sexta-feira, 10 de outubro de 2025

CONTO: PASSEIO ORTOGRÁFICO - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Passeio ortográfico – Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato

        No bairro da ORTOGRAFIA os meninos encontraram uma dama de origem grega, que tomava conta de tudo.

        — Bom dia, minha senhora! — disse Quindim fazendo uma saudação de cabeça muito desajeitada. — Trago aqui sobre o meu lombo dois meninos e uma boneca, que desejam conhecer a vida deste bairro.

 

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        — Às ordens! — exclamou a grega. — Desçam e venham ver como lido com as letras, na formação escrita das palavras.

        Os meninos desceram pela escadinha de corda e rodearam-na. Emília, lambetissimamente, tomou-lhe a bênção.

        — Deus te abençoe, bonequinha — disse a Ortografia sorrindo.

        Por onde começar? Narizinho teve a ideia de inquirir por que motivo ela se chamava Ortografia.

        — Meu nome é grego e formado de duas palavras gregas

        — Orthos e Graphia. Orthos quer dizer "correta" e Graphia quer dizer "escrita". Sou, portanto, a Escrita Correta, ou a que ensina a escrever corretamente.

        — Pois a senhora precisa trabalhar muito — disse Emília —, porque a maior parte das gentes ainda não sabe escrever na regra. Eu mesma, que sou marquesa, erro às vezes...

        — Marquesa?  — repetiu a Ortografia, admirada. 

        — Marquesa de quê?                                                                                 

        — Marquesa de Rabicó, para a servir, minha senhora! — respondeu Emília, de mãos na cintura e queixo erguido.

        Narizinho confirmou o título da boneca e narrou várias     passagens da sua vidinha, inclusive o casamento e o divórcio com o Marquês de Rabicó. A Ortografia espantou-se grandemente de tais prodígios. Em seguida falou da sua vida ali. — Antigamente o sistema de escrever as palavras era o SISTEMA ETIMOLÓGICO, o qual mandava escrevê-las de acordo com a origem. Isso trazia muitas complicações e dificuldades. 

        Por esse sistema, a palavra Cisma, por exemplo, escrevia-se Scisma, com uma letra inútil, mas justificada pela origem. A palavra Tísica escrevia-se Phthisica, com três letras inúteis, sempre por causa da origem. Ditongo escrevia-se Diphthongo. De modo que havia uma enorme trabalheira entre os homens para decorar a forma das palavras — e trabalheira inútil, porque ninguém ganhava coisa nenhuma com isso...

        — Só os tipógrafos — lembrou Narizinho. — Esses engordavam.

        — Sim, só os tipógrafos — confirmou a Ortografia. — Todos os mais perdiam tempo e fósforo cerebral. Em consequência disso ergueu-se um movimento para mudar — para acabar com a ORTOGRAFIA ETIMOLÓGICA e pôr em lugar dela outra mais fonética, isto é, que só conservasse nas palavras as letras que se pronunciam. Esse movimento venceu, afinal, e acabou sendo sancionado por um decreto do governo, depois de muito estudado pela Academia Brasileira de Letras.

        — Quer dizer que agora ninguém mais erra? — disse Pedrinho.

        — Está muito enganado, meu filho. Há regras que têm de ser seguidas, e os que se afastarem dessas regras erram. Mas tudo se torna muito mais simples e lógico. Eu gostei da mudança, confesso — mas a minha amiga, a velha Ortografia Etimológica, está furiosíssima. Não se conforma com a simplificação das palavras.

        A dama grega levou os meninos para sua casa, onde havia uma bela coleção de letras e sinais gráficos.

        — As letras vocês já conhecem — disse ela. — São as do Alfabeto. Deste lado tenho as MAIÚSCULAS; e daquele lado, as MINÚSCULAS. Aqui nesta gaveta guardo os ACENTOS e outros sinais.

        — Quando é que a senhora emprega as Maiúsculas? — indagou Pedrinho.

        — Ponho em Maiúsculo todas as primeiras letras das palavras que abrem os Períodos, e também escrevo em Maiúsculo a primeira letra de todos os Nomes Próprios.

        — Só? — perguntou Narizinho.

        — Não. Uso Maiúsculas também nos títulos, como Vossa Senhoria, Senhor Doutor, etc. E nos Epítetos, ou Alcunhas dos homens célebres, como Napoleão, o Grande; Guilherme, o Taciturno; o Tiradentes, etc.

        Uso-as nas palavras que designam divindade, como: o Eterno, o Todo-Poderoso.

        Uso-as em certos Nomes Abstratos, quando aparecem sob forma de pessoas, como nesta frase: O monstro vinha escoltado pela Ira, pela Traição e pelo Ciúme.

        Uso-as para os pontos cardeais, quando designam regiões, como nestas frases: Os povos do Oriente; Os mares do Sul. Mas digo sem Maiúscula: O oriente da China, porque aqui oriente significa apenas uma direção geográfica. Pela mesma razão também digo: O norte do Brasil.

        — E os tais Acentos? — perguntou o menino.

        — Acentos, lido com dois — o AGUDO (´) e o CIRCUNFLEXO (^). E ainda lido com outros sinaizinhos aparentados com os Acentos, como o TIL (~), o APÓSTROFO ('), a CEDILHA (,), que é uma caudinha no C, e o HÍFEN, OU o TRAÇO DE UNIÃO (-).

