quarta-feira, 28 de agosto de 2024

ROMANCE: A CIDADE E AS SERRAS - (FRAGMENTO) - EÇA DE QUEIRÓS - COM GABARITO

 Romance: A cidade e as serras – Fragmento

                 Eça de Queirós

I

        O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi0Buu7RYYVabZQesSo01v72_sbMa4nZSZNaDvCDhPAJ_By_AmWq06cGHgjrB3a2DK-A8sWCyI7Wat9BRsaFOd2-oGx9M1vKjBKzOJHFSY4SBh8gsnVeUgtNkU8ECDOsay3ng93CvM7M-yFj3ZhpPoUuo-OqLK3A0d_Ug3uw-q30qvKd_TVRSCy5wzwPsw/s320/SERRAS.jpg


        No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando pôr e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei d.Dinis. A sua Quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo douro, cobriam uma serra. [...] Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, nº 202. [...]

        Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas Escolas do Bairro Latino [...].

        Ora nesse tempo Jacinto concebera [...] a ideia de que o “homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. E pôr homem civilizado o meu camarada entendia aquele que, robustecendo a sua força pensante com todas as noções adquiridas desde Aristóteles, e multiplicando a potência corporal dos seus órgãos com todos os mecanismos inventados [...] apto portanto a recolher dentro de uma sociedade, e nos limites do Progresso (tal como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos os proveitos que resultam de Saber e Poder... [...]

        Pôr uma conclusão bem natural, a ideia de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, duma enorme Cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos pôr três mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fábricas fumegando com ânsia, inventando com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, pôr baixo e pôr cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante dos ônibus, tramas, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar, através da Polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo – o homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver! [...].

        Ao contrário no campo, entre a inconsciência e a impassibilidade da Natureza, ele tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão [...]. Depois, em meio da Natureza, ele assistia à súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores. De que servia, entre plantas e bichos – ser um Gênio ou ser um Santo?

II

        Era de novo fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elísios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até às abas recurvas do chapéu de onde fugiam anéis dum cabelo crespo, ressumava elegância e a familiaridade das coisas finas. [...] E só quando ele parou ao portão do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.

        -- Ó Jacinto!

        -- Ó Zé Fernandes! [...]

        -- Há sete anos!...

        E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202! [...] 

        Mas dentro, no peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado pôr Jacinto[...]. Um criado, mais atento ao termômetro que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente umedecendo aquele ar delicado e superfino.

        Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado ser:

        -- Eis a Civilização!

        [...].

III

        [Nós] saíamos depois do almoço, a pé, através de Paris. Estes lentos e errantes passeios eram outrora, na nossa idade de Estudantes, um gozo muito querido de Jacinto – porque neles mais intensamente e mais minuciosamente saboreava a Cidade. Agora, porém, apesar da minha companhia, só lhe davam uma impaciência e uma fadiga que desoladamente destoava do antigo, iluminado êxtase. Com espanto (mesmo com dor, porque sou bom, e sempre me entristece o desmoronar duma crença) descobri eu, na primeira tarde em que descemos aos Boulevards, que o denso formigueiro humano sobre o asfalto, e a torrente sombria dos trens sobre o macadame, afligiam meu amigo pela brutalidade da sua pressa, do seu egoísmo, e do seu estridor. [...]

        -- Não vale a pena, Zé Fernandes. Há uma imensa pobreza e secura de invenção! Sempre os mesmos florões Luís XV, sempre as mesmas pelúcias... Não vale a pena!

        Eu arregalava os olhos para este transformado Jacinto. [...].

IV

        [...] [Recebeu] o meu Príncipe inesperadamente, de Portugal, uma nova considerável. Sobre a sua Quinta e solar de Tormes, pôr toda a serra, passara uma tormenta  devastadora de vento, corisco e água. Com as grossas chuvas [...], um pedaço de monte, que se avançava em socalco sobre o vale da Carriça, desabara, arrastando a velha igreja, uma igrejinha rústica do século XVI, onde jaziam sepultados os avós de Jacinto desde os tempos de el-rei D. Manuel. [...]

