Reportagem: Gestos podem estar na origem da linguagem
As pesquisas sobre o uso de sinais por chimpanzés e crianças surdas estão mudando algumas teorias
Sharon Begley
Novas pesquisas sobre como os
chimpanzés e crianças surdas se comunicam por gestos podem fornecer a resposta
para um dos maiores mistérios da evolução humanas: quando e como se originou a
linguagem?
Um chimpanzé fêmea senta-se no chão,
satisfeita, comendo frutas na sua floresta africana natal. Nisso, um outro
chimpanzé fêmea, mais jovem, se aproxima e estende a mão em concha. Ela está
pedindo à primeira para compartilhar a comida. Um outro chimpanzé, desta vez em
um centro de pesquisa de Atlanta (EUA), focaliza uma banana que está fora do
seu alcance, fora da gaiola, a sua esquerda. Quando um cientista se aproxima, o
chimpanzé faz um gesto com a mão direita, estendendo-a toda, os olhos indo do
cientista para a banana e vice-versa: “Se importaria de me passar a comida,
grandão?”
O.K., em se tratando de linguagem,
apresentar a mão em concha ou estendê-la não é exatamente o solilóquio de
Hamlet. A natureza primitiva do sistema de comunicação do chimpanzé convenceu
muitos cientistas de que nossos parentes mais próximos não conseguem dominar a
verdadeira linguagem com todos os seus meandros gramaticais e sintáticos.
Mas mesmo esses críticos admitem que o
chimpanzé, tanto na selva como no laboratório, faz o que pode ser classificado
ao menos como comunicação intencional. Embora os gritos dos chimpanzés indiquem
emoções como medo e raiva, são seus gestos que transmitem significado.
Combinado com estudos com crianças
surdas que, espontaneamente, criam sua própria e complexa linguagem de sinais –
e com a descoberta de que as pessoas cegas gesticulam no mesmo ritmo das
pessoas que enxergam – estão crescendo as provas de que o cérebro humano está
equipado para a comunicação gestual.
Agora alguns cientistas estão indo
ainda mais longe. Um dos enigmas mais persistentes da antropologia é quando e
como a linguagem, considerada a façanha máxima da evolução humana e também o
atributo que separa nossa espécie de todas as outras, teve origem. “A linguagem
pode ter evoluído não da vocalização de nossos ancestrais, mas dos gestos
manuais”, diz Mike Corballis, um neurocientista cognitivo da Universidade de
Auckland, na Nova Zelândia.
Desde
o século 18 – A ideia de que a linguagem surgiu dos gestos foi proposta no
século 18 e foi reavivada na década de 1970. Mas soçobrou por falta de provas.
Agora, porém, os cientistas têm 20 anos de descobertas sobre como os chimpanzés
são capazes de usar a linguagem de sinais. “Na vida selvagem, um bonobo usa
gestos de mão para indicar à fêmea como ele gostaria que ela se posicionasse
para o sexo”, explica William Hopkins, pesquisador da linguagem dos chimpanzés
do Berry College no Estado da Geórgia (EUA) e do Yerkes Regional Primate
Research Center (Centro Regional Yerkes de Pesquisa com Primatas). Os bonobos
também usam sinais de mão para avisar aos outros que há um ser humano
observando-os furtivamente. Um jovem bonobo foi visto fazendo um gesto para
convidar seu irmão menor para brincar, em vez de mostrar, por meio de
representação, o que tinha em mente. Pode não ser linguagem, mas é comunicação
simbólica.
Os chimpanzés conseguem reforçar sua
capacidade simbólica quando aprendem um pouco da Língua de Sinais Americana
(American Sign Language – ASL), a língua de gestos manuais dos surdos. Embora
os macacos pareçam não conseguir ir além da linguagem própria de uma criança de
2 anos, há indícios de que sua facilidade com os gestos “é decorrente de um
sistema neurológico atávico de comunicação baseado no gesto”, diz Hopkins. Os
chimpanzés aprendem facilmente centenas de sinais da ASL e os combinam em
sentenças que nunca viram antes, entre elas “me faça cócegas” ou “me dê uma
banana”.
