sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

ROMANCE: OS SERTÕES, 3ª PARTE, CAP. VI - A LUTA - (FRAGMENTO) - EUCLIDES DA CUNHA - COM GABARITO

 Romance: Os Sertões, 3ª parte, cap. VI – A luta – Fragmento  

                  Euclides da Cunha

        [...]

        Debandada; Fuga

        E foi uma debandada.

        Oitocentos homens desapareciam em fuga, abandonando as espingardas; arriando as padiolas, em que se estorciam feridos: jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões, para a carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que as recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes…

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        Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico — tristíssimo pormenor! — o cadáver do comandante. Não o defenderam. Não houve um breve simulacro de repulsa contra os inimigos, que não viam e adivinhavam no estrídulo dos gritos desafiadores e nos estampidos de um tiroteio irregular e escasso, como o de uma caçada. Aos primeiros tiros os batalhões diluíram-se.

        Salomão da Rocha

        Apenas a artilharia, na extrema retaguarda, seguia vagarosa e unida, solene quase, na marcha habitual de uma revista, em que parava de quando em quando para varrer a disparos as margens traiçoeiras; e prosseguindo depois, lentamente, rodando, inabordável, terrível…

        A dissolução da tropa parara no aço daqueles canhões cuja guarnição diminuta se destacava maravilhosamente impávida, galvanizada pela força moral de um valente.

        De sorte que no fim de algum tempo em torno dela se adensaram, mais numerosos, os perseguidores.

        O resto da expedição podia escapar-se a salvo. Aquela bateria libertava-a. De encontro aos quatro Krupps de Salomão da Rocha, como de encontro a uma represa, embatia, e parava, adunava-se, avolumando, e recuava, e partia-se a onda rugidora dos jagunços.

        Naquela corrimaça sinistra em que a ferocidade e a cobardia revoluteavam confundidos sob o mesmo aspecto revoltante, abriu-se de improviso um episódio épico.

        Contidos a princípio em distância, os sertanejos constringiam a pouco e pouco o círculo do ataque, em roda das duas divisões, que os afrontavam, seguindo a passo tardo, ou, de súbito, alinhando-se em batalha e arrebentando em descargas, fulminando-os…

        As granadas explodindo entre os restolhos secos do matagal incendiavam-nos; ouviam-se lá dentro, de envolta com o crepitar de queimadas sem labaredas, extintas nos brilhos da manhã claríssima, brados de cólera e de dor; e tontos de fumo, saltando dos esconderijos em chamas, rompentes à ourela da caatinga junto à estrada, os sertanejos em chusma, gritando, correndo, disparando os trabucos e as pistolas — assombrados ante aquela resistência inexplicável, vacilantes no assaltar a zargunchadas e à faca o pequeno grupo de valentes indomáveis.

        Estes, entretanto, mal podiam prosseguir. Reduziam-se. Um a um tombavam os soldados da guarnição estóica. Feridos ou espantados, os muares da tração empacavam; torciam de rumo; impossibilitavam a marcha.

        A bateria afinal parou. Os canhões, emperrados, imobilizaram-se numa volta do caminho…

        O coronel Tamarindo, que volvera à retaguarda, agitando-se destemeroso e infatigável entre os fugitivos, penitenciando-se heroicamente, na hora da catástrofe, da tibieza anterior, ao deparar com aquele quadro estupendo, procurou debalde socorrer os únicos soldados que tinham ido a Canudos. Neste pressuposto ordenou toques repetidos de “meia volta, alto!”. As notas das cornetas, convulsivas, emitidas pelos corneteiros sem fôlego, vibraram inutilmente. Ou melhor — aceleraram a fuga. Naquela desordem só havia uma determinação possível: “debandar!”

        Debalde alguns oficiais, indignados, engatilhavam revólveres ao peito dos foragidos. Não havia contê-los. Passavam; corriam; corriam doidamente; corriam dos oficiais; corriam dos jagunços; e ao verem aqueles, que eram de preferência alvejados pelos últimos, caírem malferidos, não se comoviam. O capitão Vilarim batera-se valentemente quase só, e ao baquear, morto, não encontrou entre os que comandava um braço que o sustivesse. Os próprios feridos e enfermos estropiados lá se iam, cambeteando, arrastando-se penosamente, imprecando os companheiros mais ágeis…

        As notas das cornetas vibravam em cima desse tumulto, imperceptíveis, inúteis…

        Por fim cessaram. Não tinham a quem chamar. A infantaria desaparecera…

        Pela beira da estrada, viam-se apenas peças esparsas de equipamento, mochilas e espingardas, cinturões e sabres, jogados a esmo por ali fora, como coisas imprestáveis.

        Inteiramente só, sem uma única ordenança, o coronel Tamarindo lançou-se desesperadamente, o cavalo a galope, pela estrada — agora deserta — como se procurasse conter ainda, pessoalmente, a vanguarda. E a artilharia ficou afinal inteiramente em abandono, antes de chegar ao Angico.

        Os jagunços lançaram-se então sobre ela.