        Introduziram-se na língua outros Acentos, como o acento grave (‘), muito usado pelos franceses, e ainda o TREMA (••). Sou contra isso: quanto menos Acentos houver numa língua, melhor. A língua inglesa, que é a mais rica de todas, não se utiliza de nenhum Acento. Os ingleses são homens práticos. Não perdem tempo em enfeitar as palavras com bolostroquinhas dispensáveis.

        — Muito bem! — disse Emília, que tinha gana em Acentos. — Gosto de ouvir uma grande dama como a senhora falar assim, porque é exatamente como penso. Essas pulgas só servem para nos tomar tempo. Acho que só devem ser usados quando forem necessários, para evitar confusão. Hoje, escreve-se êle e há, com Acentos. Acho desnecessário, porque, com ou sem Acentos, só há um jeito de pronunciar essas palavras. E as letras? Fale das letras.

        — Entre as letras — continuou a Senhora Ortografia —, uma das mais curiosas é o H. O diabinho por si só não tem som nenhum, mas ligado a outras letras produz sons especiais. No começo duma palavra é o mesmo que não existir. Em Homem, Hoje ou Haver, por exemplo, tanto faz existir o H como não existir.

        — Então, por que continua o H nessas palavras? — indagou o menino.

        — Porque elas são filhas de palavras latinas que também se escreviam com H, e todo o mundo está acostumado. Se fôssemos escrever Ornem, haveria um berreiro de protestos...

        Mas quando o H se liga ao C, ele chia que nem pingo d'água em chapa de fogão, como em Machado, Achar, Chá, China. E se se liga a um L, ou a um N, produz um som que os gramáticos chamam Palatal, como nas palavras Alho, Trilho, Cunha, Vinho. Na Antiga Ortografia também se ligava ao P para dar um som igual ao F, como em Phosphoro, Philosopho, Phantasia.

        Emília ficou muito tempo de prosa com a dama grega,                                            aprendendo as regras da Nova Ortografia. Por ela soube que a Senhora Ortografia Etimológica tinha residência num bairro próximo, onde todas as palavras continuavam a trajar pelo sistema antigo.

        — A Ortografia Etimológica entrincheirou-se lá, furiosa da vida, e não admite que ninguém toque na vestimenta das suas palavras. Essa boa velha sustenta as modas antigas. Palavras que vieram do latim com letras dobradas, ela as conserva direitinhas. Não admite mudanças.

        — A boba! — exclamou Emília, com toda a irreverência. — Se tudo na vida muda, por que as palavras não haveriam de mudar? Até eu mudo. Quantas vezes não mudei esta carinha que a senhora está vendo?

        — Muda de cara, como? — indagou Dona Ortografia, franzindo a testa.

        — Sei lá. Mudo. Ou, antes, eles mudam a minha cara.

        — Quem são eles?

        — Esses diabos que desenham minha figura nos livros. Cada qual me faz de um jeito, e houve um tal que me fez tão feia que piquei o livro em mil pedacinhos.

        — Pois é uma grande injustiça — declarou a dama. — Na minha opinião, você é uma bonequinha encantadora.

        — E sabe que sou também um pocinho de it? — acrescentou Emília, piscando.

        Narizinho puxou-a por um braço. Era demais aquele assanhamento.

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a origem grega e o significado do nome da dama responsável pelo bairro da Ortografia?

      O nome "Ortografia" é formado por duas palavras gregas: "Orthos", que significa "correta", e "Graphia", que significa "escrita". Assim, a Ortografia é a "Escrita Correta", ou a que ensina a escrever corretamente.

02 – O que era o antigo Sistema Etimológico de escrita e qual era o principal problema que ele causava na língua?

      O Sistema Etimológico mandava escrever as palavras de acordo com a sua origem, o que exigia a manutenção de letras que já não eram pronunciadas. O principal problema era que isso trazia "muitas complicações e dificuldades" e resultava em uma "trabalheira inútil" para decorar formas de palavras com letras desnecessárias (como Scisma ou Phthisica).

03 – Qual sistema substituiu a Ortografia Etimológica e qual foi o princípio fundamental dessa mudança, sancionada por decreto?

      O movimento venceu e pôs em lugar da Etimológica uma Ortografia mais fonética, isto é, que só conservasse nas palavras as letras que se pronunciam.

04 – De acordo com a Senhora Ortografia, quais são duas das principais regras para o uso das Letras Maiúsculas?

      As Maiúsculas são usadas, principalmente, em:

      Todas as primeiras letras das palavras que abrem os Períodos.

      A primeira letra de todos os Nomes Próprios.

      Títulos, Epítetos ou Alcunhas (ex: Napoleão, o Grande) e Nomes Abstratos quando aparecem como pessoas (a Ira).

05 – Quais são os dois principais Acentos com os quais a Ortografia lida e qual é a sua opinião sobre a inclusão de muitos sinais na língua, como o acento grave ou o trema?

      Os dois principais acentos são o Agudo (´) e o Circunflexo (^). A Ortografia é contra a introdução de mais sinais, como o grave e o trema, defendendo a praticidade: "quanto menos Acentos houver numa língua, melhor."

06 – Qual é a característica curiosa da letra H e por que ela é mantida em certas palavras (como Homem ou Haver), mesmo quando não possui som?

