Romance: Infância
(Fragmento II)
Graciliano Ramos
[...]
Recolhi-me preocupado: os fugitivos, os
lobos e o lenhador agitaram-me o sono. Dormi com eles, acordei com eles. As
horas voaram. Alheio à escola, aos brinquedos de minhas irmãs, à tagarelice dos
moleques, vivi com essas criaturas de sonho, incompletas e misteriosas.
À noite meu pai me pediu novamente o
volume, e a cena da véspera se reproduziu: leitura emperrada, mal-entendidos,
explicações.
Na terceira noite fui buscar o livro
espontaneamente, mas meu velho estava sombrio e silencioso. E no dia seguinte,
quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me com um gesto, carrancudo.
Nunca experimentei decepção tão grande.
Era como se tivesse descoberto uma coisa muito preciosa e de repente a
maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a cacos, depois de me haver
ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio foi
desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma longa covardia, a certeza
de que as horas de encanto eram boas demais para mim e não podiam durar.
Findas, porém, as manifestações
secretas de mágoa, refleti, achei que o mal tinha remédio e expliquei o negócio
a Emília, minha excelente prima. O rosto sereno, largos olhos pretos, um ar de
seriedade — linda moça. A irmã, brincalhona e rabugenta, ora pelos pés, ora
pela cabeça, ria como doida e logo explodia em acessos de cólera. Mas Emília
não era deste mundo. Só se zangou comigo uma vez, no dia em que, tuberculosa,
me viu beber água no copo dela. Um anjo.
Confessei, pois, a Emília o meu
desgosto e propus-lhe que me dirigisse a leitura. Esforcei-me por interessá-la
contando-lhe a escuridão na mata, os lobos, os meninos apavorados, a conversa
em casa do lenhador, o aparecimento de uma sujeita que se chamava Águeda. [...]
Assim, era necessário que a priminha lesse comigo o romance e me auxiliasse na
decifração dele.
Emília respondeu com uma pergunta que
me espantou. Por que não me arriscava a tentar a leitura sozinho?
Longamente lhe expus a minha fraqueza
mental, a impossibilidade de compreender as palavras difíceis, sobretudo na
ordem terrível em que se juntavam. Se eu fosse como os outros, bem; mas era
bruto em demasia, todos me achavam bruto em demasia.
Emília combateu a minha convicção,
falou-me dos astrônomos, indivíduos que liam no céu, percebiam tudo quanto há
no céu. Não no céu onde moram Deus Nosso Senhor e a Virgem Maria. Esse ninguém
tinha visto. Mas o outro, o que fica por baixo, o do Sol, da Lua e das
estrelas, os astrônomos conheciam perfeitamente. Ora, se eles enxergavam coisas
tão distantes, porque não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante dos
meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras?
Matutei na lembrança de Emília. Eu, os
astrônomos, que doidice! Ler as coisas do céu, quem havia de supor?
E tomei coragem, fui esconder-me no
quintal, com os lobos, o homem, a mulher, os pequenos, a tempestade na
floresta, a cabana do lenhador. Reli as folhas já percorridas. E as partes que
se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros. Personagens
diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam a inteligência espessa.
Vagarosamente.
Os astrônomos eram formidáveis. Eu,
pobre de mim, não desvendaria os segredos do céu. Preso à terra,
sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos,
mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes.
Graciliano Ramos.
Infância. Rio de Janeiro: Record, 2006.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 7º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 163-6.
Entendendo o romance:
01 – Quais atitudes o pai
toma ao tentar ensinar o menino a ler?
No início, o pai
é dedicado, e o menino fica encantado com a leitura; depois, porém, o pai age
de maneira rude, o que afasta e desencanta o garoto, impedindo-o de continuar
aprendendo.
02 – De que maneiro o menino
busca uma solução para o problema?
Ele procura a ajuda
da prima, Emília, e pede a ela que continue ensinando a ele.
03 – Releia este trecho do
fragmento II:
“Recolhi-me
preocupado: os fugitivos, os lobos e o lenhador agitaram-me o sono. Dormi com
eles, acordei com eles. As horas voaram. Alheio à escola, aos brinquedos de
minhas irmãs, à tagarelice dos moleques, vivi com essas criaturas de sonho,
incompletas e misteriosas.”
a)
Quem são os “fugitivos, os lobos e o
lenhador? Explique.