        Era o desfecho. O capitão Salomão tinha apenas em torno meia dúzia de combatentes leais. Convergiram-lhe em cima os golpes; e ele tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara.

        Consumara-se a catástrofe…

        Logo adiante, na ocasião em que transpunha a galope o córrego do Angico, o coronel Tamarindo foi precipitado do cavalo por uma bala. O engenheiro militar Alfredo do Nascimento alcançou-o ainda com vida. Caído sobre a ribanceira, o velho comandante murmurou ao companheiro que o procurara a sua última ordem:

        — Procure o Cunha Matos…

        Esta ordem dificilmente podia ser cumprida.

        [...]

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 22. ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1952, p. 309-311.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 486-488.

Entendendo o romance:

01 – Qual é o principal evento narrado no fragmento?

      O fragmento descreve a debandada e fuga das tropas do governo durante a expedição contra Canudos, após um ataque surpresa dos sertanejos.

02 – Como é retratada a fuga dos soldados?

      A fuga é retratada como caótica e desesperada. Os soldados abandonam equipamentos, feridos e até mesmo o corpo do comandante, correndo sem direção e tomados pelo pânico.

03 – Qual é o papel da artilharia nesse cenário de caos?

      A artilharia, liderada por Salomão da Rocha, representa um ponto de resistência em meio à debandada. A guarnição da artilharia, demonstrando bravura, consegue conter o avanço dos sertanejos, protegendo a retirada do restante da expedição.

04 – O que acontece com o coronel Tamarindo no final do fragmento?

      O coronel Tamarindo, que tenta desesperadamente organizar a resistência e conter a fuga, é morto a tiros enquanto atravessa o córrego do Angico.

05 – Quem é Salomão da Rocha e qual é o seu destino?

      Salomão da Rocha é o capitão que lidera a artilharia. Ele e seus homens resistem bravamente, mas acabam sendo cercados e mortos pelos sertanejos.

06 – Qual é a ordem final do coronel Tamarindo?

      Mesmo ferido e à beira da morte, o coronel Tamarindo ordena que procurem Cunha Matos, possivelmente para transmitir alguma mensagem ou informação importante.

07 – Que impressão o fragmento transmite sobre a expedição contra Canudos?

      O fragmento transmite a impressão de que a expedição é um fracasso, marcada pela desorganização, pelo medo e pela falta de liderança. A bravura de alguns poucos não é suficiente para evitar a catástrofe.

 

 

ROMANCE: A GRANDE ARTE - CAP. I - (FRAGMENTO) - RUBEM FONSECA - COM GABARITO

 Romance: A grande arte – Cap. I – Fragmento

                Rubem Fonseca

        Caminhei pelo canal do Mangue até encontrar um táxi.  A água poluída do canal exalava um odor desagradável.  Da janela do táxi fiquei olhando os outdoors colocados nos espaços abertos pela demolição das casas: cigarros, televisores, automóveis.

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        Logo que cheguei, Wexler, o meu sócio, entrou na minha sala.

        "Está aqui uma dona com uma história esquisita. Cheguei a pensar que era ruim da cabeça. Vem conversar com ela."

        Sentada no sofá da sala do Wexler, olhava para as unhas. Uma mulher de pouco mais de vinte anos, com duas rodelas fortes de blush sobre os zigomas disfarçando sua cor pardacenta. Chamava-se Gisela.

        "Este aqui é o meu sócio. Conta para ele o caso que você me contou."

        Ela olhou para as unhas.

        Esperamos.

        "Eu já contei para o senhor."

        "Bem", disse Wexler, "ela está sendo ameaçada, não é isso?, por um homem cujo nome  não sabe."

        "O nome dele é Francês."

        "Você disse que não sabia o nome."

        "Foi esse o nome que a Danusa deu."

        "Quem é Danusa?"

        "Minha amiga, que levou ele lá em casa.  Ela tem um gabinete no Santos Vallis, na Senador Dantas."

        "E por que ele está ameaçando você?"  A mulher, além de lacônica, não deixava de olhar para as unhas. Usava um esmalte vermelho. A palavra que veio na minha cabeça foi carmesim.

        Esperamos. É preciso paciência para fazer as pessoas falarem.

        "Eu tenho uma coisa dele."

        "Ele ameaçou você porque você tem alguma coisa dele e não devolve. É isso?"

        "É."

        "E por que você não devolve?"

        "Tenho medo."

        "Que coisa é essa?  Um objeto, dinheiro, o quê?" 

        "Uma fita de videocassete."

        "Tem o que nessa fita?"

        "Não sei. Eu não tenho aparelho para ver."

        "O cassete é dele. Devolve e pronto, encerra o assunto", disse Wexler.

        "Estou com medo.  Quando liguei para dizer que estava com o cassete ele disse que eu era uma louca, que eu tinha visto o que não podia ver." 

        "O que esse Francês foi fazer na sua casa?" 

        Esperamos.

        "Bem..."

        Esperamos

        "Bem, eu sou massagista." Pausa. "Formada, registrada. Ele foi lá em casa, no gabinete, com a Danusa. E esqueceu essa caixa preta. Depois ligou todo nervoso."

