Crônica: OS HOMENZINHOS DE GRORK
A ficção científica parte de alguns
pressupostos, ou preconceitos, que nunca foram devidamente discutidos. Por
exemplo: sempre que uma nave espacial chega à Terra vinda de outro planeta, é
um planeta mais adiantado do que o nosso. Os extraterrenos nos intimidam com
suas armas fantásticas ou com sua sabedoria exemplar. Pior do que o raio da
morte é o seu ar de superioridade moral.
A civilização deles é invariavelmente
mais organizada e virtuosa do que a da Terra e eles não perdem a oportunidade
de nos lembrar disto. Cansado de tanta humilhação, imaginei uma história de
ficção diferente. Para começar, o Objeto Voador Não Identificado que chega à
Terra, descendo numa planície do Meio-Oeste dos Estados Unidos, chama a atenção
por um estranho detalhe: a chaminé.
― Vi com estes olhos, xerife. Ele veio
numa trajetória irregular, deu alguns pinotes, tentou subir e depois caiu como
uma pedra.
― Deixando um facho de luz atrás?
― Não, um facho de fumaça. Da chaminé.
― Chaminé? Impossível. Vai ver o
alambique do velho Sam explodiu outra vez e sua cabana voou.
― Não. Tinha o formato de um disco
voador. Mas com uma chaminé em cima.
O xerife chama as autoridades
estaduais, que cercam o aparelho. Ninguém ousa se aproximar até que cheguem as
tropas federais. Um dos policiais comenta para outro:
― Você notou? A vegetação em volta...
― Dizimada. Provavelmente um campo
magnético destrutivo que cerca o disco e...
― Não. Parece cortada a machadinha. Se
não fosse um absurdo eu até diria que eles estão colhendo lenha.
Nesse instante, um segmento de um dos
painéis do disco, que é todo feito de madeira compensada, é chutado para fora e
aparecem três homenzinhos com machadinhas sobre os ombros. Os três saem à
procura de mais árvores para cortar. Estão examinando as pernas de um dos
policiais, quando este resolve se identificar e aponta um revólver para os
homenzinhos.
―
Não se mexam ou eu atiro.
Os homenzinhos recuam, apavorados, e
perguntam:
― Atira o quê?
― Atiro com este revólver.
O policial dá um tiro para o chão como
demonstração. Os homenzinhos, depois de refeitos do susto, aproximam-se e
passam a examinar a arma do policial, maravilhados. Os outros policiais saem de
seus esconderijos e cercam os homenzinhos rapidamente. Mas não há perigo. Eles
querem conversa. Para facilitar o desenvolvimento da história, todos falam
inglês.
― Vocês não conhecem armas, certo? ―
quer saber um Policial. ― Estão num estágio avançado de civilização em que as
armas são desnecessárias. Ninguém mais mata ninguém.
― Você está brincando? ― responde um
dos homenzinhos. ― Usamos machadinhas, tacapes, estilingue, catapulta, flecha,
qualquer coisa para matar. Uma arma como essa seria um progresso incrível no
nosso planeta. Precisamos copiá-la!
Chegam as tropas federais e diversos
cientistas para examinarem os extraterrenos e seu artefato voador. Começam as
perguntas. De que planeta eles são? De Grork. Como é que se escreve? Um dos
homenzinhos risca no chão: GRRK.
― Deve faltar uma letra ― observa um
dos cientistas. ― O "O".
― O "O"?
― Assim ― diz o cientista da Terra,
fazendo uma roda no chão.
O homenzinho examina o "O".
As possibilidades da forma são evidentes. A roda! Por que não tinham pensado
nisso antes? Voltarão para o Grork com três ideias revolucionárias: o revólver,
a roda e a vogal. Querem saber onde estão, exatamente. Nunca ouviram falar na
Terra. Sempre pensaram que seu planeta fosse o centro do universo e aqueles
pontinhos no céu, furos no manto celeste. Sua viagem era uma expedição
científica para provar que o planeta Grork não era chato como muitos pensavam e
que ninguém cairia no abismo se passasse do horizonte. Sua intenção era navegar
até o horizonte.
E como tinham vindo parar na Terra?
Pois é. Alguma coisa deu errado.
Tinham descido na Terra, porque faltara
lenha para a caldeira que acionava as pás que moviam o barco. Então aquilo era
um barco? Bom, a ideia fora a de fazer um barco. Só que em vez de flutuar, ele
subira. Um fracasso. Os homenzinhos convidam os cientistas a visitarem a nave.
Entram pelo mesmo buraco de madeira da nave, que depois é tapado com uma
prancha e a prancha pregada na parede. Outra boa ideia que levarão da Terra é a
da dobradiça de porta.
O interior da nave é todo decorado com
cortinas de veludo vermelho. Há vasos com grandes palmas, lustres, divãs
forrados com cetim. Um dos homenzinhos explica que também tinham um piano de
cauda, mas que o queimaram na caldeira quando faltou lenha. Tudo do mais
moderno.