      O H é um "diabinho" que por si só não tem som nenhum no começo de uma palavra. Ele é mantido nessas palavras porque elas são "filhas de palavras latinas que também se escreviam com H," e todo o mundo está acostumado, evitando um "berreiro de protestos" se fossem escritas de outra forma.

07 – Qual a opinião da "velha Ortografia Etimológica" sobre as simplificações e o que ela faz atualmente?

      A velha Ortografia Etimológica está "furiosíssima" e "não se conforma com a simplificação das palavras". Ela se entrincheirou num bairro próximo, onde não admite que ninguém toque na vestimenta das suas palavras, sustentando as modas antigas.

 

CONTO: PORTUGÁLIA - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Portugália Emília no País da Gramática

          Monteiro Lobato

        Era uma cidade como todas as outras. A gente importante morava no centro e a gente de baixa condição, ou decrépita, morava nos subúrbios. Os meninos entraram por um desses bairros pobres, chamado o bairro do Refugo, e viram grande número de palavras muito velhas, bem corocas, que ficavam tomando sol à porta de seus casebres. Umas permaneciam imóveis, de cócoras, como os índios das fitas americanas; outras coçavam-se.

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          Essas coitadas são bananeiras que já deram cacho — explicou Quindim. — Ninguém as usa mais, salvo por fantasia e de longe em longe. Estão morrendo. Os gramáticos classificam essas palavras de ARCAÍSMOS. Arcaico quer dizer coisa velha, caduca.

          Então, Dona Benta e Tia Nastácia são arcaísmos! — lembrou Emília.

        — Mais respeito com vovó, Emília! Ao menos na cidade da língua tenha compostura — protestou Narizinho.

        O rinoceronte prosseguiu:

        — As coitadas que ficam arcaicas são expulsas do centro da cidade e passam a morar aqui, até que morram e sejam enterradas naquele cemitério, lá no alto do morro. Porque as palavras também nascem, crescem e morrem, como tudo mais.

        Narizinho parou diante duma palavra muito velha, bem coroca, que estava catando pulgas históricas à porta dum casebre. Era a palavra Bofé.

          Então, como vai a senhora? — perguntou a menina, mirando-a de alto a baixo.

          Mal, muito mal — respondeu à velha. — No tempo de dantes fui moça das mais faceiras e fiz o papel de ADVÉRBIO. Os homens gostavam de empregar-me sempre que queriam dizer Em verdade, Francamente. Mas começaram a aparecer uns Advérbios novos, que caíram no gosto das gentes e tomaram o meu lugar. Fui sendo esquecida. Por fim, tocaram-me lá do centro. "Já que está velha e inútil, que fica fazendo aqui?", disseram-me. "Mude-se para os subúrbios dos Arcaísmos", e eu tive de mudar-me para cá.

          Por que não morre duma vez para ir descansar no cemitério? — perguntou Emília com todo o estabanamento.

          É que, de quando em quando, ainda sirvo aos homens. Existem certos sujeitos que, por esporte, gostam de escrever à moda antiga; e quando um deles se mete a fazer romance histórico, ou conto em estilo do século XV, ainda me chama para figurar nos diálogos, em vez do tal Francamente que tomou o meu lugar.

          Aqui o nosso Visconde pela-se por coisas antigas — disse a menina. — Conte-lhe toda a sua vida, desde que nasceu.

        O Visconde sentou-se ao lado da palavra Bofé e ferrou na prosa, enquanto Narizinho ia conversar com outra palavra ainda mais coroca.

          E a senhora, quem é? — perguntou-lhe.

          Sou a palavra Ogano.

          Ogano? O que quer dizer isso?

          Nem queira saber, menina! Sou uma palavra que já perdeu até a memória da vida passada. Apenas me lembro que vim do latim Hoc Anno, que significa Este Ano. Entrei nesta cidade quando só havia uns começos de rua; os homens desse tempo usavam-me para dizer Este Ano. Depois fui sendo esquecida, e hoje ninguém se lembra de mim. A Senhora Bofé é mais feliz; os escrevedores de romances históricos ainda a chamam de longe em longe. Mas a mim ninguém, absolutamente ninguém, me chama. Já sou mais que Arcaísmo; sou simplesmente uma palavra morta...

        Narizinho ia dizer-lhe uma frase de consolação quando foi interrompida por um bando de palavras jovens, que vinham fazendo grande barulho.

          Essas que aí vêm são o oposto dos Arcaísmos — disse Quindim. — São os NEOLOGISMOS, isto é, palavras novíssimas, recém-saídas da fôrma.

          E moram também nestes subúrbios de velhas?

          Em matéria de palavras a muita mocidade é tão defeito como a muita velhice. O Neologismo tem de envelhecer um bocado antes que receba autorização para residir no centro da cidade. Estes cá andam em prova. Se resistirem, se não morrerem de sarampo ou coqueluche e se os homens virem que eles prestam bons serviços, então igualam-se a todas as outras palavras da língua e podem morar nos bairros decentes. Enquanto isso ficam soltos pela cidade, como vagabundos, ora aqui, ora ali.

        Estavam naquele grupo de Neologismos diversos que os meninos já conheciam, como Chutar, que é dar um pontapé; Bilontra, que quer dizer um malandro elegante; Encrenca, que significa embrulhada, mixórdia, coisa difícil de resolver.