        Wexler olhou para mim e fez a cara de desencanto com a  humanidade  que    os  judeus  sabem  fazer.  "E você pediu dinheiro a ele para devolver a caixa que você abriu e viu que tinha uma fita de videocassete dentro."

        Olhando para as unhas ela balançou a cabeça afirmativamente.

        "Minha senhora, nós não trabalhamos para chantagistas", disse Wexler.  "Não há nada que possamos ou queiramos fazer pela senhora."

        Pela primeira vez ela levantou o rosto e olhou para nós. Estava com medo, sim. Não tinha inteligência suficiente para fingir tão bem.

        "Quem mandou você aqui?"

        "Foi a Míriam.  Ela disse que vocês podiam me ajudar." 

        "Não podemos."

        Da porta ela olhou para nós pela última vez.  Mas não era de falar muito. Saiu calada. Sucumbida.

        "Sucumbida nada. Você não consegue ter uma atitude firme quando se trata de mulher. Além do mais não podemos perder nosso tempo com coisas tão ordinárias", disse Wexler.

        Pelo nosso escritório haviam passado criminosos e inocentes de todos os tipos.

        Gisela era um dos mais inexpressivos, entre todos. Poucas horas depois eu já me havia esquecido de que ela existia. À tarde, d.  Sônia, a secretária, me disse que um homem chamado Roberto Mitry queria falar comigo.

        Devia ter uns quarenta anos e vestia-se da maneira que os ricos julgam ser refinada e negligente.

        "O assunto que me traz aqui diz respeito a um objeto de minha propriedade que está em poder de uma cliente sua."

        "Cliente minha?" Eu havia realmente esquecido de Gisela.

        "Receio que ela, dona Gisela, a sua cliente, por eu ser um esportista, um homem da sociedade, meu nome nas colunas, ao saber quem eu sou, queira..."

        Esperei.

        "Os pobres..."

        Esperei.

        "Os pobres são fascinados pelas pessoas bem-situadas.  São eles os consumidores das colunas sociais."

        "E os ricos."

        "Estamos numa democracia. E os ricos, vá lá. Acho justo que todos tenham a mesma oportunidade." Mitry fingiu que bocejava. Parecia ter alguma coisa na boca. Seus maxilares moviam-se lentamente.

        "Tudo tão cansativo." Outro bocejo.

        "O senhor pode esperar um momento?"

        Fui falar com o Wexler.

        "Está na minha sala um sujeito chamado Mitry, que creio ser o tal Francês, mencionado pela moça que esteve aqui hoje de manhã. Ela disse a ele que era nossa cliente."

        "Eu vi que era uma mulher mentirosa. Diga isso a ele."

        "Você não quer ver o cara? É uma figura. Cheio de balangandâs de ouro."

        Apresentei Wexler ao sujeito. Wexler foi direto ao assunto.

        "Essa senhora não é nossa cliente. Veio aqui, dizendo que tinha um objeto seu, um videocassete, e que se sentia ameaçada pelo senhor."

        "É mentira. É mentira. Eu não a ameacei." Dissimuladamente Mitry colocou algo na boca. Mastigou de leve. Engoliu a saliva em pequenos goles.

        "Para falar a verdade, quem se sente ameaçado sou eu."

        "Por ela?"

        "Não, por ela não. Tenho razões, ou melhor, certos feelings que me permitem... Acho que estou correndo riscos, que estão me seguindo."

        Eu estava acostumado com a paranóia das pessoas. "Podia explicar melhor?"

        "Não. É uma intuição. Não tenho inimigos, entendem, mas me sinto ameaçado. É uma coisa subjetiva, reconheço. Gostaria que acreditassem em mim."

        Ficamos todos calados algum tempo. Acendi um Panatela. O Panatela escuro da Suerdieck faz uma cinza grafite, pode ser fumado a qualquer hora, não é como os charutos cubanos que devem ser  fumados com o estômago cheio. O Pimentel número dois, outro dos meus favoritos, é ordinário e fedorento, impregna com seu odor ofensivo cortinas, sofás e os vestidos das moças. Os americanos fabricam um charuto verde que já vem com um furinho.

        "Gostaria de ter os senhores como meus advogados", disse Mitry, afinal.

        "Para quê?" Wexler.

        "Estou sendo vítima de uma chantagem. E sei que o senhor é um profissional muito competente, informei-me antes de vir aqui." Mitry fez um gesto em minha direção.

        "Sou uma blue-chip", eu disse. Ele me dava a impressão de ser um daqueles sujeitos que enriqueceram manobrando na Bolsa.

        Mitry sorriu. "Estou disposto a me desfazer de parte das minhas para pagar o seu preço. E o dos outros, os extras envolvidos. Preço, não, desculpe, como é que vocês dizem?"

        "Honorários." Wexler.

        "Honorários." Ele riu. Eu e Wexler trocamos olhares.

        "Está bem. O senhor vai nos dar uma procuração. Vamos tentar resolver o caso sem interferência da polícia."

        "Não telefone nem se comunique de qualquer outra forma com essa mulher", disse Wexler.

        "É um prazer tê-lo como advogado, doutor Mandrake. Posso chama-lo pelo sobriquet?"

        "Como quiser." O telefone tocou. Era Ada.

        "Hoje faz um ano", disse Ada.

        "Eu gostaria de recuperar logo o cassete", disse Mitry para Wexler.

        "Lembra do primeiro dia?", perguntou Ada.

        "Se necessário, solicitaremos auxílio da polícia", disse Wexler.

        "Polícia não, não por enquanto", disse Mitry.

        Eu me lembrava do primeiro dia: [...].

FONSECA, Rubem. A grande arte. São Paulo: Círculo do livro, 1983, p. 10-13.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 504-507.

Entendendo o romance:

01 – Qual é o nome do protagonista e qual é a sua profissão?

      O nome do protagonista não é mencionado neste fragmento. Ele é sócio de um escritório de advocacia, como é evidenciado pela interação com Wexler.

02 – Quem é Wexler e qual é o papel dele na história?

      Wexler é o sócio do protagonista no escritório de advocacia. Ele é quem apresenta Gisela ao protagonista e participa da interação com Roberto Mitry.

03 – Quem é Gisela e por que ela procura o escritório de advocacia?

      Gisela é uma mulher que procura o escritório de advocacia com uma história de ameaças e chantagem envolvendo um vídeo cassete. Ela alega estar sendo ameaçada por um homem chamado Francês.

04 – Qual é o objeto de discórdia entre Gisela e o Francês?

      O objeto de discórdia é uma fita de vídeo cassete que Gisela possui e que o Francês (Roberto Mitry) deseja recuperar.

05 – Por que Gisela tem medo de devolver a fita para o Francês?

      Gisela tem medo porque o Francês a ameaçou, dizendo que ela tinha visto o que não devia na fita. Ela teme que a fita contenha algo comprometedor ou perigoso.

06 – Quem é Roberto Mitry e por que ele procura o escritório de advocacia?

      Roberto Mitry é o homem que Gisela chama de Francês. Ele é um esportista e figura socialmente conhecida, que procura o escritório de advocacia para reaver a fita e se defender de uma suposta chantagem.

07 – Qual é a versão de Roberto Mitry sobre o caso da fita de vídeo cassete?

      Roberto Mitry alega que está sendo vítima de chantagem por parte de Gisela e que ele é quem se sente ameaçado, não o contrário. Ele menciona ter "intuições" de que está sendo seguido e correndo riscos.

08 – Por que Roberto Mitry contrata o escritório de advocacia?

      Roberto Mitry contrata o escritório de advocacia para que eles o ajudem a reaver a fita de vídeo cassete sem precisar envolver a polícia, evitando assim escândalos que possam prejudicá-lo.

09 – Qual é a opinião do protagonista sobre Gisela e Roberto Mitry?

      O protagonista tem uma opinião negativa sobre Gisela, considerando-a uma pessoa inexpressiva e pouco confiável. Ele também demonstra ceticismo em relação a Roberto Mitry, achando-o afetado e pouco convincente.

10 – Que tipo de serviço o escritório de advocacia se propõe a fazer para Roberto Mitry?

      O escritório de advocacia se propõe a resolver o caso da fita de vídeo cassete de forma discreta, sem envolver a polícia, utilizando seus conhecimentos e habilidades para negociar com Gisela e reaver o objeto para seu cliente.

 

POESIA: DESCOBRIMENTO - MÁRIO DE ANDRADE - COM GABARITO

 Poesia: Descobrimento

             Mário de Andrade

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

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Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.

ANDRADE, Mário de. Poesias completas. 3. ed. São Paulo: Martins Editora & Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972, p. 150.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 490.

Entendendo a poesia:

01 – Qual é o sentimento predominante no poema?

      O poema expressa um sentimento de melancolia e distanciamento. O eu lírico, em São Paulo, sente um "friúme por dentro" ao se lembrar de um homem brasileiro no Norte do país, distante de sua realidade.

02 – Que contraste é estabelecido no poema?

      O poema contrasta a vida do eu lírico em São Paulo, na "rua Lopes Chaves", com a vida de um trabalhador no Norte do Brasil. Enquanto o primeiro está "abancado à escrivaninha", o segundo, após um dia de trabalho árduo com borracha, "faz pouco se deitou, está dormindo".

03 – Qual é a importância do homem do Norte no poema?

      O homem do Norte representa a figura do brasileiro anônimo, trabalhador e distante dos centros urbanos. Sua presença no poema serve para despertar no eu lírico um sentimento de conexão e identificação, apesar da distância física e social.

04 – Como o poema aborda a questão da identidade nacional?

      Ao se referir ao homem do Norte como "brasileiro que nem eu", o poema levanta a questão da identidade nacional para além das diferenças regionais e sociais. O eu lírico reconhece no trabalhador do Norte um compatriota, um igual, com quem compartilha uma identidade brasileira comum.

05 – Qual é a linguagem utilizada no poema?

      A linguagem do poema é simples e direta, com versos livres e tom coloquial. Mário de Andrade utiliza expressões como "livro palerma" e "de supetão" para criar uma atmosfera de intimidade e proximidade com o leitor.

 

 

CONTO: PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM - O BANHO - (FRAGMENTO) - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: Perto do coração selvagem O banho – Fragmento

             Clarice Lispector

        [...]

        O tio e a tia já estavam à mesa. Mas a quem deles ela diria: tenho cada vez mais força, estou crescendo, serei moça? Nem a eles, nem a ninguém. Porque também a nenhum poderei perguntar: diga-me, como são as coisas? e ouvir: também não sei, como o professor respondera. O professor ressurgiu à sua frente como no último instante, inclinado para ela, assustado ou feroz, não o sabia, mas recuando, isso, recuando. A resposta, sentiu, não importava tanto. O que valia era que a indagação fora aceita, podia existir. Sua tia retrucaria, surpresa: que coisas? E se chegasse a entender, certamente diria: são assim, assim e assim. Com quem Joana falaria agora das coisas que existem com a naturalidade com que se fala das outras, das que estão apenas?

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        Coisas que existem, outras que apenas estão... Surpreendeu-se com o pensamento novo, inesperado, que viveria dagora em diante como flores sobre o túmulo. Que viveria, que viveria, outros pensamentos nasceriam e viveriam e ela própria estava mais viva. A alegria cortou-lhe o coração, feroz, iluminou-lhe o corpo. Apertou o copo entre os dedos, bebeu água com os olhos fechados como se fosse vinho, sangrento e glorioso vinho, o sangue de Deus. Sim, a nenhum deles explicaria que tudo mudava lentamente... Que ela guardara o sorriso como quem apaga finalmente a lâmpada e resolve deitar-se. Agora as criaturas não eram admitidas no seu interior, nele fundindo-se. As relações com as pessoas tornavam-se cada vez mais diferentes das relações que mantinha consigo mesma. A doçura da infância desaparecia nos seus últimos traços, alguma fonte estancava para o exterior e o que ela oferecia aos passos dos estranhos era areia incolor e seca. Mas ela caminhava para frente, sempre para a frente como se anda na praia, o vento alisando o rosto, levando para trás os cabelos.

        Como entregar-lhes: é a segunda vertigem num só dia? mesmo que ardesse por confiar o segredo a alguém. Porque ninguém mais na sua vida, ninguém mais talvez haveria de lhe dizer, como o professor: vive-se e morre-se. Todos esqueciam, todos só sabiam brincar. Olhou-os. Sua tia brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma filha casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma fazenda, com jogo de xadrez, com jornais. Joana procurou analisá-los, sentindo que assim os destruiria. Sim, gostavam-se de um modo longínquo e velho. De quando em quando, ocupados com seus brinquedos, lançavam-se olhares inquietos, como para se assegurarem de que continuavam a existir. Depois retomavam a morna distância que diminuía por ocasião de algum resfriado ou de um aniversário. Dormiam juntos certamente pensou Joana sem prazer na malícia.

        A tia estendeu-lhe o prato de pão em silêncio. O tio não levantava os olhos do prato.

        A comida era uma das grandes preocupações da casa, continuou Joana. À hora das refeições, os braços apoiados pesadamente sobre a mesa, o homem se alimentava arfando ligeiramente, porque sofria do coração, e enquanto mastigava, algum farelo esquecido fora da boca, seu olhar se fixava vidrado em qualquer ponto, a atenção voltada às sensações interiores que a comida lhe produzia. A tia cruzava os pés sob a cadeira, e, as sobrancelhas franzidas, comia com uma curiosidade que se renovava a cada garfada, o rosto rejuvenescido e móvel. Mas por que hoje não se abandonavam nas cadeiras? Por que cuidavam de não chocar os talheres, como se alguém estivesse morto ou dormindo? Sou eu, adivinhou Joana.

        Ao redor da mesa escura, sob a luz enfraquecida pelas franjas sujas do lustre, também o silêncio se sentara nessa noite. Joana em momentos parava para ouvir o ruído das duas bocas mastigando e o tic-tac leve e nervoso do relógio. Então a mulher erguia os olhos e imobilizada com o garfo na mão, esperava ansiosa e humilde. Joana desviava a vista, vitoriosa, abaixava a cabeça numa alegria profunda que inexplicavelmente vinha misturada a um aperto doloroso na garganta, a uma impossibilidade de soluçar.

        — Armanda não veio? — a voz de Joana apressou o tic-tac do relógio, fez nascer um súbito e rápido movimento na mesa.

        Os tios se entreolharam furtivamente. Joana respirou alto: tinha medo dela, pois?

        — O marido de Armanda hoje não está de plantão, por isso ela não veio jantar aqui, respondeu finalmente a tia. E de repente, satisfeita, pôs-se a comer. O tio mastigava mais depressa. O silêncio voltou sem dissolver o murmúrio longínquo do mar. Eles não tinham coragem, então.

        — Quando é que eu vou para o internato? — perguntou Joana.

        A terrina de sopa escorregou das mãos da tia, o caldo escuro e cínico espalhou-se rapidamente pela mesa. O tio abandonou os talheres sobre o prato, o rosto angustiado.