        Jacinto empalidecera, impressionado. Esse velho solo serrano, tão rijo e firme desde os Godos, que de repente ruía! Esses jazigos de paz piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na treva, para um negro fundo de vale! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma data, uma história, confundidas num lixo de ruína! [...]

        E telegrafou ao Silvério que desatulhasse o vale, recolhesse as ossadas, reedificasse a Igreja, e para esta obra de piedade e reverência, gastasse o dinheiro, sem contar, como a água dum rio largo.

        [...]

VIII

        Ao fim desse Inverno escuro e pessimista [...], Jacinto assomou à porta do meu quarto [...], deixou desabar sobre mim esta declaração formidável:

        -- Zé Fernandes, vou partir para Tormes. [...]

        -- Para Tormes? Ó Jacinto, quem assassinaste?...

        [...] O Príncipe da Grã-Ventura tirou da algibeira uma carta [...]

        -- “Ilmº  e Exmº sr. – Tenho grande satisfação em comunicar a V.Exª que toda esta semana devem ficar prontas as obras da capela...[...]. Os venerandos restos dos excelsos avós de V. Exª., senhores de todo o meu respeito, podem pois ser em breve trasladados da igreja de S José, onde têm estado depositados pôr bondade do nosso Abade, que muito se recomenda a V.Exª... Submisso aguardo as prestantes ordens de V.Exª a respeito desta majestosa e aflitiva cerimônia...” [...]

        -- Ah! bem! Queres ir assistir à trasladação.... Jacinto sumiu a carta no bolso.

        -- Pois não te parece, Zé Fernandes? Não é pôr causa dos outros avós, que são vagos, e que eu não conheci. É pôr causa do avô Galião... Também não o conheci. Mas este 202 está cheio dele; tu estás deitado na cama dele; eu ainda uso o relógio dele. Não posso abandonar ao Silvério e aos caseiros o cuidado de o instalarem no seu jazigo novo. Há aqui um escrúpulo de decência, de elegância moral... Enfim, decidi. Apertei os punhos na cabeça, e gritei – vou a Tormes! E vou!... E tu vens! [...]

        [...] Logo depois de atravessarmos uma trêmula ponte de pau, sobre um riacho quebrado por pedregulhos, o meu Príncipe, com o olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a fartura das oliveiras... – E em breve os nossos males [da viagem] esqueceram ante a incomparável beleza daquela serra bendita!

XV

        E agora, entre roseiras que rebentam, e vinhas que se vindimam, já cinco anos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu Príncipe já não é o último Jacinto, Jacinto ponto final – porque naquele solar que decaíra, correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Teresinha, minha afilhada, e um Jacintinho, senhor muito da minha amizade. [...] Quando ele agora, bom sabedor das coisas da lavoura, percorria comigo a Quinta, em sólidas palestras agrícolas, prudentes e sem quimeras – eu quase lamentava esse outro Jacinto que colhia uma teoria em cada ramo de árvore, e riscando o ar com a bengala, planejava queijeiras de cristal e porcelana, para fabricar queijinhos que custariam duzentos mil-réis cada um! [...]

        Visitara já as suas propriedades de Montemor, da Beira; e consertava, mobiliava as velhas casas dessas propriedades para que os seus filhos, mais tarde, crescidos, encontrassem “ninhos feitos”. Mas onde eu reconheci que definitivamente um perfeito e ditoso equilíbrio se estabelecera na alma do meu Príncipe, foi quando ele, já saído daquele primeiro e ardente fanatismo da Simplicidade – entreabriu a porta de Tormes à Civilização. [...] Aparecera, vindo de Lisboa, um contramestre, com operários, e mais caixotes, para instalar um telefone!

        -- Um telefone, em Tormes, Jacinto? O meu Príncipe explicou, com humildade: -- Para casa de meu sogro!... bem vês.

