quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

CRÔNICA: O VASSOUREIRO - RUBEM BRAGA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Crônica: O VASSOUREIRO
          
                  Rubem Braga

        Em um piano distante alguém estuda uma lição lenta, em notas graves. De muito longe, de outra esquina, vem também o som de um realejo. Conheço o velha que o toca, ele anda sempre pelo meu bairro; já fez o periquito tirar para mim um papelucho em que são garantidos 93 anos de vida, muita riqueza, poder e felicidade.
        Ora, não preciso de tanto. Nem de tanta vida, nem de tanta coisa mais. Dinheiro apenas para não ter as aflições da pobreza; poder somente para mandar um pouco, pelo menos, em meu nariz; e da felicidade um salário mínimo tristezas que possa aguentar, remorsos que não doam demais, renúncias que não façam de mim um velho amargo. 
        Joguei uma prata da janela, e o periquito do realejo me fez um ancião poderoso, feliz e rico. De rebarba me concedeu 14 filhos, tarefa e honra que me assustam um pouco. Mas os periquitos são muito exagerados, e o costume de ouvir o dia inteiro trechos de Óperas não lhes fazer bem à cabeça. Os papagaios são mais objetivos e prudentes e só se animam a afirmar uma coisa depois que a ouvem repetidas. 
        Chiquita, a pequenina jabota, passeia a casa inteira, erguendo certa graça o casco pesado sobre as quatro patinhas tortas, e espicha encolhendo o pescoço curioso, tímido e feio. Nunca diz nada, o que é pena, pois deve ter uma visão muito particular das coisas. 
        Agora não se ouve mais no realejo; o piano recomeça a tocar. Sons soltos, e indecisos, teimosos e tristes, de uma lição elementar quer, têm uma grave monotonia. Deus sabe por que acordei hoje tendência a filosofia de bairro; mas agora me ocorre que a vida de gente parece um pouco essa lição de piano. Nunca chega a formar a de uma certa melodia. Começa a esboçar, com os pontos soltos de alguns sons, a curva de uma frase musical; mas logo se detém, e volta, e se numa incoerência monótona. Não tem ritmo nem cadência sensíveis. Quem a vive, essa vida deve ser penosa e triste como o esforço dessa jovem pianista do bairro, que talvez preferisse ir à praia, mas tem de ficar no piano. Na verdade eu é que estou pensando em ir à praia, eu é que preso ao teclado de máquina. Espero que esta crônica, tão cansativa enjoada para mim, possa parecer ao leitor de longe como essa lição piano me parece no meio da manhã clara: alguma coisa monótona e sem sentido, ou às vezes meio desentoada, mas suave. 
        Passa o vassoureiro. É grande, grosso e tem bigodes grossos com todos os de seu ofício. Aos 50 anos darei um bom vassoureiro de barro. De todos os pregões, o seu é o mais fácil: “Vassoura... vassoureiro. E convém fazer a voz um tanto cava. Ele me parece digno, levando entre cruzadas sobre os ombros, numa composição equilibrada e sábia, tantas vassouras, espanadores e cestos. Seu andar é lento, sua voz é grave, presença torna a rua mais solene. É um homem útil. 
        Não ousaria dizer o mesmo de mim mesmo; mas, enfim, já trabalhei já cumpri o meu dever, como o velho do realejo e a mocinha do piano vagamente acho que mereço ir à praia.
Abril, 1949
                                                      Rubem Braga
Entendendo a crônica:
01 – Assinale a figura de linguagem que perpassa o texto e que pode ser observada de modo mais explícito nos dois últimos parágrafos:
a)   Hipérbole.
b)   Antítese.
c)   Gradação.
d)   Metonímia.
e)   Ironia.

02 – Leia as afirmativas a seguir, feitas a respeito de fenômenos sintáticos e linguísticos do texto de Rubem Braga:
I – O primeiro período (que começa com “Em um piano”) é simples e, por desconhecer a identidade de quem pratica a ação, o cronista emprega um pronome indefinido.
II – No período seguinte, a expressão “o som de um realejo” exerce a função sintática do objeto direto.
III – Ao dizer que precisa apenas de um salário mínimo de felicidade, o cronista está empregando uma metáfora.
IV – No último parágrafo, a fim de expressar seu espanto e admiração, o autor empregou e escreveu de modo correto a interjeição “OH!”.

Assinale a alternativa CORRETA:
a)   Somente as afirmações I, II e III estão corretas.
b)   Somente aas afirmativas I, II e IV estão corretas.
c)   Somente as afirmativas I, III e IV estão corretas.
d)   Somente as afirmativas II, III e IV estão corretas.
e)   Todas as afirmativas estão corretas.

03 – Descreva o lugar onde ocorreu o fato. Confirme com trechos da crônica.
      De uma janela.
      “... joguei uma prata da janela...”.

04 – A partir de que parágrafo o autor menciona o acontecimento que derivou esta crônica?
      Desde o primeiro parágrafo.

05 – Em que pessoa verbal o narrador conta o fato?
      Em primeira pessoa do singular. “...joguei...”.

06 – Quem são os personagens do fato narrado?
      A mocinha do piano, o velho do realejo, Chiquita (a jabota), o vassoureiro e o autor.

07 – Existe uma relação entre a situação vivida pelas personagens da crônica e a de nosso dia-a-dia? Justifique.
      Resposta pessoal do aluno.

08 – Quais características pertinente ao gênero crônica podemos encontrar neste texto?
      Personagem – narrador – espaço – tempo limitado – um fato – ações.

09 – No texto estudado predomina a ação ou a reflexão? Comente.
      Predomina a ação. Vários fatos aconteceram enquanto o narrador estava na janela.

10 – Qual é o foco narrativo?
      O foco é o narrador-personagem, pois usa a primeira pessoa e participa dos fatos.




Um comentário: