terça-feira, 9 de março de 2021

ENTREVISTA COM GARI NA IMUNDÍCIE DA CIDADE - MARILENE FELINTO - COM GABARITO

 Entrevista com gari na imundície da cidade

                            MARILENE FELINTO

        Entrevista de propósito com um gari de São Paulo. J.S. 35, baiano de Jacobina, há três anos veio de lá, onde era ajudante de pedreiro, e trabalha na "varreção", da cidade. O lugar, perto do Mercado Municipal, no centro, recendia a mijo e restos de comida.

        Casado, sem filhos, ele estudou até o primeiro ano primário. Mantive a fala original de J.S., só corrigindo as concordâncias, porque às vezes ele soa como um personagem de Guimarães Rosa.

        Pergunta – É humilhante esse trabalho de varrer rua?

        Gari – Não, eu não acho. É um trabalho e é honra. O pior é tirar dos outros, né? Roubar o dos outros é que é feio.

        Pergunta – Não era melhor ser ajudante de pedreiro?

        Gari – Ah, exatamente não, porque lá eu ganhava um salário mínimo só, e aqui eu ganho quase três. Ganho R$ 260,00. A cesta básica é R$ 62,00, o ticket refeição é R$ 185,00, mais a insalubridade, que é R$ 22,00. Mas isso eu acho que eles não estão pagando, que eu não vejo. E precisa você denunciar aí que os supermercados não estão aceitando mais o ticket refeição. E que também o nosso fundo de garantia eles não estão depositando.
Nessa empresa aqui tem também, por exemplo, que eu trabalhei antes, oito meses, pintando guia de rua com cal, mas eles não querem contar como tempo de serviço, que era sem carteira. Mas eu tenho testemunha. Eu caminhava mais de 10 km por dia pintando guia. E lá eu ganhava outra coisa. Trabalhar com tinta é uma coisa, e com varreção, é outra. Que aqui também eles mandam a gente trabalhar de coletor. Eu digo: não, não sou coletor, não vou trabalhar de graça. Eu sou da varreção. Coletor ganha é R$ 400,00.

        Pergunta – Você trabalha sem luvas?

        Gari – Luva eles dão. Mas eu não botei hoje porque está muito quente. Mas não dão é bota de borracha. Só esse sapatinho aqui, e a gente nessa água podre, pegando frieira.

        Pergunta – Quanto você paga de aluguel?

        Gari – Não pago. Moro na casa de uma tia. Se eu pagasse, oxente, já estava passando fome, como tem muita gente aqui. Se você vai alugar uma casa, é 200 contos. Não dá. Se eu pagasse aluguel, já tinha ido embora. Diretamente eu ia para Salvador vender gelinho ou cerveja numa caixa.

        Pergunta – O que você acha que deve ser feito para as pessoas não sujarem as ruas?

        Gari – É aí, olha. Que as pessoas sujam demais as ruas e não têm respeito por nós. Em convém, eu acho assim, o pessoal, esse Brasil nosso, eles acham que nós somos obrigados a limpar. A gente acabou de barrer ali, eles vão e sujam. Eu fico olhando assim. Eu digo: dona, eu acabei de barrer aí e a senhora vai sujar de novo bem aí? Eles dizem que a obrigação da gente é limpar mesmo. Eles não põem na cabeça deles. Eu acho assim, determinado, que a imundície já é da casa deles pra rua. Porque, que a gente é assim uma pessoa fraca, de pouco dinheiro, mas a gente quer um copo limpinho pra tomar água e tudo. Porque a limpeza é bonita em todo canto, não é?

 Marilene Felinto. Folha de São Paulo, 26/8/1997. 3° caderno, p.2.

Fonte: Práticas de Linguagem. Leitura & Produção de Textos. Volume 4. Ernani & Nicola. Editora Scipione. P. 08-12.

Entendendo a entrevista:

01 – Para que servem as entrevistas?

      Há entrevistas cujo objetivo é expressar a opinião do entrevistado. Outros servem para a obtenção de dados, tais como as entrevistas para pesquisas de mercado e recenseamento.