― E que mensagem vocês trazem para o
povo da Terra? ― pergunta um dos cientistas.
Os homenzinhos se entreolham. Não
vieram preparados. Mas como a Terra os recebeu tão bem, resolvem revelar o
segredo mais valioso da sua civilização. A fórmula de transformar qualquer
metal em ouro.
― Vocês conseguiram isso? ― espanta-se
um cientista.
― Ainda não ― responde um homenzinho ―
mas é só uma questão de tempo. Nossos cientistas trabalham sem cessar na
fórmula, queimando velas toda a noite.
― Velas? Lá não há eletricidade?
― Elequê?
― Eletricidade. Energia elétrica. As
coisas lá são movidas a quê?
― A vapor. É tudo com caldeira.
― Mas isso não é incômodo?
― Às vezes. O barbeador portátil, por
exemplo. Precisa de dois para segurar. Mas o resto...
Luís Fernando Veríssimo.
Ed Mort e outras histórias. Porto Alegre, L&PM. 1984.
Fonte: Língua
Portuguesa. Entre palavras – Edição renovada. Mauro Ferreira. 5ª série. Ed. FTD
– São Paulo – 1ª edição – 2002. P. 166-170.
Entendendo a crônica:
01 – O autor resolveu
escrever uma história de ficção diferente. Por que ele tomou essa decisão?
Porque ele se
cansou de ser humilhado pela superioridade dos extraterrenos das histórias
tradicionais de ficção.
02 – Indique algumas
diferenças entre a história criada pelo autor e as histórias tradicionais de
ficção científica.
Ele inverte os
papeis: os humanos, que nas histórias comuns são mais atrasados, sentem-se e
agem como superiores; os visitantes, normalmente mais inteligentes e avançados,
são atrasados e primitivos: usam machadinha, não conhecem a roda, viajam de
“barco a vapor”, etc.
03 – Identifique a primeira
situação do texto que permite ao leitor concluir que a história terá um caráter
humorístico.
A primeira
situação de humor do texto é a discrição da espaçonave: tem chaminés, faz uma
trajetória irregular e dá pinotes.
04 – Como o narrador
caracteriza os visitantes quanto aos aspectos físico e cultural? Com que
intenção ele os imagina assim?
Ele diz que os
visitantes são baixinhos, meio ingênuos e culturalmente muito atrasado. O
narrador os imagina assim porque a intenção dele é justamente desvalorizar os
visitantes.
05 – Um dos policiais,
quando começou a conversar som os homenzinhos, fez uma suposição. Ela estava
correta? Justifique.
Não. O policial
supôs que os homenzinhos fizessem parte de uma civilização adiantada, que não
usava mais armas, mas isso é negado por um dos ETs. O extraterrestre afirma
que, para matar, eles usavam armas primitivas (tacape, flecha, etc.).
06 – Os homenzinhos se
mostraram entusiasmados com três “ideias” que julgaram “revolucionárias”.
a)
O que é uma ideia ou uma invenção
revolucionária?
É algo absolutamente novo, que surpreende pela originalidade, pela
inventividade e que muda totalmente determinados conceitos.
b)
Que ideias os homenzinhos julgaram
revolucionárias?
O revólver, a roda e a letra “o”.
c)
O fato de os extraterrestres não conhecerem
as três invenções citadas no texto sugere ao leitor que caraterística de sua
civilização?
Ela é muito atrasada, se comparada com a nossa, que já usa essas
invenções há muito tempo.
07 – Existe um recurso de
linguagem que permite afirmar alguma coisa de modo que o leitor (ou ouvinte)
entenda de forma diferente, geralmente de forma contrária. Esse recurso
chama-se ironia. No texto,
várias vezes o autor emprega a ironia. Veja, por exemplo, o trecho destacado:
“Os
homenzinhos se entreolham. Não vieram preparados. Mas como a Terra os
recebeu tão bem, resolvem revelar o segredo mais valioso da sua
civilização.” Releia o texto do 8° parágrafo até o 18° parágrafo e explique
por que o trecho destacado acima é irônico.
Porque os
homenzinhos não foram bem recebidos;
ao contrário: a recepção foi agressiva e hostil.
08 – A alquimia, ciência
primitiva que surgiu há mais de dois mil anos, acreditava ser possível
transformar qualquer metal em ouro. Baseando-se nessa informação, responda: o
que o narrador insinua, isto é, diz de forma indireta, a respeito dos
cientistas de Grork?
Ele insinua que os cientistas de Grork
são tão atrasados e ultrapassados quanto os alquimistas, porque eles – os
cientistas de Grork – ainda acreditam ser possível transformar qualquer metal
em ouro.
09 – Releia a questão 4 e depois responda: você julga que o
narrador conseguiu o que ele pretendia inicialmente? Justifique.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Sim. Os fatos e situações dessa “história de ficção” criam
uma imagem caricaturesca, ridícula dos homenzinhos, no aspecto físico e,
principalmente, no aspecto intelectual e científico.