Não são personagens reais. Os fugitivos, os lobos e o lenhador são personagens
d história que o menino está começando a ler.
b)
Por que o menino diz que dormia e acordava
com “os fugitivos, os lobos e o lenhador”?
Porque não conseguia se desligar da história, estava encantado com a
nova experiência, então continuava a pensar sobre os personagens até mesmo na
hora de dormir.
c)
O que faz com que o menino deixe de lado os
brinquedos de suas irmãs e a tagarelice dos moleques?
Seu interesse pela descoberta da leitura.
04 – O menino desabafa com a
prima sobre sua dificuldade para ler, mas ela conta a ele sobre os astrônomos.
Veja a maneira pela qual o menino reflete sobre eles:
“[...]
Ora, se eles enxergavam coisas tão distantes, porque não conseguiria eu
adivinhar a página aberta diante dos meus olhos? Não distinguia as letras? Não
sabia reuni-las e formar palavras?
Matutei na lembrança de Emília. Eu, os
astrônomos, que doidice! Ler as coisas do céu, quem havia de supor?
E tomei coragem, fui esconder-me no
quintal, com os lobos, o homem, a mulher, os pequenos, a tempestade na
floresta, a cabana do lenhador. [...]”.
a)
O que você acha da ideia de os astrônomos
lerem o céu? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.
b)
O que estimulou o menino a enfrentar sua
dificuldade de ler?
A prima lhe mostra que, se os astrônomos leem o céu, que está tão
distante e nunca foi visto por ninguém, ele poderia ler o que está bem próximo
a ele.
c)
O que o narrador revela com a frase: “E tomei
coragem, fui esconder-me no quintal, com os lobos, o homem, a mulher, os
pequenos, a tempestade na floresta, a cabana do lenhador”?
O narrador revela que se retirou, se isolou, para tentar ler
sozinho, para mergulhar na história que desejava compreender.
05 – Leia as informações do
quadro e responda às questões com base no fragmento.
Narrar é contar uma história. Há
diferentes gêneros textuais que se organizam em narrativas, como romance, contos, crônicas, lendas, fábulas, mitos, entre
outros.
Nas narrativas ficcionais há:
·
Narrador
–
relator dos fatos, dos quais pode ser participante como narrador-personagem
(primeira pessoa), observador (somente observa) e onisciente (terceira pessoa),
quando observa e tem acesso até aos pensamentos dos personagens.
·
Personagens
–
protagonista (personagem principal) e antagonista/forças antagônicas (vilão ou
situação que atrapalha os desejos do protagonista) e secundários (participam de
forma secundária nas ações).
·
Espaço
–
ambiente em que os fatos acontecem.
·
Tempo
–
quando ocorrem as ações ou quanto duram. O tempo pode ser cronológico (medido
elo relógio ou calendário) ou psicológico (como o personagem o percebe no
pensamento).
·
Enredo
–
conjunto de episódios que compõem a narrativa, dividido em: apresentação dos
fatos e personagens, situação-problema ou conflito (o que gera os fatos),
clímax (momento de maior tensão da história) e desfecho (conclusão/resolução do
conflito).
a)
Quem é o personagem protagonista desse
romance? Explique.
O menino é o protagonista do romance. Ele narra a história e todas
as ações ocorrem em torno da situação-problema na qual está envolvido.
b)
Qual é a situação-problema na qual o menino
está envolvido?
Ele não sabe ler, o que o faz se sentir inferiorizado em relação a
outras pessoas.
c)
Há um vilão ou uma força antagônica que
atrapalha o desejo do protagonista? O que ou quem seria? Explique.
Não há um vilão, mas força antagônica, que seria a falta de acesso
às escolas de qualidade.
d)
Quem são os personagens secundários?
Os colegas, o pai e a prima.
e)
Quando ocorre essa passagem da história?
Quando o personagem tinha 9 anos, ou seja, no início do século XX
(1900).
f)
Onde ocorre a história? Como é possível supor
essa informação?
Como o menino afirma ter vizinhos, aparenta ser em uma área urbana,
uma cidade, não no campo. E os locais são: escola, casa e quintal da casa.