        — Como sabe que..., balbuciou confuso...

        Ela escutara à porta...

        A toalha embebida fumegava docemente como restos de um incêndio. Imóvel e fascinada como diante de algo irremediável, a mulher fitava a sopa derramada que esfriava rapidamente.

        [...]

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem, 15. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 73-76.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 494-495.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a principal preocupação de Joana no trecho?

      Joana está preocupada com a sua transição da infância para a adolescência e com a sua crescente dificuldade de se comunicar com os outros, especialmente com seus tios. Ela sente que ninguém a entende e que suas perguntas existenciais não encontram respostas.

02 – O que representa a figura do professor para Joana?

      O professor representa um momento de validação para Joana. Ele a encoraja a questionar e a buscar suas próprias respostas, mesmo que ele mesmo não as tenha. A resposta em si não é tão importante, mas sim a possibilidade de fazer a pergunta.

03 – Como Joana se sente em relação aos seus tios?

      Joana se sente distante e incompreendida por seus tios. Ela os vê como pessoas que se contentam com brinquedos superficiais (casa, casamento, trabalho) e que evitam confrontar as questões mais profundas da vida. Joana sente que eles não têm coragem de encarar a realidade da vida e da morte.

04 – Qual é o significado da sopa derramada na mesa?

      A sopa derramada simboliza a tensão e o desconforto na relação entre Joana e seus tios. É um momento de quebra da formalidade e de revelação de sentimentos reprimidos. A reação dos tios à sopa derramada mostra a fragilidade e a superficialidade de suas relações.

05 – Por que Joana tem medo de Armanda?

      O conto não explica explicitamente por que Joana tem medo de Armanda. No entanto, podemos inferir que Armanda representa um mundo adulto que Joana teme e do qual se sente excluída. A reação dos tios ao medo de Joana revela a fragilidade e a falta de comunicação na família.

06 – O que significa a pergunta de Joana sobre o internato?

      A pergunta de Joana sobre o internato revela sua intuição de que algo está para mudar em sua vida. Ela sente que está se distanciando de seus tios e que seu futuro pode estar em outro lugar. A reação dos tios à pergunta de Joana confirma suas suspeitas e intensifica a tensão na mesa.

07 – Qual é a importância do silêncio no conto?

      O silêncio é um elemento importante no conto, pois ele representa a falta de comunicação e a dificuldade de expressão dos sentimentos. O silêncio na mesa de jantar é opressor e revela a tensão entre os personagens. O tic-tac do relógio e o barulho da mastigação enfatizam o silêncio e criam uma atmosfera de desconforto.

 

POESIA: TERCEIRA ELEGIA - (FRAGMENTO) - CARPINEJAR - COM GABARITO

 Poesia: TERCEIRA ELEGIA – Fragmento

             Carpinejar

Estive sempre de pé no ônibus, espremido entre o ferro
da cadeira e o rumor dos passageiros.
Educado a ser o último, cedi o lugar a gestantes e idosos.
Estive sempre de pé no ônibus, me defendendo
ao largo do corrimão de tantos rumos,
alianças e ponteiros com paradas diferentes.
E o brado irritante do cobrador ainda a exigir
um passo à frente.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0JcZ9KPMCYXSWi41S72Ux6qKLOu1X4G3fhNJtDcoKYvEi-daLcn8RCfzw9cXWgSi8A_3E_B_oNrizkigDGEaV9ejt3VabdeC26120PAyt6OtjAK60adLkaldKKixg0hgchm0DCYdF1wIOnCEItq_ujbTiwTTG2jwUsjdepJJLSq15bVvwnNLCqJZV7O4/s320/ONIBUS.jpg



O fato de não ter sido é mais trabalhoso
do que a fama. Prossegui a me imaginar,
sondando o que poderia ter vivido.
Disperso, anônimo, no comício do mar
e nas trevas.

Diminuindo o risco, reduzimos a possibilidade
de nos libertar. O medo, o medo, o medo
é o que nos faz escolher.

Descobre-se um amor
na iminência de perdê-lo.

Fabrício Carpinejar. Terceira Elegia. In: Terceira Sede. Escrituras, São Paulo, 2001.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 496.

Entendendo a poesia:

01 – Qual é a principal imagem que o poema evoca?

      A principal imagem é a do indivíduo de pé no ônibus, espremido e em movimento constante. Essa imagem representa a jornada da vida, com seus desafios, rumos incertos e a necessidade de seguir em frente.

02 – O que significa a expressão "educado a ser o último"?

      Essa expressão reflete a ideia de priorizar os outros, de ceder espaço e oportunidades. O eu lírico foi ensinado a ser gentil e cortês, colocando as necessidades dos outros acima das suas.

03 – Qual é a reflexão central do poema?

      A reflexão central é sobre as escolhas e o medo. O poema explora a tensão entre a segurança de evitar riscos e a possibilidade de se libertar e viver plenamente. O medo é apontado como um fator determinante nas escolhas, muitas vezes limitando o potencial de transformação e liberdade.

04 – Como o poema aborda a questão do amor?