Em outra descoberta interessante, a
chimpanzé Washoe que aprendeu a ASL, ensinou-a espontaneamente a seu filho
adotivo, Loulis, moldando a mão dele para que fizesse cada sinal corretamente.
Loulis consegue agora usar cerca de 80 sinais – para objetos como banana e
ações como dar e vir.
Embora na maioria das atividades os
chimpanzés não mostrem preferência pelo uso de uma das mãos, na linguagem de
sinais parece ser diferente.
Esquerda e direita – Em um estudo
conduzido em 1998 com 115 chimpanzés em Yerkes, Hopkins e David Leaves, da
Universidade da Geórgia, descobriram que os chimpanzés tendiam a usar a mão
direita para fazer gestos significativos do tipo
“por-favor-me-passe-uma-banana”, mesmo quando a banana está do lado esquerdo do
chimpanzé. “O chimpanzé costuma usar a mão esquerda para alcançar a banana”,
diz Hopkins. “O fato de estarem usando a mão direita para fazer o gesto indica
que esta é uma tentativa de comunicar-se, não de alcançar algo. O lado esquerdo
do cérebro envia sinais para o lado direito do corpo e também aloja os centros
da linguagem. É possível que as áreas do cérebro responsáveis pela linguagem,
que somente no ano passado foram descobertas nos chimpanzés, estejam associadas
à comunicação gestual”, diz ainda Hopkins.
A outra grande mudança no estudo dos
gestos é que a sinalização é agora reconhecida como uma “linguagem apropriada,
gramatical”, como diz Mike Corballis. Mais ainda: as pessoas surdas em todo o
mundo e no decorrer dos séculos têm inventado linguagens de sinais. Esses
sistemas são completamente gramaticais também. “O surgimento espontâneo”, diz
Corballis, “confirma que a comunicação gestual é tão natural à condição humana
quanto o é a linguagem falada.” As crianças surdas até “balbuciam” em sinais,
fazendo um gesto repetidamente, da mesma maneira que seus amiguinhos que
escutam fazem o mesmo “ma-ma-ma” repetidamente.
As crianças surdas podem até inventar
aspectos gramaticais mais refinados que aqueles da língua falada. Veja o
exemplo das crianças surdas de pais ouvintes, na China e nos Estados Unidos, que
inventaram linguagens de sinais. As invenções delas têm mais semelhança entre
si do que têm com a sinalização simples que viram seus pais fazerem, segundo um
estudo de 1988 liderado pela psicóloga Susan Goldin – Meadow, da Universidade
de Chicago (EUA). Além disso, a linguagem gestual das crianças mostrou detalhes
gramaticais mais reinados do que aqueles que ocorrem em inglês ou mandarim: as
crianças usam sinais ligeiramente diferentes para “rato” nas sentenças “o rato
chegou” e “o rato comeu o queijo”. A única diferença entre as duas é que o
primeiro rato é o sujeito de uma sentença com um verbo intransitivo (“chegar”),
enquanto o segundo rato é o sujeito de uma sentença com um verbo transitivo
(“comer”).
Pode um gesto, então, recorrer às
mesmas estruturas cerebrais para a gramática que a fala faz? Estudos de imagens
do cérebro indicam que sim. “Os neurônios responsáveis pela produção e
compreensão da linguagem tornam-se ativos quando um emissor de sinais surdo
observa sentenças na Língua de Sinais Americana”, diz Helen Nerville, da
Universidade de Oregon (EUA).