          Outro dia vovó disse que esta palavra Encrenca é a mais expressiva e útil que ela conhece, de todas que nasceram no Brasil — lembrou Pedrinho.

        Depois que os Neologismos acabaram de passar, os meninos dirigiram-se a uma praça muito maltratada, cheia de capim, sem calçamento nem polícia, onde brincavam bandos de peraltas endiabrados.

          Que molecada é esta? — perguntou a menina.

          São palavras da Gíria, criadas e empregadas por malandros ou gatunos, ou então por homens dum mesmo ofício. A especialidade delas é que só os malandros ou tais homens dum mesmo ofício as entendem. Para o resto do povo nada significam.

        Narizinho chamou uma que parecia bastante pernóstica.

          Conte-me a sua história, menina.

        A moleca pôs as mãos na cintura e, com ar malandríssimo, foi dizendo:

        — Sou a palavra Bamba, nascida não sei onde e filha de pais incógnitos, como dizem os jornais. Só a gente baixa, a molecada e a malandragem das cidades é que se lembra de mim. Gente fina, a tal que anda de automóveis e vai ao teatro, essa tem vergonha de utilizar-se dos meus serviços.

          E que serviço presta você, palavrinha? — perguntou Emília.

          Ajudo os homens a exprimirem suas ideias, exatamente como fazem todas as palavras desta cidade. Sem nós, palavras, os homens seriam mudos como peixes, e incapazes de dizer o que pensam. Eu sirvo para exprimir valentia. Quando um malandro de bairro dá uma surra num polícia, todos os moleques da zona utilizam-se de mim para definir o valentão. "Fulano é um bamba!", dizem. Mas como a gente educada não me emprega, tenho que viver nestes subúrbios, sem me atrever a pôr o pé lá em cima.

          Onde é lá em cima?

          Nós chamamos "lá em cima" à parte boa da cidade; este "lixo" por aqui é chamado "cá embaixo".

          Vejo que você tem muitas companhias — observou Narizinho, correndo os olhos pela molecada que formigava em redor.

          Tenho, sim. Toda esta rapaziada é gentinha da Gíria, como eu. Preste atenção naquela de olho arregalado. É a palavra Otário, que os gatunos usam para significar um "trouxa" ou pessoa que se deixa lograr pelos espertalhões. Com a palavra Otário está conversando outra do mesmo tipo, Bobo.

          Bobo sei o que significa — disse Pedrinho. — Nunca foi gíria.

          Lá em cima — explicou Bamba — Bobo significa uma coisa; aqui embaixo significa outra. Em língua de gíria Bobo quer dizer relógio de bolso. Quando um gatuno diz a outro: "Fiz um bobo", quer significar que "abafou" um relógio de bolso.

          E por que deram o nome de Bobo aos relógios de bolso?

          Porque eles trabalham de graça — respondeu Bamba, dando uma risadinha cínica.

        Os meninos ficaram por ali ainda algum tempo, conversando com outras palavras da Gíria — e por precaução Pedrinho abotoou o paletó, embora seu paletó nem bolso de dentro tivesse. A gíria dos gatunos metia-lhe medo...

          Por estes subúrbios também vagabundeiam palavras de outro tipo, malvistas lá em cima — disse o rinoceronte apontando para uma palavra loura, visivelmente estrangeira, que naquele momento ia passando. — São palavras exóticas, isto é, de fora — imigrantes a que os gramáticos puseram o nome geral de BARBARISMOS.

          Querem significar com isso que elas dizem barbaridades? — indagou Emília.

          Não; apenas que são de fora. Este modo de classificá-las veio dos romanos, que consideravam bárbaros a todos os estrangeiros. Barbarismo quer dizer coisa de estrangeiro. Se o Barbarismo vem da França tem o nome especial de GALICISMO; se vem da Inglaterra, chama-se ANGLICISMO; se vem da Itália, ITALIANISMO — e assim por diante. Os Galicismos são muito maltratados nesta cidade. As palavras nascidas aqui torcem-lhes o focinho e os "grilos" da língua (os gramáticos), implicam muito com eles. Certos críticos chegam a considerar crime de cadeia a entrada dum Galicismo numa frase. Tratam os coitados como se fossem leprosos. Aí vem um.

        O Galicismo Desolado vinha vindo, muito triste, de bico pendurado. Quindim apontou-o com o chifre, dizendo:

        — Se você algum dia virar poeta, Pedrinho, e cair na asneira de                                                            botar num soneto este pobre Galicismo, os críticos xingarão você de mil nomes feios. Desolado é o que eles consideram um Galicismo imperdoável. Já aquele outro que lá vem goza de maior consideração. É a palavra francesa Elite, que quer dizer a nata, a fina flor da sociedade. Veja como é petulantezinha, com o seu monóculo no olho.

          Elite tem licença de morar no centro da cidade? — perguntou o menino.

          Não tinha, mas hoje tem. Já está praticamente naturalizada. Durante muito tempo, entretanto, só podia aparecer por lá metida entre ASPAS, OU em GRIFO.

          Que é isso?

