
ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos
para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso
direitinho, seu filho de uma égua.” Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela
miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos
rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo
perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar
os pontos quando me veio de repente uma ideia, a ideia mais feliz que Deus me
deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo,
comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a ideia, dei um salto,
fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os
companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas
o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? A embarcação se
esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a
Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro.
Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso,
alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha.
Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e
dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era
um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem:
— “Seu Alexandre, vamos deixar
de besteira. O senhor é um homem.” Ficamos amigos, fomos para a bodega e
passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.
Entendendo o texto
01. No
trecho “Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada”,
Alexandre sugere que:
a. todo mundo
já andou em canoa furada.
b. todo mundo
já viajou em canoa.
c. todo mundo
já ajudou as pessoas.
d. todo mundo já foi enganado por alguém.
02. Ao
tentar evitar que a canoa afundasse, Alexandre demonstrou ser:
a. apático
e egoísta.
b. esperto e rápido.
c. egoísta
e vagaroso.
d. vagaroso
e apático.
03. No
trecho “Foi um deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram
os rosários e botaram as mãos na cabeça”, é possível inferir que as pessoas
estavam:
a. tranquilas.
b. desesperadas.
c. irritadas.
d. felizes.
04. No trecho “Já andaram por essas bandas? Tenho
aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa de alfaiate,
comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária”, um termo que
é próprio da linguagem informal é:
a. bandas.
b. alfaiate.
c. corte.
d. frasco.
05. Uma
das finalidades do causo lido é:
a. narrar uma história de origem oral.
b. relatar
com veracidade os fatos.
c. argumentar
sobre os perigos das canoas.
d. instruir
sobre como usar as canoas.
06. Na
história contada por Alexandre, o conflito, ou seja, o momento de tensão da
narrativa, é marcado:
a. pelo furo na canoa, que apavorou as pessoas.
b. pelo conserto
do furo na canoa, que tranquilizou as pessoas.
c. pela chegada
da canoa em terras alagoanas.
d. pela partida
da canoa de terras alagoanas.
07. O
clímax da história contada por Alexandre, ou seja, o momento de maior tensão na
narrativa, é quando o personagem:
a. tampa
o buraco da canoa.
b. faz outro buraco da canoa.
c. vira a
canoa.
d. resgata
a canoa.
08. No
desfecho da história contada por Alexandre, todos que estão na canoa:
a. caem na
água.
b. têm medo
de água.
c. embarcam
com medo.
d. desembarcam com segurança.
09. No
trecho “Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma
ideia [...]”, a expressão destacada indica relação de sentido de:
a. causa.
b. condição.
c. tempo.
d. finalidade.
10. No
trecho “Selei o cavalo e atirei-me para o norte” a expressão liga duas
orações e estabelece entre elas relação de sentido de:
a. adição.
b. oposição.
c. explicação.
d. conclusão.
11. No trecho “Fiquei embuchado, com uma resposta
atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha
disposição”, a conjunção destacada tem o mesmo sentido de:
a. mas.
b. a fim
de.
c. para.
d. porque.
12. No
trecho “E, ali pelas alturas de Propriá vi uma canoa cheia de gente que
botava para as Alagoas”, a expressão destacada indica circunstância de:
a. tempo.
b. modo.
c. lugar.
d. instrumento.
13. No trecho
“Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem
umas cem léguas de comprimento” a conjunção mas indica:
a. adição.
b. oposição.
c. explicação.
d. conclusão.
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