terça-feira, 9 de março de 2021

CRÔNICA: A CASA DO MEU AVÔ - DANUZA LEÃO - COM GABARITO

 Crônica: A casa do meu avô

                    Danuza Leão

       Meu avô paterno, que se chamava Heródoto, tinha dois irmãos, Kociusko e Aristóbulo; sua casa era bem diferente da casa da minha avó materna.

        Eram também 11 tios e tias, mas todos nervosos, desobedientes, brigões e barulhentos. Falavam alto, discutiam e davam grandes gargalhadas – tudo ao mesmo tempo. Depois que a minha avó morreu, meu avô se casou de novo; os três filhos do primeiro casamento odiavam a madrasta, é claro, e eram correspondidos com intensidade, coisas de uma família normal. Sendo assim, seus enteados – entre eles meu pai – tinham muita liberdade: para fazer e sobretudo para pensar.

        Todos adoravam comer e, como a casa era perto do mar, havia sempre grandes peixadas, muito mexilhão, muito camarão de rio e de mar e muita lagosta. No quintal, um canteiro só de pimenta malagueta, e a família se fartava. Comia-se macarrão com pimenta, ovo frito com pimenta, pão com pimenta, sempre tirada na hora, do pé – em conserva, nem pensar. A pimenta era amassada com a faca e espalhada sobre o que se ia comer. Todo mundo saía da mesa fungando, e meu avô dizia: "Se não chorar, não vale". Os mais velhos, quando iam à casa de outros parentes, levavam pimentas num vidrinho, para o que desse e viesse.

        No quintal, um monte de galinhas soltas, e também um galo grande, lindo, de penas ruivas, e um galinho garnisé branco. A primeira percepção de vida que senti – sem entender – foi quando segurei pela primeira vez um ovo que a galinha tinha acabado de botar. O ovo era quente, mas um quente diferente, perturbador; um quente vivo.

        Havia uma mangueira e os mais novos amarravam um saquinho na ponta de uma vara para tirar as mangas ainda verdes; as frutas eram massageadas para que parecessem maduras e vendidas numa rua longe da casa – espertos, os meninos. Quando se comia galinha, o que era raro, era ao molho pardo, e a garotada não perdia a cena, com direito a muito cacarejo e muito sangue. A briga na mesa era pela moela, o objeto de desejo de todos. O pescoço era jogado para um cachorro vira-lata que não tinha dono e sempre aparecia para descolar alguma sobra de comida. Ah, na casa desse meu avô nunca se falou em religião nem nunca ninguém foi à missa.

        Lá não havia muita disciplina; a madrasta de meu pai não conseguia mandar nos que não eram seus filhos e, como os dela queriam fazer o que os meios-irmãos faziam, o resultado era uma confusão permanente. Um dia, a família resolveu se mudar e, quando chegaram à casa nova e contaram, notaram que faltava uma criança; foi preciso voltar para buscá-la.

        Quando meu avô ficou tuberculoso, o médico recomendou uma cidade de bom clima, e a família mudou-se para Barbacena. Fomos visitá-lo uma vez; seu prato, seu copo e seus talheres eram separados dos outros, e não se podia chegar perto para não pegar a doença. Ele ficava o dia todo na varanda, triste, numa cadeira de vime, com as pernas cobertas por uma manta, tomando leite, coitado.

        Era especial, meu avô, e com ele não havia essa de economizar nos sentimentos: quando eu nasci, mandou fazer meu nome em metal, bem grande, e botou na fachada da casa onde morava. Ah, meu avô querido.

        Depois que ele morreu, a família se dispersou, mas ainda guardo dele a mais linda carta que já recebi, contando um sonho que havia tido comigo, querendo me abraçar e não conseguindo.

        O tempo passou, mas ainda sei trechos dessa carta de cor – e continuo gostando muito de comer pimenta.

        E, como ele dizia, se não chorar, não vale.

  LEÃO, Danuza. Folha de São Paulo, 28 jul. 2002. Caderno C. p. 22.

                   Fonte: Português – Língua e Cultura. Carlos Alberto Faraco. Volume 1. 2. Ed. – Curitiba: Base Editorial, 2010. P. 27-8.


Entendendo a crônica:

01 – Por que a figura do avô paterno foi tão marcante para a autora?

      Era especial, meu avô, e com ele não havia essa de economizar nos sentimentos: quando eu nasci, mandou fazer meu nome em metal, bem grande, e botou na fachada da casa onde morava. Ah, meu avô querido.

02 – Observe que há um momento neste segundo texto em que aparece o motivo “a primeira vez” (que já encontramos na crônica “Mar”, de Rubem Braga). De que “primeira vez” nos fala a autora?

      No quintal, um monte de galinhas soltas, e também um galo grande, lindo, de penas ruivas, e um galinho garnisé branco. A primeira percepção de vida que senti – sem entender – foi quando segurei pela primeira vez um ovo que a galinha tinha acabado de botar. O ovo era quente, mas um quente diferente, perturbador; um quente vivo.

03 – O aspecto que ganha realce quando lemos as duas crônicas de Danuza Leão são as diferenças entre as duas famílias. Esta crônica vai se construindo tendo a primeira como ponto de referência (A casa da minha avó): a autora vai contrastando os temperamentos das pessoas e o modo de vida de cada família. Como exercício de leitura, faça um levantamento dessas diferenças.

·        A casa da minha avó: temperamento – 4° e 11° parágrafos.

                                    Modo de vida – 1°, 3°, 5°, 8° e 9° parágrafos.

·        A casa do meu avô: temperamento – 2° e 6° parágrafos.

                                 Modo de vida – 1°, 2°, 3°, 5°, 6° e 9° parágrafos.

 

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