        Era razoável e carinhoso. O telefone, porém, sutilmente, [...], estendeu outro longo fio, para Valverde. E Jacinto, alargando os braços, quase suplicante:

        -- Para casa do médico. Compreendes...

        Era prudente. Mas, certa manhã, em Guiães, acordei aos berros da tia Vicência! Um homem chegara, misterioso, com outros homens, trazendo arame, para instalar na nossa casa o novo invento. [...]. Mas corri a Tormes. Jacinto sorriu, encolhendo os ombros:

        -- Que queres? Em Guiães está o boticário, está o carniceiro... E, depois, estás tu!

        [...] O Progresso, que, à intimação de Jacinto, subira a Tormes a estabelecer aquela sua maravilha, pensando talvez que conquistara mais um reino para desfear, desceu, silenciosamente, desiludido, e não avistamos mais sobre a serra a sua hirta sombra cor de ferro e de fuligem. Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto tempo ele fora o Príncipe sem Principado.

        [...].

QUEIRÓS, Eça de. A cidade e as serras. São Paulo: Babel, 2012. p. 29-30, 30-36, 39, 43, 44, 47, 48, 65,112, 174, 175, 207, 34.

Fonte: Linguagens em Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 191-194.

Entendendo o romance:

01 – Qual é a origem social de Jacinto?

      Jacinto nasceu em uma família rica, proprietária de vastas terras agrícolas em várias regiões de Portugal, incluindo Alentejo, Estremadura e Beiras. Sua família já possuía essas terras desde os tempos do rei D. Dinis.

02 – Onde Jacinto passou a maior parte de sua vida?

      Jacinto passou a maior parte de sua vida em um palácio em Paris, nos Campos Elísios, nº 202.

03 – Qual era a visão inicial de Jacinto sobre a felicidade?

      Jacinto acreditava que a felicidade superior só podia ser alcançada por um homem superiormente civilizado, ou seja, alguém que acumulasse todo o conhecimento disponível e utilizasse todos os avanços tecnológicos.

04 – Como Jacinto associava a civilização com a cidade?

      Para Jacinto, a civilização estava intrinsecamente ligada à vida na cidade, onde os mecanismos do progresso, como mercados, bancos, fábricas, bibliotecas e infraestruturas modernas, estavam em pleno funcionamento.

05 – Qual era a relação de Jacinto com a natureza no início do romance?

      Jacinto se sentia desconfortável na natureza, vendo-a como um ambiente onde suas capacidades superiores se tornavam inúteis, e onde ele se sentia isolado e frágil.

06 – Como Jacinto reagiu à notícia da destruição da capela de sua família em Tormes?

      Jacinto ficou profundamente abalado com a destruição da capela e dos túmulos de seus antepassados e imediatamente ordenou que as obras de reconstrução fossem realizadas, mostrando um senso de responsabilidade e reverência pela memória de sua família.

07 – O que levou Jacinto a decidir visitar Tormes?

      Jacinto decidiu visitar Tormes para supervisionar pessoalmente a trasladação dos restos mortais de seus avós para a capela reconstruída, motivado por um senso de decência e elegância moral.

08 – Como Jacinto mudou sua percepção da vida na cidade ao longo do tempo?

      Jacinto começou a sentir-se desiludido com a vida na cidade, percebendo a brutalidade e a repetição monótona do progresso urbano, o que contrastava com sua antiga adoração pela civilização urbana.

09 – Como Jacinto encontrou equilíbrio entre a vida na cidade e no campo?

      Jacinto encontrou equilíbrio ao aceitar alguns aspectos do progresso (como o telefone) em Tormes, mas sem permitir que a civilização urbana invadisse completamente sua vida rural. Ele adotou uma vida simples e focada na natureza, mas com toques de modernidade que considerava úteis.

10 – Qual foi o resultado final da transformação de Jacinto em Tormes?

      Jacinto alcançou um equilíbrio harmonioso entre a vida simples do campo e os confortos da civilização, tornando-se um homem feliz e realizado, ao contrário do que era em Paris, onde era o "Príncipe sem Principado".

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário