quarta-feira, 20 de novembro de 2019

CRÔNICA: BRINCADEIRA - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

Crônica: BRINCADEIRA
        
                 Luís Fernando Veríssimo

        Começou como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:
        -- Eu sei de tudo.
        Depois de um silêncio, o outro disse:
        -- Como é que você soube?
        -- Não interessa. Sei de tudo.
        -- Me faz um favor. Não espalha.
        -- Vou pensar.
        -- Por amor de Deus.
        -- Está bem. Mas olhe lá, hein?
        Descobriu que tinha poder sobre as pessoas.
        -- Sei de tudo.
        -- Co-como?
        -- Sei de tudo.
        -- Tudo o quê?
        -- Você sabe.
        -- Mas é impossível. Como é que você descobriu?
        A reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:
        -- Alguém mais sabe?
        -- Outras se tornavam agressivas:
        -- Está bem, você sabe. E daí?
        -- Daí nada. Só queria que você soubesse que eu sei.
        -- Se você contar para alguém, eu...
        -- Depende de você.
        -- De mim, como?
        -- Se você andar na linha, eu não conto.
        -- Certo
        Uma vez, parecia ter encontrado um inocente.
        -- Eu sei de tudo.
        -- Tudo o quê?
        -- Você sabe.
        -- Não sei. O que é que você sabe?
        -- Não se faça de inocente.
        -- Mas eu realmente não sei.
        -- Vem com essa.
        -- Você não sabe de nada.
        -- Ah, quer dizer que existe alguma coisa pra saber, mas eu é que não sei o que é?
        -- Não existe nada.
        -- Olha que eu vou espalhar...
        -- Pode espalhar que é mentira.
        -- Como é que você sabe o que eu vou espalhar?
        -- Qualquer coisa que você espalhar será mentira.
        -- Está bem. Vou espalhar.
        Mas dali a pouco veio um telefonema. 
        -- Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre aquilo.
        -- Aquilo o quê?
        -- Você sabe.
        Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximava dele e sussurrava:
        -- Você contou pra alguém?
        -- Ainda não.
        -- Puxa. Obrigado.
        Com o tempo, ganhou uma reputação. Era de confiança. Um dia, foi procurado por um amigo com uma oferta de emprego. O salário era enorme.
        -- Por que eu? – quis saber.
        -- A posição é de muita responsabilidade – disse o amigo. – Recomendei você.
        -- Por quê?
        -- Pela sua discrição.
        Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos mas nunca abria a boca para falar de ninguém. Além de bem-informado, um gentleman. Até que recebeu um telefonema. Uma voz misteriosa que disse:
        -- Sei de tudo.
        -- Co-como?
        -- Sei de tudo.
        -- Tudo o quê?
        -- Você sabe.
        Resolveu desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu desaparecimento repentino. Investigaram. O que ele estaria tramando? Finalmente foi descoberto numa praia distante. Os vizinhos contam que uma noite vieram muitos carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos. Os vizinhos contam que a voz que se ouvia era a dele, gritando:
        -- Era brincadeira! Era brincadeira!
        Foi descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado. Mas as pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.
        Sabia demais.

Luís Fernando Veríssimo. Comédias da Vida Privada. Porto Alegre: L&PM, 1995, p.189-91.
Fonte: Livro- PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 7ª Série – Atual Editora -2002 – p. 04-07.
Entendendo a crônica:

01 – Todo texto narrativo apresenta uma personagem principal, à qual se dá o nome de protagonista. Quando já uma personagem que se opõe às ações e aos interesses do protagonista, ela é chamada de antagonista. No início do texto, vemos que o protagonista “Descobriu que tinha poder sobre as pessoas”.
a)   O que as pessoas temiam?
Que seus segredos fossem descobertos.

b)   Qual dos itens seguintes traduz o tipo de poder que supostamente o protagonista tem?
      ( ) poder econômico
      ( ) poder político
      (X) poder da informação.

c)   Quais das frases abaixo confirmam sua resposta anterior?
      ( ) “Sei de tudo”.
      (X) “Daí nada. Só queria que você soubesse que eu sei.”.
      (X) “Se você andar na linha, eu não conto.”

02 – Procure no dicionário o significado da palavra impostor.
      Impostor é aquele que quer passar pelo que não é.

03 – De acordo com a definição acima, você diria que o texto narra a história de um impostor? Por quê?
      Sim, porque o protagonista finge saber o que não sabe.