      O poema traz uma visão interessante sobre o amor, revelando que ele se torna mais evidente e valioso quando estamos prestes a perdê-lo. A iminência da perda aguça a percepção e o reconhecimento do amor.

05 – Qual é a linguagem utilizada no poema?

      A linguagem é direta e reflexiva, com versos livres e um tom introspectivo. Carpinejar utiliza metáforas e expressões poéticas para transmitir suas ideias de forma concisa e impactante.

 


 

 

CONTO: DOIS IRMÃOS - (FRAGMENTO) - MILTON HATOUM - COM GABARITO

 Conto: Dois irmãos – Fragmento

            Milton Hatoum

        [...]

        Quando Yaqub chegou ao Líbano, o pai foi buscá-lo no Rio de Janeiro. O cais Pharoux estava apinhado de parentes de pracinhas e oficiais que regressaram da Itália. Bandeiras brasileiras enfeitavam o balcão e a varanda dos apartamentos da Glória, rojões espocavam no céu, e para onde o pai olhava havia sinais de vitória. Ele avistou o filho no portaló do navio que acabara de chegar a Marselha. Não era mais o menino, mas o rapaz que passara cinco dos seus dezoito anos no sul do Líbano. O andar era o mesmo: passos rápidos e firmes que davam ao corpo um senso de equilíbrio e uma rigidez impensável no andar do outro filho, o Caçula.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEguuFBGR-cfIqK-4gtQT6tqp8c8fw7sLgtYTqputG1CaNf6NK8yakVu3zg58nkMGMOPTrqpCo7KWcaMkptRhAXiJoUppTusVCMqswDQQJvXywxFocpf0i-4-5hhyTo1npypRfqStFI6sZP5V3Yu48Dyo36gnq3SvqS1xyOUQ8kT11KwhPFlDyJ73VFe6m0/s320/LIBANO.png


        Yaqub havia esticado alguns palmos. E à medida que se aproximava do cais, o pai comparava o corpo do filho recém-chegado com a imagem que construíra durante os anos da separação. Ele carregava um farnel de lona cinza, surrado, e debaixo do boné verde os olhos graúdos arregalaram com os vivas e a choradeira dos militares da Força Expedicionária Brasileira.

        Halim acenou com as duas mãos, mas o filho demorou a reconhecer aquele homem vestido de branco, um pouco mais baixo do que ele. Por pouco não esquecera o rosto do pai, os olhos do pai e o pai por inteiro. Apreensivo, ele se aproximou do moço, os dois se entreolharam e ele, o filho, perguntou: "Baba?". E depois os quatro beijos no rosto, o abraço demorado, as saudações em árabe. Saíram do cais abraçados, atravessaram a praça Paris e a rua do Catete e foram até a Cinelândia. O filho falou da viagem e o pai lamentou a penúria em Manaus, a penúria e a fome durante os anos da guerra. Na Cinelândia sentaram-se à mesa de um bar, e no meio do burburinho Yaqub abriu o farnel e tirou um embrulho, e o pai viu pães embolorados e uma caixa de figos secos. Só isso trouxe o Líbano? Nenhuma carta? Nenhum presente? Não, não havia mais nada no farnel, nem roupa nem presente, nada! Então Yaqub explicou em árabe que o tio, o irmão do pai, não queria que ele voltasse para o Brasil.

        Calou. Halim baixou a cabeça, pensou em falar do outro filho, hesitou. Disse: "Tua mãe...", e também calou. Viu o rosto crispado de Yaqub, viu o filho levantar-se, aperreado, arriar a calça e mijar de frente para a parede do bar, em plena Cinelândia. Mijou durante uns minutos, o rosto agora aliviado, indiferente às gargalhadas dos que passavam por ali. Halim ainda gritou: "Não, tu não deves fazer isso... ", mas o filho não entendeu ou fingiu não entender o pedido do pai.

        Ele teve que engolir o vexame. Esse e outros, de Yaqub e também do outro filho, Omar, o Caçula, o gêmeo que nascera poucos minutos depois. O que mais preocupava Halim era a separação dos gêmeos, "porque nunca se sabe como vão reagir depois...". Ele nunca deixou de pensar no reencontro dos filhos, no convívio após uma longa separação. Desde o dia da partida, Zana não parou de repetir: "Meu filho vai voltar um matuto, um pastor, um ra'í. Vai esquecer o português e não vai pisar na escola porque não tem escola lá na aldeia da tua família".

        Aconteceu um ano antes da Segunda Guerra, quando os gêmeos completaram treze anos de idade. Halim queria mandar os dois para o sul do Líbano. Zana relutou, e conseguiu persuadir o marido a mandar apenas Yaqub. Durante anos, Omar foi tratado como filho único, o único menino.

        No centro do Rio, Halim comprou roupas e um par de sapatos para Yaqub. Na viagem de volta a Manaus, fez um longo sermão sobre educação doméstica: o que não se deve mijar na rua, nem comer como uma anta, nem cuspir no chão, e Yaqub, sim, Baba, a cabeça baixa, vomitando quando o bimotor chacoalhava, os olhos fundos no rosto pálido, a expressão de pânico toda vez que o avião decolava ou aterrissava nas seis escalas entre o Rio de Janeiro e Manaus.