          Aspas e Grifo são os sinais que elas têm de trazer sempre que se metem no meio das palavras nativas. Na cidade das palavras inglesas não é assim — as palavras de fora gozam lá de livre trânsito, podendo apresentar-se sem aspas e sem grifo. Mas aqui nesta nossa Portugália há muito rigor nesse ponto. Palavra estrangeira, ou de gíria, só entra no centro da cidade se estiver aspada ou grifada.

          Olhem! — gritou Emília. — Aquela palavrinha acolá acaba de tirar do bolso um par de aspas, com as quais está se enfeitando, como se fossem asinhas...

        — É que recebeu chamado para figurar nalguma frase lá no centro e está vestindo o passaporte. Trata-se da palavra francesa Soirée. Reparem que perto dela está outra a botar-se em grifo. É a palavra Bouquet...

        — Judiação! — comentou Narizinho. — Acho odioso isso. Assim como num país entram livremente homens de todas as raças — italianos, franceses, ingleses, russos, polacos, assim também devia ser com as palavras. Eu, se fosse ditadora, abria as portas da nossa língua a todas as palavras que quisessem entrar — e não exigia que as coitadinhas de fora andassem marcadas com os tais grifos e as tais aspas.

          Mesmo assim — explicou o rinoceronte — muitas palavras estrangeiras vão entrando e com o correr do tempo acabam "naturalizando-se". Para isso basta que mudem a roupa com que vieram de fora e sigam os figurinos desta cidade.

        Bouquet, por exemplo, se trocar essa sua roupinha francesa e vestir um terno feito aqui, pode andar livremente pela cidade. Basta que vire Buquê...

        Perto havia uma elevação donde se descortinava toda a cidade; o rinoceronte levou os meninos para lá.

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Onde moram as "palavras muito velhas, bem corocas" e como elas são classificadas pelos gramáticos?

      Elas moram em um dos bairros pobres chamado o bairro do Refugo (nos subúrbios). Os gramáticos as classificam como Arcaísmos.

02 – Qual é o significado de "Arcaísmo", de acordo com a explicação de Quindim?

      Arcaico quer dizer "coisa velha, caduca".

03 – Que palavra arcaica é mencionada no texto como uma antiga Advérbio que significa "Em verdade" ou "Francamente", mas foi esquecida?

      A palavra é Bofé.

04 – Qual a diferença entre a palavra "Bofé" e a palavra "Ogano" em relação à frequência de uso?

      A palavra Bofé é mais feliz, pois ainda é chamada "de longe em longe" por sujeitos que gostam de escrever à moda antiga (romances históricos, por exemplo). Já a palavra Ogano (que veio do latim Hoc Anno) é mais que Arcaísmo; é considerada uma palavra morta, pois ninguém, absolutamente ninguém, a usa mais.

05 – Como são chamadas as "palavras novíssimas, recém-saídas da fôrma", e o que acontece com elas antes de poderem morar no centro da cidade?

      São chamadas Neologismos. Elas precisam envelhecer um bocado e passar por uma prova (resistir e prestar bons serviços) antes de receberem autorização para residir no centro.

06 – O que são as palavras da "Gíria", e quem as emprega principalmente?

      São palavras criadas e empregadas por malandros ou gatunos, ou então por homens dum mesmo ofício. A especialidade delas é que só esses grupos as entendem.

07 – Qual é o significado da palavra "Bamba" na gíria, e por que ela não pode morar no centro da cidade?

      A palavra Bamba serve para exprimir valentia ("Fulano é um bamba!"). Ela tem que viver nos subúrbios (o "cá embaixo") porque a gente educada ou fina tem vergonha de utilizá-la.

08 – O que significa a palavra "Bobo" na língua da gíria dos gatunos, e por que ela recebeu esse nome?

      Na gíria dos gatunos, Bobo significa relógio de bolso. Recebeu esse nome porque, segundo Bamba, "eles trabalham de graça".

09 – Qual é o nome geral dado pelos gramáticos às "palavras exóticas, isto é, de fora — imigrantes"? Dê um exemplo de classificação específica e de onde ela se origina.

      O nome geral é Barbarismos. Um exemplo é o Galicismo, que é um Barbarismo que vem da França.

10 – Que condição é imposta às palavras estrangeiras, como os Galicismos, para que elas possam entrar no centro da cidade de Portugália, e como elas podem se "naturalizar"?

      Para entrar no centro, elas têm de estar aspadas (entre aspas) ou grifadas (em grifo). Para se "naturalizar", elas precisam mudar a roupa (a forma) com que vieram de fora e seguir os figurinos da cidade, como, por exemplo, a palavra francesa Bouquet virar Buquê.

 

 

CONTO: EM PLENO MAR DOS SUBSTANTIVOS - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Em pleno mar dos Substantivos – Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato

        Havia muita coisa a ver no bairro dos Substantivos, e por essa razão todos protestaram quando Emília falou em visitar as INTERJEIÇÕES.

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        — Espere, bonequinha aflita! — disse Quindim. — Inda há muito pano para manga aqui. Vocês ainda não observaram que estes Senhores Nomes estão divididos em dois gêneros, o MASCULINO e o FEMININO, conforme o sexo das coisas ou seres que eles batizam. Paulo é masculino porque todos os Paulos pertencem ao sexo masculino.

        — Mas Panela? — advertiu Emília. — Por que razão Panela é Nome feminino e Garfo, por exemplo, é masculino? Panela ou Garfo têm sexo?

