Entrevista: Língua enrolada
O
professor de português mais conhecido do país fala sobre os maus-tratos
cotidianos infligidos ao nosso idioma.
Mario Sabino.
"O sujeito que usa um termo em
inglês no lugar do equivalente em português é um idiota"
A agenda do paulista Pasquale Cipro
Neto, de 42 anos, anda carregadíssima. Ele ministra cursos, mantém programas no
rádio e na televisão, presta consultoria a jornais e está finalizando um livro.
Em meio a tantas atividades, ainda encontrou tempo para estrelar um comercial
de uma rede de lanchonetes. Poder-se-ia até pensar que se trata de um mago da
autoajuda ou de um administrador com técnicas mirabolantes de reengenharia.
Pasquale, no entanto, é professor de português um idioma que, de tão maltratado
no dia-a-dia dos brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhões
que o têm como língua materna. Num intervalo de seus afazeres, ele deu a
seguinte entrevista a VEJA.
Veja
– Por que o português é tão mal falado e tão mal escrito no Brasil?
Pasquale
– Há duas causas visíveis. Com o depauperamento geral da educação, o ensino da
língua portuguesa acabou confiado a professores despreparados para a tarefa. Os
brasileiros também leem pouco, o que resulta numa tremenda limitação de
vocabulário. Existe, ainda, um motivo invisível para o estado trágico em que se
encontra o português no Brasil: a má intenção. Uma grande parcela da população
é mantida na ignorância, com o propósito de distanciá-la da sintaxe dominante.
E é na sintaxe dominante que são redigidos os contratos e as leis, um exemplo
cabal de que língua é poder. Sem ter acesso a ela, o povo é facilmente
manobrado.
Veja
– Como o senhor vê o uso de tantas palavras inglesas no cotidiano dos
brasileiros?
Pasquale
– Essa invasão é a face mais irritante de um país colonizado culturalmente como
o nosso. Outro dia, presenciei uma cena surrealista no banheiro de um centro de
compras, vulgo shopping center. Ao lavar as mãos, um sujeito quebrou a
saboneteira porque traduziu "push", "empurrar" em inglês,
por "puxar". Não há motivo para uma saboneteira no Brasil ter
inscrições em outra língua. Sempre me pergunto por que as pizzarias que
entregam por encomenda têm de ser "delivery". Sem falar no
"disk", que é uma bobagem de origem indecifrável. O sujeito que usa
um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um
idiota. Evidentemente, não há mal nenhum em utilizar palavras estrangeiras que
não têm correlato na nossa língua. Tenho muita simpatia, por 53 exemplo, pela
palavra "dumping", que significa vender abaixo do preço de custo. É
sintética e forte não existe em português uma palavra para substituí-la adequadamente.
Veja
– Em que lugar do Brasil se fala o melhor português?
Pasquale
– Certa vez fui ao Maranhão porque me disseram que lá se falava um português
menos contaminado. Pura lenda. Acho que, no cômputo geral, o carioca é o que se
expressa melhor sob a ótica da norma culta. Ele não come o "s" quando
usa o plural, utiliza os pronomes com mais propriedade, não erra tanto nas
concordâncias e tem uma linguagem mais criativa.
Veja
– E onde se fala o pior?
Pasquale
– A São Paulo que fala "dois pastel" e "acabou as ficha" é
um horror. Não acredito que o fato de ser uma cidade com grande número de
imigrantes seja uma explicação suficiente para esse português esquisito dos
paulistanos. Na verdade, é inexplicável.
Veja
– O que o senhor acha da sintaxe do presidente Fernando Henrique Cardoso?
Pasquale
– O presidente segue aquilo que se chama norma urbana culta. É claro que, sob a
luz da gramática normativa, há problemas em seus discursos, em especial
naqueles feitos de improviso. Mas dá para entender as dificuldades de Fernando
Henrique: se falar difícil, podem chamá-lo de pedante. Se falar muito fácil,
haverá quem diga que se trata de um demagogo. De qualquer forma, ele tropeça
muito menos no português do que o Fernando anterior.
Veja
– O ex-presidente Fernando Collor errava muito?
Pasquale
– E como! O curioso é que muitas pessoas que votaram nele justificaram sua
escolha dizendo que o Lula era analfabeto. Ora, o Fernandinho detonava a
língua. Ele costumava mandar bilhetinhos para seus assessores com erros de
concordância. Certa vez escreveu "Causa-me espanto as repercussões",
com o verbo no singular e o sujeito no plural. Fernandinho também dizia
barbaridades do tipo "a polícia interviu" e tal coisa "não se
adéqua". Ninguém falava nada. Em compensação, o mundo caiu em cima do
ex-ministro Rogério Magri quando ele soltou o "imexível". Sabe por
quê? Porque língua no Brasil é um incrível elemento de discriminação social. Os
mesmos que apedrejam o Lula porque ele fala "penso de que" bancam os
surdos ao ouvir um empresário cometer uma bobagem idêntica. Não há diferença
entre a linguagem média do empresário brasileiro e a de um sindicalista.
Estamos todos nivelados por baixo.
Veja
– De onde vem o famigerado "a nível de"?
Pasquale
– O "a nível de" é uma daquelas bizarrices que surgem da cabeça do
cidadão que, na falta de conteúdo, tenta sofisticar seu discurso lascando no
meio umas expressões de efeito. No caso específico do "a nível de", virou
praga mundial. O pior é que em 99% das vezes não faz o menor sentido. Já ouvi
gente dizendo que "o jogador sofreu uma contusão a nível de joelho",
o que é ridículo. Assim como essa, existem outras expressões idiotas. Hoje, por
exemplo, ninguém faz nada "para", mas "no sentido de". Usar
a língua direito não é inventar rococós, é ser claro, direto.
Veja
– Por que os brasileiros se confundem tanto na hora de usar crase?
Pasquale
– O caso da crase espelha bem a desgraça do ensino de português no Brasil.
Crase é uma coisa maravilhosa. É um fenômeno da língua portuguesa que pode ser
explicado de uma forma muito simples: antes de mais nada, é preciso dizer para
o aluno que a palavra "crase" vem do grego e significa "fusão",
"mistura". Depois, o professor deve mostrar que uma crase normalmente
é formada pela fusão da preposição "a" exigida pela palavra anterior
com o artigo feminino "a" da palavra posterior. O aluno precisa
entender ainda que, quando coloca o maldito acento chamado "grave", e
não "acento crase", está indicando a ocorrência do fenômeno. É
necessário mastigar todo o processo, o que poucos colegas fazem.
Veja
– O que o senhor acha do Dicionário Aurélio, o mais popular do Brasil?
Pasquale
– Um bom dicionário tem de ter critérios bem definidos, não pode oscilar entre
o rigor absoluto com a língua e a condescendência. Desse ponto de vista, o
Aurélio é inconsistente. Do verbo "conscientizar", para citar um
exemplo, ele só registra a forma transitiva direta. No Aurélio, as pessoas
"conscientizam o problema" e não "se conscientizam do
problema", que é como todo mundo fala. Já "parabenizar", que não
é português, transformou-se em um verbete. Há também erros de grafia, o que é
imperdoável. No verbete "trólebus", a palavra está sem acento. Além
disso, ele não tinha direito de escrever "fôrma", com o acento
diferencial no "o". Esse acento diferencial de timbre caiu na reforma
ortográfica de 1971. Como o Aurélio era contra a eliminação do diferencial,
registrou a palavra do jeito dele.
Veja
– Como o senhor avalia o português falado na televisão?
Pasquale
– Não assisto a novelas e, por isso, não posso avaliar o que se passa nelas.
Quanto aos apresentadores de telejornais, os que vêm do meio impresso parecem
dominar melhor o português. No esporte, porém, é uma tragédia. Os locutores
vivem inventando umas expressões bobas, como "correr atrás do
prejuízo", usada para o time que precisa virar uma partida. Quem é o
maluco que "corre atrás do prejuízo"? As pessoas correm atrás é do
lucro. Outra 54 cretinice é o "handicap", "desvantagem" em
inglês, que virou seu antônimo nas transmissões esportivas – a equipe que joga
em casa no Brasil passou a ter um "handicap".
Veja
– Qual foi o pior erro que o senhor já cometeu?
Pasquale
– Morro de vergonha de ter esquecido em certa ocasião, enquanto estava
corrigindo uma prova do vestibular do ITA, a forma irregular do pretérito
perfeito do verbo "prazer": "aprouve". Cometi um deslize
também na gravação de um dos comerciais que fiz recentemente. Em determinado
momento, cansado de gravar e regravar, soltei: "Portanto, você deve dizer
para mim comer". O pessoal caiu na risada. Antes que eu me esqueça: o
correto é "para eu comer".
Veja
– É mais confortável vender hambúrgueres do que hamburgers?
Pasquale
– Quando aceitei fazer os comerciais, impus a condição de não mencionar o
produto. Não vendi hambúrgueres nem hamburgers. Divulguei a língua portuguesa.
CIPRO NETO,
Pasquale. Língua enrolada. Veja, Abril, São Paulo, ed. 1512, ano 30, n. 36, p.
9-122, 10 set. 1997. Entrevista concedida a Mario Sabino.
Entendendo a entrevista:
01 – Você deve ter percebido
que o texto que leu é uma entrevista. Uma entrevista publicada em jornais e
revistas, em geral, é organizada a partir de um formato fixo: o par pergunta –
resposta, mesmo que a entrevista realizada oralmente não tenha sido tão
ordenada assim. Quem é o entrevistado? Quem é o entrevistador?
O entrevistado é
Pasquale Cipro Neto e o entrevistador é Mario Sabino, da revista Veja.
02 – O objetivo de uma
entrevista é, em tese, obter informações sobre um tema, um fato em especial, ou
mesmo sobre a pessoa entrevistada. Qual foi o objetivo dessa entrevista?
Obter informações sobre um tema: a língua
portuguesa no Brasil.
03 – A maioria das
entrevistas inclui uma pequena biografia da figura entrevistada. Esse mecanismo
de apresentação justifica a entrevista. Por que se considera que o entrevistado
tem algo a dizer sobre o tema, objetivo da entrevista?
Porque é um professor de português que adquiriu notoriedade
ao aparecer em programas e comerciais de TV. Em tese, é um especialista no
assunto.
04 – Na apresentação, também
é possível encontrar o ponto de vista do entrevistador sobre o entrevistado.
Pasquale é descrito de forma positiva ou negativa?
É descrito de
forma positiva: comenta-se que é um profissional muitíssimo requisitado e que
exerce várias atividades relacionadas à profissão de professor de língua
portuguesa.
05 – Observe que a primeira
pergunta do entrevistado já parte de um pressuposto, ou seja, de uma ideia
preconcebida sobre língua e usuários da língua. Que ideia é essa?
A de que o
português é “mal falado e mal escrito” no Brasil.
06 – O entrevistado endossa
essa ideia ou a rejeita? Explique.
Endossa. Ele
responde à questão, explicando as causas desse “problema”: o depauperamento
geral da educação que acaba confiando o ensino de língua para professores
despreparados, e o fato de os brasileiros lerem muito pouco.
07 – Observe que a terceira
e a quarta perguntas também partem de pressupostos sobre a língua. Quais são?
A de que existem
lugares que falam “melhor” ou “pior” a língua portuguesa. Isso significa também
que é possível supor que as pessoas de determinado estado ou região falam
“igual” – não se consideram, portanto, diferenças de escolaridade (que existem
em todos os estados brasileiros). Pode-se supor também que a língua portuguesa
é uma só e deve ser falada da mesma forma em qualquer situação.
08 – Explique quais são as
opiniões do entrevistado sobre os seguintes assuntos:
·
Uso de palavras estrangeiras no cotidiano: Considerado uma “invasão”, típica de países colonizados
culturalmente. Aceita, caso não exista outra palavra em português para
substituir o estrangeirismo adequadamente.
·
Uso da crase: Espelha
a desgraça do ensino de português no Brasil.
·
Dicionário Aurélio: É
inconsistente.
·
Português falado na TV: Os apresentadores de telejornais dominam a língua, mas os
locutores esportivos incorrem em erros “trágicos”.
09 – O entrevistado cita um
“erro” que cometeu quando corrigia provas de vestibular: o esquecimento do
pretérito perfeito do verbo prazer, aprouve. Você já leu ou ouviu essa forma
verbal? Ela é comum ou rara?
Resposta pessoal do aluno. A forma verbal
“aprouve” não é usual.