04 – Há, a seguir, três falas de pessoas a quem a personagem central disse “saber de tudo”.
        “– Me faz um favor. Não espalha”.
        “– Alguém mais sabe?”
        “– Escute. Estive pensando melhor. Não espalhe nada sobre aquilo.”
        Compare essas frases e conclua: mais do que a própria verdade, o que de fato preocupa as pessoas?
        O que os outros vão pensar e dizer delas.

05 – Graças ao seu “silêncio”, o protagonista ocupa cargos de confiança e “sobe na vida”. Até que um dia as coisas mudam.
a)   Qual dos ditos populares a seguir traduz a nova situação vivida pelo protagonista.
        ( ) Antes tarde do que nunca. 
        (X) O feitiço virou contra o feiticeiro. 
        ( ) Os últimos serão os primeiros.

b)   No caso das vítimas, desconhecemos o segredo que elas guardavam. Contudo, no caso da protagonista, sabemos qual é o seu segredo. O que supostamente é o “tudo” mencionado pela “voz misteriosa”?
Que ele, na verdade, não sabe de nada.

c)    O protagonista tem poder sobre as demais pessoas porque supostamente tem informações sigilosas sobre elas. Contudo, a partir do momento em que ele se torna vítima de sua própria “brincadeira”, quem passa a dominar quem? 
A pessoa que diz conhecer o segredo do protagonista passa a ter poder sobre ele e, indiretamente, sobre todos.

06 – Assustado, o protagonista se esconde. Depois de encontrado numa casa de praia, é assassinado. Levante hipóteses:
a)   Quem teria matado?
Provavelmente, uma de suas vítimas.

b)   O que o assassino provavelmente estaria pensando sobre o desaparecimento do impostor, a ponto de querer mata-lo?
Que o impostor estava armando algum plano que o comprometesse.

c)   Por que o protagonista foi morto?
Por precaução por parte do assassino. Provavelmente uma de suas vítimas estava envolvida com graves crimes e não quis ser chantageada ou correr riscos.

d)   Na verdade, antes do assassinato, quem controlava quem?
Não apenas o impostor controla suas vítimas, mas também as vítimas (como é o caso do assassino) controlavam os passos do impostor.

07 – O texto não revela o nome de nenhuma personagem. Considerando que essa história narra uma trama que joga com informações e poder, haveria algum motivo para se ocultar o nome das personagens?
      Sim, a falta de nomes sugere chantagem e segredo entre as vítimas e o protagonista.

08 – Nas frases finais do texto: “As pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo. Sabia demais”. Há uma ironia. Por quê?
      Porque, desde o início, o protagonista não sabia de nada, mas sua “brincadeira” o levou à morte.

09 – Quais dos itens seguintes, sintetizam as ideias principais do texto?
a)    Ter informações exclusivas equivale a ter poder sobre as pessoas.
b)    Melhor do que guardar segredos é não ter informações.
c)    As pessoas geralmente guardam algum tipo de segredo que as comprometem socialmente.
d)    A sociedade se organiza a partir de um jogo de aparências, de falsos papéis sociais; nesse jogo, a aparência vale mais do que a verdade.

10 – Apesar de articular elementos como poder, crime e crítica social, “Brincadeira” é um texto de humor. Levante hipóteses: Por que o texto diverte?
      Porque, na condição de leitores, conhecemos a verdade e achamos graça do poder que têm as palavras e da forma como as pessoas são manipuladas por outras, apenas porque se sentem culpadas por algo que fizeram.


7 comentários:

  1. O que o protagonista ganhou com seu silêncio?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Como no texto diz,ele foi oferecido a empregos com altos salários

      Excluir
  2. MUITO BOAS AS HIPÓTESES DE INTERPRETAÇÃO!

    ResponderExcluir
  3. MUITO BOAS AS HIPÓTESES DE INTERPRETAÇÃO!

    ResponderExcluir
  4. O narrador conta, no início do texto, que o personagem principal “Descobriu que tinha poder sobre as pessoas”. Sobre isso, é CORRETO afirmar:
    As pessoas tinham a certeza de que era tudo uma farsa.
    As pessoas temiam que seus segredos fossem revelados a desconhecidos.
    As pessoas temiam que seus segredos fossem descobertos.
    As pessoas sabiam que se tratava de uma brincadeira.

    ResponderExcluir
  5. Que tipo de poder supostamente o protagonista passou a ter?

    ResponderExcluir