        — Isso é uma das maluquices desta cidade — respondeu o rinoceronte. — Já em Anglópolis não é assim. Há lá mais um gênero, o GÊNERO NEUTRO, para todas as palavras que designam coisas sem sexo, como Panela e Garfo.

        — Coitados dos ingleses que se mudam para o Brasil!

        — Advertiu Pedrinho. — Imaginem a trabalheira para decorar o sexo de milhares de palavras indicativas de coisas que... não têm sexo!

        — Você tem razão — disse Quindim —, mas em matéria de língua a coisa é como é e não como deveria ser. Nesta cidade os Substantivos terminados em O, U, I, Em, Im, Om, Um, En, L, R, S e X são quase sempre masculinos.

        — Nossa Senhora! — exclamou Narizinho. — Quantas terminações! Os homens mostram o seu egoísmo em tudo. "Chamaram" para o sexo deles quase todas as terminações possíveis. E os femininos?

        — São quase sempre femininos os Nomes terminados em A, Ã, Ção, Gem, Dade e Ice.

        — Bandidos! — protestou a menina. — Os homens tomaram para si doze terminações e só deixaram seis para o sexo feminino — a metade...

        — Não faz mal, Narizinho — consolou a boneca. — Quando nós tomarmos conta do mundo, havemos de fazer o contrário — ficar com doze para o nosso sexo e só dar seis para o sexo deles.

        O rinoceronte continuou:

        — E há ainda Nomes que possuem dois sexos, isto é, que tanto servem para indicar seres ou coisas do gênero feminino como do masculino. Nós, gramáticos, usamos um nome muito feio para designar tais substantivos — EPICENOS.

        — Isso não é designar, é xingar! — disse Emília.

        — Nomes como Onça, Cônjuge, Criança, Jacaré e tantos outros têm o defeito de servir para os dois sexos. São Nomes Epicenos.

        — Epiceno é o nariz dos gramáticos — exclamou Emília.

        — Um defeito a gente deve corrigir. Xingar o defeito com um nome feio não adianta.

        — E há ainda — continuou o rinoceronte — os Nomes chamados COMUNS DE DOIS, que ora são masculinos, ora são femininos. O Nome Artista, por exemplo, é Comum de Dois, porque a gente tanto pode dizer O Artista como A Artista. Fora dessas duas classes de Nomes, o resto passa dum sexo para outro por meio duma simples mudança do final. Os que terminam em O mudam esse O em A e viram femininos. Outros, porém, arranjam um nome diferente para o feminino, como Pai — Mãe; Frade — Freira; Cavalo — Égua; Ladrão — Ladra.

        — E qual o feminino de Rabicó? — perguntou Narizinho. O rinoceronte ficou atrapalhado.

        — O feminino de Rabicó é Emília, porque ela é a mulher de Rabicó.

        Emília, que já de muito tempo se havia divorciado de Rabicó, ficou danadinha e disse:

        — Nesse caso, o masculino de Narizinho é Bacalhau... Todos arregalaram os olhos, sem perceber a ideia da boneca.

        — Sim, porque Narizinho também é casada com o tal Príncipe Escamado, que para mim não passa dum bacalhau de porta de venda, muito ordinário...

        — Calma, calma! — exclamou o rinoceronte. — Deixem as brigas para quando regressarem. Em vez disso prestem atenção a outra particularidade dos Substantivos. Além de Gênero, ou Sexo, eles têm NÚMERO, como dizem os gramáticos. Ter Número quer dizer ter SINGULAR e PLURAL. Quando um Substantivo designa uma coisa só, vai para o Singular; quando designa duas ou mais coisas, vai para o Plural. O meio de passar do Singular para o Plural consiste no ajustamento dum rabinho chamado S. Exemplo: Gato, é Singular; põe o rabinho e vira Gatos — Plural.

        — É assim com todos os Substantivos? — perguntou Emília.

        — Não; existem muitos que fazem o Plural de outros modos. Os que terminam em A, Ol e Il tônicos trocam o L final por Is, como Sol, que faz Sóis; Canal, que faz Canais; Barril, que faz Barris.

        Os terminados em El e os terminados em Il átonos mudam o El e o Il em Eis assim: Anel, Anéis; Fóssil, Fósseis. Os terminados em Ul trocam o L por Is, como Azul, que faz Azuis. Alguns não seguem a regra, como Cônsul, que faz Cônsules.

        — Enjoado! — comentou Emília, fazendo bico. — E os terminados em R, Z e N?

          Esses fazem o plural juntando Es — Mulher, Mulheres; Nariz,                                          Narizes; Abdômen, Abdômenes. E os que terminam em M trocam esse M por Ns, como Homem, que faz Homens. E os que terminam em S não mudam, como Pires, Lápis. Um pires, dois pires. Entretanto, os terminados em Ês fazem o plural acrescentando Es, exemplo Mês, Meses; Cortês, Corteses.

        — Chega de Número, Quindim — disse Emília. — Já me está enjoando as tripas. Mude de tecla.

        Nesse momento surgiu o Visconde, que ficara nos subúrbios de prosa com a velha Bofé e outras corujas. Vinha correndo e a tapar os ouvidos com as mãos.

        — Que aconteceu, Visconde? Que carreira é essa?