        Zana os esperava no aeroporto desde o começo da tarde. Ela estacionou o Land Rover verde, foi até a varanda e ficou olhando para o leste. Quando viu o bimotor prateado aproximar-se da cabeceira da pista, desceu correndo, atravessou a sala de desembarque, subornou um funcionário, caminhou altivo até o avião, subiu a escada e irrompeu na cabine. Levava um buquê de helicôneas que deixou cair ao abraçar o filho ainda lívido de pavor, dizendo-lhe, "Meu querido, meus olhos, minha vida", chorando, "Por que tanta demora? O que fizeram contigo?", beijando-lhe o rosto, o pescoço, a cabeça, sob o olhar incrédulo de tripulantes e passageiros, até que Halim disse, "Chega! Agora vamos descer, o Yaqub não parou de provocar, só faltou pôr as tripas para fora". Mas ela não cessou os afagos, e saiu do avião abraçada ao filho, e assim desceu a escada e caminhou até a sala de desembarque, radiante, cheia de si, como se enfim tivesse reconquistado uma parte de sua própria vida: o gêmeo que se ausentara por capricho ou teimosia de Halim. E ela permitiu por alguma razão incompreensível, por alguma razão incompreensível, por alguma coisa que parecia insensatez ou paixão, devoção cega e irrefreável, ou tudo isso junto, e que ela não quis ou nunca soube nomear.

        Agora ele estava de volta: um rapaz tão vistoso e alto quanto o outro filho, o Caçula. Tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmos olhos castanhos e graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, a mesmíssima altura. Yaqub dava um suspiro depois do riso, igualzinho ao outro. A distância não dissipara certos tiques e atitudes comuns, mas a separação fizera Yaqub esquecer certas palavras da língua portuguesa. Ele falava pouco, pronunciando monossílabos ou frases curtas; calava quando podia, e, às vezes, quando não devia.

        Zana logo percebeu. Via o filho sorrir, suspirar e evitar as palavras, como se um silêncio paralisante o envolvesse.

        No caminho do aeroporto para casa, Yaqub reconheceu um pedaço da infância vivida em Manaus, se emocionou com a visão dos barcos coloridos, atracados às margens dos igarapés por onde ele, o irmão e o pai tinham navegado numa canoa coberta de palha. Yaqub olhou para o pai e apenas balbuciou sons embaralhados.

        "O que aconteceu?", perguntou Zana. "Arrancaram a tua língua?"

        "La, não, mama", disse ele, sem tirar os olhos da paisagem da infância, de alguma coisa interrompida antes do tempo, bruscamente.

        [...]

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 13-17.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 502-503.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o tema central do conto?

      A relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, e os impactos da separação e do reencontro em suas vidas e na dinâmica familiar.

02 – Por que Yaqub foi para o Líbano?

      Yaqub foi enviado para o Líbano por seu pai, Halim, para morar com seus parentes. A mãe, Zana, inicialmente não queria mandar os dois filhos, mas Halim insistiu em enviar apenas Yaqub.

03 – O que aconteceu com Yaqub no Líbano?

      Yaqub passou cinco anos no sul do Líbano, onde cresceu e se adaptou à cultura local. Ele retornou ao Brasil transformado, tanto física quanto culturalmente.

04 – Como foi o reencontro de Yaqub com seu pai?

      O reencontro foi emocionante, mas também tenso. Yaqub mal reconheceu o pai e demonstrou comportamentos inesperados, como urinar em público, evidenciando o choque cultural que sofreu.

05 – Qual era a maior preocupação de Halim?

      A maior preocupação de Halim era a reação dos gêmeos ao se reencontrarem após a longa separação, temendo os impactos que isso poderia causar em suas vidas.

06 – Como Zana reagiu ao retorno de Yaqub?

      Zana reagiu com grande emoção e felicidade, demonstrando um amor e preocupação intensos pelo filho. Ela o abraçou e beijou efusivamente, mostrando que sentia muito a falta dele.

07 – Quais eram as semelhanças entre Yaqub e Omar?

      Yaqub e Omar eram muito parecidos fisicamente, com o mesmo rosto, olhos, cabelo e altura. Eles também compartilhavam tiques e atitudes em comum.

08 – O que Yaqub trouxe do Líbano?

      Yaqub trouxe apenas um farnel com pães embolorados e figos secos, além de muitas lembranças e experiências de sua vida no Líbano. Ele não trouxe presentes ou cartas.

09 – Por que Yaqub não falava muito?

      Yaqub evitava falar português por ter se distanciado da língua durante sua estadia no Líbano. Ele parecia ter dificuldades em se expressar e se comunicar em português.

10 – Qual é a importância da infância de Yaqub em Manaus para a história?

      A infância de Yaqub em Manaus é importante para mostrar a ligação dele com a cidade e como a separação e o tempo no Líbano o afetaram profundamente. Ele reconhece lugares da infância, mas tem dificuldade de se expressar, mostrando o impacto da mudança em sua vida.