CRÔNICA ESCRITA
Machado de Assis
Suponha o leitor que possuía duzentos
escravos no dia 12 de maio e que os perdeu com a lei de 13 de maio. Chegava eu
ao seu estabelecimento e perguntava-lhe:
- Os seus libertos
ficaram todos?
- Metade só;
ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se; consta-me que andam por Santo
Antônio de Pádua.
- Quer o senhor
vender-nos?
Espanto do leitor;
eu, explicando:
- Vender-nos
todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram.
O leitor
assombrado:
- Mas, senhor, que
interesse pode ter o senhor...
- Não lhe importe
isso. Vende-nos?
- Libertados não
se vendem.
- É verdade, mas a
escritura de venda terá a data de 29 de abril; nesse caso, não foi o senhor que
perdeu os escravos, fui eu. Os preços marcados na escritura serão os da tabela
da lei de 1885; mas eu realmente não dou mais de dez mil réis por cada um.
Calcula o leitor:
- Duzentas cabeças
a dez mil réis são dois contos. Dois contos por sujeitos que não valem nada, porque
já estão livres, é um bom negócio.
Depois refletindo:
- Mas, perdão, o
senhor leva-os consigo?
- Não, senhor:
ficam trabalhando para o senhor; eu só levo a escritura.
- Que salário pede
por eles?
- Nenhum, pela
minha parte, ficam trabalhando de graça. O senhor pagar-lhes-á o que já paga.
Naturalmente, o
leitor, à força de não entender, aceitava o negócio. Eu ia a outro, depois a
outro, depois a outro, até arranjar quinhentos libertos, que é até onde podiam
ir os cinco contos emprestados; recolhia-me a casa e ficava esperando.
Esperando o quê?
Esperando a indenização, com todos os diabos! Quinhentos libertos, a trezentos
mil réis, termo médio, eram cento e cinquenta contos; lucro certo: cento e
quarenta e cinco.
(Machado de Assis, Crônica escrita
Em 26/06/1888. Obra Completa.)
I – A frase – Quer o senhor vender-nos? – poderia ser
reescrita, segundo uma perspectiva contemporânea e coloquial, da seguinte
maneira:
a) O senhor quer me vender esses
libertos?
b) O senhor quer-me os vender?
c) O senhor quer me vender-lhes?
d) O senhor nos quer vender os libertos?
e) Quer o senhor me os vender?
RESOLUÇÃO: A frase da alternativa a é a única que corresponde ao emprego “contemporâneo
e coloquial” do Português do Brasil. No teste, não se teve a preocupação de distinguir
o coloquial brasileiro do português. Neste último, porém, a próclise em “me
vender” seria substituída por ênclise em “quer-me”. Resposta: A
II – No processo argumentativo, o trecho -
...mas a escritura de venda terá a data de 29 de abril... – tem a função de:
a) Criar uma falsa analogia.
b) Desfazer uma incompatibilidade.
c) Estabelecer uma negociação justa.
d) Valorizar a perda de uma da partes.
e) Abrir caminho a uma renegociação.
RESOLUÇÃO: A oração “mas a escritura de venda terá
a data de 29 de abril” sugere uma falsificação que desfaz a incompatibilidade
de vender escravos após a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, que extinguia a
escravidão no Brasil. Resposta:
B
III – A frase – Nenhum, pela minha parte,
ficam trabalhando de graça. – pode ser reescrita, sem mudança de sentido, da
seguinte maneira:
a) Nenhum, com a minha parte, fica
trabalhando d graça.
b) Nenhum pagamento da minha parte,
ficam trabalhando de graça.
c) Nenhum, pela minha parte fica trabalhando
de graça.
d) Nenhum deles, pela minha parte, fica
trabalhando de graça.
e) Nenhum pagamento, pela minha parte,
ficam trabalhando de graça.
RESOLUÇÃO: No pronome adjetivo nenhum, empregado na
resposta, está implícito o substantivo “salário”, que era o núcleo da pergunta. Resposta: E.
IV – Os pronomes seu
em – Chegava eu ao seu estabelecimento...
– (no início do texto) e outro em – Eu ia a outro, depois a outro,
depois a outro... – (no final do
texto) têm como referência, respectivamente:
a) Libertos, libertos.
b) O leitor, ex-donos de escravos.
c) Local de comércio, libertos.
d) O leitor, títulos de posse.
e) Local de comércio, valores.
RESOLUÇÃO: Em “seu estabelecimento”, o pronome
possessivo refere-se a “leitor” (“Suponha o leitor”). A reiteração de “outro” refere-se
a ex-donos de escravos que seriam contatados pelo narrador. Resposta: B
Obrigado
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