        O pobre sábio parou, arque jante, de língua de fora como um cachorro cansado.

        — Oh, estou envergonhadíssimo! — exclamou com esforço, enxugando a testa com as palhinhas de milho do pescoço. — Imaginem que ao vir para cá errei e fui dar com os costados num bairro horrível, que nem sei como a polícia deixa! O bairro das PALAVRAS OBSCENAS... Que coisa feia, Santo Deus! Vi por lá, soltas nas ruas, esmolambadas e sórdidas, as palavras mais sujas da língua. Sarnentas, vestidas de farrapos e sem a menor compostura nos modos. Assim que me viram deram-me uma grande vaia nos termos mais infames. Os nomes que ouvi eram de fazer cor ar a um frade-de-pedra. E vim correndo avisar vocês para que não passem por lá.

        Mas a pestinha da Emília, que era boneca e não achava nada no mundo indecente, assanhou-se logo.

        — Vocês, sabugos, são tão cheios de histórias como as gentes de carne — disse ela. — As coitadas das palavras que culpa têm de existirem no mundo coisas que os homens consideram feias? Vou lá, sim. Quero consolar as pobres infelizes e dar-lhes uns bons conselhos.

        Narizinho, porém, não deixou.

        — Não vai, não, Emília. Inocentes ou culpadas, o melhor é não nos metermos com elas. Vovó, se soubesse, ficaria aborrecida. Por aqui ainda há muita coisa decente para vermos. Olhe aquela palavra esquisita, que vem latindo. Senhora Palavra, venha cá!

        A palavra Canzarrão aproximou-se, latindo.

        — Au! Au! Que é que a menina deseja?

        — Saber quem é a senhora e o que faz.

        — Sou a mesma palavra Cão aumentada; se tenho de designar um cão grande, viro Canzarrão; e se tenho de designar um cão pequenino, viro Cãozinho.

        — Isto é o que os gramáticos chamam GRAU — mudança nas palavras para dar ideia do tamanho das coisas — explicou o rinoceronte. — Há o Grau AUMENTATIVO, para aumentar, e o Grau DIMINUTIVO, para diminuir.

        — Sei disso — declarou Emília. — As palavras quando querem significar uma coisa grande, latem; e quando querem significar uma coisa pequena, choramingam.

        Ninguém entendeu.

        — Sim — insistiu ela. — Botar um Ao no fim duma palavra é latir, porque latido de cachorro é assim — ão, ão, ao! E botar um Inho, ou um Zinho no fim das palavras é choramingar como criança nova. Panela, por exemplo; se late, vira Panelão e se choraminga, vira "Panelinha...

        O rinoceronte admirou-se da esperteza da boneca.

        — Muito bem, senhorita! — exclamou ele. — Está certo. Mas nem sempre é assim. Aquelas duas palavras que vêm vindo para o nosso lado estão aumentadas — e aumentaram sem latir.

        Vinha vindo a palavra Cabeçorra, de braço dado à palavra Copázio.

        — São aumentativos de Cabeça e Copo — explicou Quindim. — Cabeça — Cabeçorra; Copo — Copázio.

        — Mas eu posso dizer Cabeção e Copão — insistiu Emília.

        — Pode, mas também existem aquelas formas de aumentativo sem Ao. Bicho, por exemplo, dá Bichão e Bichaço. Corpo dá Corpão e Corpanzil. No caso de serem palavras femininas, em vez de Ão elas botam no fim Ona. Mulher, Mulherona.

        — Ou Mulher aça — advertiu Narizinho. — Já ouvi vovó dizer que a viúva do Maluf da venda é uma Mulheraça.

        — Está certo — confirmou Quindim —, e portanto fica visto que com Ão, On, Zarão, Rão, Aço ou Aça, Az, Ázio e Orra, as palavras aumentam. E para diminuírem, além do chorinho que Emília descobriu, como é que fazem?

        Ninguém sabia diminuir sem chorinho. O rinoceronte explicou:

        — Além do Inho e Zinho que Emília já disse, elas diminuem com Ito...

        — Mosca, Mosquito — lembrou logo Pedrinho.

        — E também com Ete, Eto, Oto, Ico...

        — Antônio, Antonico — lembrou a menina.

        — E com Ejo — continuou Quindim —, e com Ilho, Elho, El, lm, Olo, Ulo e Elo.

        — Quantos jeitos! — exclamou Emília. — Isso é que aborrece na língua. Em vez de haver um jeito só para cada coisa, há muitos. Tal abundância de jeitos só serve para dar trabalho à gente.

        — Dá um pouco de trabalho, sim — disse o rinoceronte —, mas em compensação traz muitas vantagens. Se Pedrinho virar algum dia escritor de histórias, há de ver que esta variedade ajuda grandemente o estilo, permitindo a composição de frases mais bonitas e musicais.

        Narizinho olhou para Quindim com ar de surpresa. Como é que um bicho cascudo daqueles, vindo lá dos fundões da África, entendia até de "estilo" e frases "musicais"?

        — Não posso compreender como ele virou tamanho gramático assim dum momento para outro...

        — Para mim — sugeriu Emília — Quindim comeu aquela gramaticorra que Dona Benta comprou. Lembre-se que a bichona desapareceu justamente no dia em que Quindim dormiu no pomar. O Visconde tinha estado às voltas com ela, estudando ditongos debaixo da jabuticabeira. Com certeza esqueceu-a lá e o rinoceronte papou-a.

        — Que bobagem, Emília! Gramática nunca foi alimento.

        — Bobagem, nada! — sustentou a boneca. — Dona Benta vive dizendo que os livros são o pão do espírito. Ora, gramática é livro; logo é pão; logo é alimento.

        — Boba! — gritou a menina. — Pão do espírito está aí empregado no sentido figurado. No sentido material um livro não é pão de coisa nenhuma.

        Emília deu uma gargalhada.

        — Pensa que não sei que os livros são feitos de papel de madeira? Madeira é vegetal. Vegetal é alimento de rinocerontes. Logo, Quindim podia muito bem alimentar-se com os vegetais que se transformaram no papel que virou gramática.

        Apesar do absurdo de semelhante hipótese, Narizinho ficou meio abalada. Quem sabe lá se Quindim não tinha mesmo comido a Gramática histórica de Eduardo Carlos Pereira? Acontece tanta coisa esquisita neste mundo...

        — Bom — disse o rinoceronte. — Chega de Substantivos. Vamos agora dar uma volta pelo bairro dos Adjetivos.

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Por que Emília questiona a divisão dos Substantivos em gêneros Masculino e Feminino em Portugália?

      Ela questiona porque palavras que designam objetos inanimados (sem sexo), como "Panela" (feminino) e "Garfo" (masculino), têm um gênero determinado, o que ela classifica como uma "maluquice desta cidade".

02 – Qual é a diferença entre as regras de Gênero em Portugália e em Anglópolis (Inglaterra)?

      Em Anglópolis, há um terceiro gênero, o GÊNERO NEUTRO, para designar todas as palavras que indicam coisas sem sexo (como Panela e Garfo), enquanto em Portugália só existem os gêneros Masculino e Feminino.

03 – Como os gramáticos classificam os Nomes que servem para os dois sexos, e qual é a distinção entre Epicenos e Comuns de Dois?

      O nome genérico usado pelos gramáticos para designar tais substantivos é Epicenos.

      Epicenos (Ex: Onça, Criança) são Nomes que usam a mesma palavra (e o mesmo gênero gramatical) para ambos os sexos.

      Comuns de Dois (Ex: Artista) são Nomes que podem ser masculinos ou femininos, sendo o gênero marcado pela palavra que os acompanha (O Artista / A Artista).

04 – Quais são as terminações que indicam Nomes Femininos, segundo Quindim, e qual é a queixa de Narizinho sobre essa distribuição?

      São quase sempre femininos os Nomes terminados em A, Ã, Ção, Gem, Dade e Ice. Narizinho protesta porque os homens (gênero masculino) "tomaram" doze terminações e só deixaram seis (a metade) para o sexo feminino.

05 – Qual é o meio de passar um Substantivo do Singular para o Plural na regra geral, e qual é a regra para os terminados em M e em S?

      O meio mais comum para passar para o Plural é o ajustamento dum rabinho chamado S (Ex: Gato → Gatos).

      Os terminados em M trocam esse M por Ns (Ex: Homem → Homens).

      Os terminados em S (como Pires e Lápis) não mudam (Ex: Um pires, dois pires).

06 – Como é formado o plural dos substantivos terminados em L, dependendo da pronúncia?

      Os terminados em A, Ol e Il tônicos trocam o L final por Is (Ex: Sol → Sóis; Canal → Canais).

      Os terminados em El e Il átonos mudam o El e o Il em Eis (Ex: Anel → Anéis; Fóssil → Fósseis).

07 – O que o Visconde de Sabugosa encontrou no "bairro horrível" e qual foi sua reação?

      Ele encontrou o bairro das PALAVRAS OBSCENAS, palavras "esmolambadas e sórdidas". Sua reação foi de envergonhamento e ele veio correndo avisar os outros para que não passassem por lá, pois as palavras o vaiaram nos "termos mais infames".

08 – Qual é o nome que os gramáticos dão à mudança nas palavras para dar ideia do tamanho das coisas, e quais são os seus dois graus principais?

      Chamam de GRAU. Os dois graus principais são o Grau AUMENTATIVO, para aumentar (Ex: Canzarrão), e o Grau DIMINUTIVO, para diminuir (Ex: Cãozinho).

09 – Segundo Quindim, quais são alguns dos sufixos de Aumentativo e Diminutivo que existem além de "-ão" e "-inho" / "-zinho"?

      Aumentativos: -on, -zarão, -rão, -aço ou -aça, -az, -ázio e -orra (Ex: Cabeçorra, Copázio).

      Diminutivos: -ito, -ete, -eto, -oto, -ico, -ejo, -ilho, -elho, -el, -im, -olo, -ulo e -elo (Ex: Mosquito, Antonico).

10 – Qual foi a teoria de Emília para explicar como Quindim, um rinoceronte, se tornou um grande gramático?

      Ela teorizou que Quindim comeu a Gramática histórica de Eduardo Carlos Pereira, que o Visconde havia esquecido. Ela defendeu essa ideia com o argumento de que livros são "pão do espírito" e, no sentido material, como livros são feitos de papel de madeira (vegetal), e vegetal é alimento de rinocerontes, Quindim poderia muito bem ter se alimentado da gramática.