Sistemas
antigos – A ideia de que o cérebro abriga sistemas antigos para a linguagem
gestual não foi surpresa para os cientistas que estudam o desenvolvimento da
linguagem nas crianças. “Os bebês fazem gestos complexos antes de falar e
crianças que fazem gestos referenciais mais cedo começam a falar mais cedo,
enquanto aquelas que fazem gestos mais tarde falam mais tarde”, explica a
psicóloga do desenvolvimento Elizabeth Bates, da Universidade da Califórnia, em
San Diego (EUA). “Os gestos e a linguagem compartilham um substrato neural
comum; isso é coerente com a ideia de que a linguagem oral surgiu da gestual,
embora também seja consistente com o desenvolvimento paralelo de ambas”.
Faz sentido que, em um mundo de predadores, nossos ancestrais tenham
evoluído da comunicação silenciosa para a oral. Mas nem todos concordam que a
linguagem tenha se originado do gesto. O neuropsicólogo Merlin Donald, da
Queens University, de Ontário (Canadá), argumenta que, se ela tivesse se
originada daí, então uma linguagem gestual totalmente desenvolvida ainda
estaria por aí; e não está, a não ser entre os surdos.
Mas uma origem gestual poderia resolver
um dos enigmas mais desafiadores da evolução humana. O desenvolvimento da
laringe (uma das condições para a fala) só se deu há uns 150 mil anos, segundo
sugerem fósseis de ancestrais de seres humanos. Dali até as primeiras
civilizações da antiguidade (que surgiram há mais ou menos 5 mil anos),
argumenta Mike Corballis, “é um espaço de tempo muito curto para o surgimento
de coisas tão complexas como a gramática”, que requer mudanças revolucionárias
no cérebro.
Contudo, se nossos ancestrais já
tivessem inventado a gramática e usado para a linguagem gestual, então a
transferência dessa gramática para a fala não teria sido tão mais difícil do
que, por exemplo, aplicar as lições da gramática espanhola para o português. A
troca de meios seria fácil. Como resultado, assim que a laringe surgiu, os
seres humanos puderam começar a conversar. E nunca mais pararam.
BEGLEY, Sharon. O
Estado de São Paulo, 16 maio 2002. Caderno 2. Tradução de Maria de Lourdes
Botelho. From The New York Times, 8/15/2002. c 2002. Todos os direitos
reservados. Usado com permissão e protegido pelas leis de copyright dos Estados
Unidos.
Fonte: Português –
Língua e Cultura. Carlos Alberto Faraco. Volume 1. 2. Ed. – Curitiba: Base
Editorial, 2010. P. 89-93.
Fonte da imagem-https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.hippopx.com%2Ffr%2Flola-ya-bonobo-democratic-republic-of-congo-kinshasa-africa-ape-nature-pan-19709&psig=AOvVaw1pX66xl-zGUTIc8t9xIn1B&ust=1617229722915000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCIi28byI2e8CFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo a reportagem:
01 – Observe que o texto é,
no geral, bastante cauteloso:
1° parágrafo – 2ª linha.
4° parágrafo – 2ª linha.
5° parágrafo – 5ª linha.
12° parágrafo – 1ª linha.
13° parágrafo – 1ª linha.
· Várias vezes se insiste que se trata apenas de uma possibilidade. Ou seja: não temos nenhuma certeza. Preste atenção, nesse sentido, em como o verbo poder (no sentido de ser possível) é frequente no texto. Já no título ele está presente. Localize outros exemplos;
Quem concorda – 14° parágrafo.
Quem discorda – 15° parágrafo.
·
Apresentam-se afirmações um pouco mais
incríveis dos pesquisadores que defendem a hipótese de que a linguagem verbal
foi precedida de uma linguagem gestual. Mas também informa-se que nem todos
concordam com esta hipótese (Quem é citado neste caso?); e que outros a tratam
com certa reserva (observe que as palavras da psicóloga Elizabeth Bates
enfraquecem um pouco a hipótese. Que outra possibilidade ela sugere?).
Elizabeth Bates – 14° parágrafo.
