ROMANCE: A Esperança (Fragmento)
André Malraux
O silêncio, já profundo, aprofundou-se
ainda mais: Guernico teve a impressão de que, daquela vez, o céu estava cheio.
Não era aquele barulho de carro de corrida que, em geral, identifica um avião;
era uma vibração muito ampla, cada vez mais profunda, sustentada como uma nota
grave.
O barulho dos aviões que ele tinha ouvido até então era como que
alternado, subia e descia; dessa vez, os motores eram numerosos o suficiente
para que tudo se misturasse, em um avanço implacável e mecânico.
A cidade estava quase sem luzes; como
os aviões de caça governistas, ou o que restava deles, poderiam encontrar os
fascistas naquela escuridão? E aquela vibração profunda e grave que enchia o
céu e a cidade como se enchesse a noite, irritando Guernico e percorrendo seus cabelos,
tornava-se intolerável, pois as bombas não caíam.
Por fim, uma explosão abafada veio da
terra, como uma mina distante e, de repente, três explosões de extrema
violência. Outra explosão surda; mas nada. Mais uma: acima de Guernico e todas
ao mesmo tempo, as janelas de um grande apartamento se abriram.
Ele não acendeu sua lanterna elétrica;
os milicianos estavam sempre prontos a acreditar em sinais luminosos. Sempre o
barulho dos motores, mas nada de bombas. Naquela escuridão completa, a cidade
não via os fascistas, e os fascistas mal viam a cidade.
Guernico tentou correr. As pedras
acumuladas o faziam tropeçar sem parar, e a escuridão muito densa tornava
impossível seguir a calçada. Um carro passou em velocidade, os faróis azulados.
Cinco novas explosões, alguns tiros de fuzil, uma vaga rajada de metralhadora.
As explosões pareciam vir da terra, e os estrondos, de uma dezena de metros
acima dela. Nenhum raio de luz: Janelas se abriam, Empurradas de dentro. Numa
explosão mais próxima, vidros se espatifaram, caíram de muito alto no asfalto.
Com o barulho, Guernico se
deu conta de que só enxergava até o primeiro andar. Como um eco do vidro
quebrado, um som de sirene tornou-se perceptível, aproximou-se, passou diante
dele, perdeu-se no negror: a primeira de suas ambulâncias. Chegou finalmente à
Central Sanitária; a rua se encheu de gente na escuridão.
Médicos, enfermeiros, organizadores,
cirurgiões se juntavam, ao mesmo tempo que ele, a seus colegas de serviço.
Finalmente havia ambulâncias. Um médico era o responsável pela parte sanitária
do trabalho, Guernico, pela organização do socorro. [...]
Malraux, André.
Sangue de esquerda. A esperança.
Tradução de Eliana
Aguiar.
Rio
de Janeiro: Record, 2000. p. 317-318.
Interpretação do texto:
1 – Leia um fragmento do
romance A Esperança, de André Malraux, que tem como pano de fundo a Guerra
Civil Espanhola de 1936.
a)
Qual é o acontecimento central da cena?
O acontecimento central é o bombardeio que está prestes a ocorrer em
uma cidade.
b)
No início, parece que Guernico está fugindo
dos aviões, mas a sua intensão é outra. Para onde ele corre e por quê?
Guernico corre para a Central Sanitária, onde é o responsável pela
organização do socorro aos feridos. Ele corre, portanto, para socorrer aqueles
que serão atingidos pelas explosões.
2 – Quais são as referências
feitas no texto que podem ajudar o leitor a identificar que o episódio narrado
ocorreu no século XX?
Os aviões, os
carros, as armas (bombas, metralhadora, fuzil), a lanterna elétrica, as
ambulâncias são indicadores de que a ação se passa no século XX. Além disso, a
alusão aos “fascistas” faz referência ao regime político (e à ideologia a ele
associada) estabelecido por Benito Mussolini, na Itália, em 1922.
3 – Releia:
“[...] dessa vez, os motores eram
numerosos o suficiente para que tudo se misturasse, em um avanço implacável e
mecânico.”
Os dois adjetivos destacados
levam o leitor a refletir sobre a violência da guerra? Por quê?
SIM. O adjetivo implacável sugere
que o avanço dos aviões não pode ser evitado. Como esse avanço será sinônimo de
destruição, o adjetivo pode também ser ampliado para indicar que o bombardeio e
a destruição não têm como ser evitados. O segundo adjetivo, mecânico,
destaca o aspecto desumano da ação.
4 – A descrição do ataque
noturno explora diferentes elementos sensoriais.
a)
Destaque alguns desses elementos.
A audição: o barulho dos
aviões e das explosões.
A visão: a escuridão da
noite.
O tato: a vibração
provocada pelos aviões.
b)
De que modo o uso desses elementos contribui
para transmitir ao leitor as sensações que tomam conta de Guernico?
A referência constante ao barulho dos aviões e à escuridão da noite
faz com que o leitor perceba melhor os diferentes estados de espirito de
Guernico: a expectativa pelo início do ataque, a irritação pela demora, a
urgência para chegar ao local de socorro.