02 – Embora muitas entrevistas sejam feitas por escrito (o entrevistador manda as perguntas por escrito ao entrevistado, que as responde também por escrito), a maior parte delas é realizada oralmente. Que diferenças existem entre as entrevistas orais e as registradas por escrita?

      Teoricamente, numa entrevista oral a linguagem tende a ser mais espontânea e natural, pois o entrevistado é obrigado a responder as perguntas de imediato, dispondo de pouco tempo para produzir respostas mais elaboradas. Por outro lado, nas entrevistas por escrito, o entrevistado tem a oportunidade de preparar e elaborar melhor suas respostas, já que não será necessário fornecê-las de imediato.

03 – O que você acha: as pessoas são mais espontâneas quando falam ou quando escrevem?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Por que a entrevistadora perguntou ao gari se o trabalho dele era humilhante? Será que ela própria tem essa opinião?

      A pergunta se deve ao fato de, infelizmente, muitas pessoas considerarem humilhante a atividade dos garis. Todavia, isso não significa, necessariamente, que a entrevistadora tenha essa opinião.

05 – Comente a seguinte fala do gari: “E precisa você denunciar aí que os supermercados não estão aceitando mais o ticket refeição. E que também o nosso fundo de garantia eles não estão depositando”. A que se refere o advérbio ?

      O advérbio refere-se ao jornal em que será publicado a entrevista. Por saber que está dando uma entrevista para um órgão de imprensa, o gari aproveita a chance para fazer denúncias, esperando que a publicação da denúncia colabore para reparar as injustiças.

06 – Quanto o gari recebe mensalmente por seu trabalho na “varreção”?

      O intuito da questão é fazer o aluno perceber qual é o salário bruto do gari – a soma de seu salário-base mais as vantagens (R$ 260,00. A cesta básica é R$ 62,00, o ticket refeição é R$ 185,00, mais a insalubridade, que é R$ 22,00) perfaz um total de 5229 reais. Admitindo que ele realmente não receba o valor relativo à insalubridade, seu salário seria de 507 reais. Ressaltar para os alunos que esse é, provavelmente, seu salário bruto, sobre a qual ainda incidirão descontos, como a contribuição previdenciária.

07 – Cesta básica é o conjunto de alimentos essenciais (arroz, feijão, óleo, açúcar, etc.) necessários para manter um trabalhador adulto por um mês. Em sua opinião, os 62 reais que o gari recebe para a cesta básica são suficientes para suprir por um mês essas necessidades?

      Resposta pessoal do aluno.

08 – Auxílio insalubridade é uma quantia em dinheiro acrescentada ao salário-base de um trabalhador quando ele exerce alguma atividade insalubre.

a)   O que é uma atividade insalubre?

Atividade insalubre é aquela que traz prejuízos à saúde, isto é, que pode gerar doenças.

b)   Dê alguns exemplos de atividades insalubres.

Trabalhos em ambientes de altíssimas ou baixíssimas temperaturas (em siderúrgicas, frigoríficos, etc.) atividades em que se fica exposto a substâncias tóxicas ou radioativas (em metalúrgicas, laboratórios químicos, indústrias de tintas e resinas, etc.).

c)   Quais elementos do texto indicam que o gari exerce atividade insalubre?

A referência à necessidade do uso de luvas e botas de borracha, para evitar o contato com a “água podre”.

09 – Você concorda com a afirmação de que “as pessoas sujam demais as ruas”?

      Resposta pessoal do aluno.

10 – O gari afirma que, se tivesse de pagar aluguel, preferiria ir para Salvador, onde iria “vender gelinho ou cerveja numa caixa”. Por que ele “escolheria” esse tipo de trabalho?

      Ressaltar que, devido à sua baixa escolaridade, para o gari as oportunidades de trabalho formal são cada vez mais escassos. Assim, ele seria fatalmente levado para um trabalho informal, como o de vendedor ambulante.

11 – Na fala do gari, que elementos comprovam que ele veio do Nordeste e só cursou o primeiro ano primário?

      O uso de formas como exaltamente, em vez de exatamente, e barrer, em vez de varrer, revela a baixa escolaridade. O termo oxente pode indicar que ele veio do Nordeste.

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