02 – Apesar de redigir um
texto cauteloso, é claramente perceptível que a autora tem simpatia pela
hipótese que relata. Ela faz interesses manobras argumentativas nesse sentido.
Uma delas é fazer uma concessão aos “adversários” (aos críticos da hipótese)
para, em seguida, tentar enfraquecer a posição deles. É uma manobra que podemos
representar pelo esquema SIM/MAS
(muito comum, aliás, nas nossas conversas cotidianas). Observe o exemplo do
início do texto em seus vários lances:
1°) a autora relata o uso de gestos por
chimpanzés na natureza e no laboratório (segundo parágrafo);
2°) em seguida, ela faz a concessão ao
“adversário”, dizendo (terceiro parágrafo):
“O.K., em se tratando de linguagem,
apresentar a mão em concha ou estendê-la não é exatamente o solilóquio de
Hamlet.”
Ou seja, SIM – o sistema gestual dos chimpanzés é muito simples e está muito
longe da complexidade da linguagem verbal humana (representada aqui pelo
solilóquio de Hamlet – referência à famosa cena da peça Hamlet, de
Shakespeare). E acrescenta que a simplicidade do sistema gestual leva muitos
cientistas (os “adversários”) a concluir que os chimpanzés não conseguem
dominar a linguagem humana;
3°) ela tenta agora enfraquecer a
posição dos “adversários” (é a hora do MAS).
Observe com atenção cada passo que ela dá (quarto parágrafo):
a) O
parágrafo começa assim:
“Mas
mesmo esses críticos admitem (...).”
·
Com o Mas ela sinaliza que vai fazer um
movimento de “quebra”, de enfraquecimento do efeito da concessão (do SIM);
·
Em seguida, os cientistas mencionados no
parágrafo anterior passam a ser chamados de críticos (“adversários”, portanto,
da hipótese à qual ela será simpática);
·
Por fim, ela busca fortalecer a sua posição
dizendo que mesmo os “adversários” admitem (concordam) que os chimpanzés têm,
com os gestos, uma comunicação intencional.
b) Enfraquecida
a posição dos “adversários”, a autora acrescenta dois dados humanos (o caso das
crianças surdas e o das pessoas cegas) para reforçar a posição de sua simpatia
e concluir que “estão crescendo as provas de que o cérebro humano está equipado
para a comunicação gestual”, conclusão que sustentará o passo seguinte do
texto: levantar a possibilidade de solução do enigma da origem da linguagem
verbal (ela teria evoluído não das vocalizações dos nossos ancestrais, mas de
seus gestos manuais).
Localize,
agora, outro momento do texto em que a autora usa a mesma estratégia
argumentativa do SIM/MAS.
15° parágrafo.
03 – A autora lembra que a
hipótese de que a linguagem verbal surgiu dos gestos é antiga. Contudo, nunca
se sustentou por falta de provas. Agora, segundo ela, os cientistas estariam
melhor aparelhados para retorná-la. Dois grandes fatores estariam contribuindo
para isso.
a)
Quais são eles?
O uso de sinais por outros primatas e o uso de sinais por crianças
surdas.
b)
Por que eles são importantes para dar certo
sustento à hipótese?
Porque... – 13° e 14° parágrafos.
04 – No último parágrafo, a
autora dá uma certa “forçada de barra” para fazer passar a plausibilidade da
hipótese. Em certo sentido, ela atropela a questão que continua sendo central
em toda esta discussão. Conforme aponta Mike Corballis no parágrafo anterior
(isto é, como se deu a passagem de um sistema mais simples para um mais
complexo?). Para ela, a gramática já estava “inventada” (continuamos sem saber
como) na linguagem de gestos; a coisa toda se resumiu a trocar os gestos pelos
sons vocais. O exemplo que ela dá é efetivamente adequado para o caso? Por quê?
Não, porque
passar da gramática espanhola para o português é passar de uma língua complexa
para outra língua complexa e não de um sistema simples para outro complexo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário