Conto:
O alienista – Capítulo IV: Uma teoria nova
Machado de Assis
Ao
passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão
Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria
a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da
Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as
gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia
medo aos mais heroicos.
Um
dia de manhã,— eram passadas três semanas,— estando Crispim Soares ocupado em
temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.
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— Trata-se
de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.
Crispim empalideceu. Que negócio
importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da
mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem
nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca
estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele
fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: — "Anda, bem feito,
quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só
para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de
lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amem a tudo, não é? aí tens o lucro,
biltre!" — E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos
outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada.
Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.
Simão
Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de
circunspeção até o pescoço.
— Estou
muito contente, disse ele.
— Notícias
do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.
O
alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
— Trata-se
de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência,
porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra
coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma
experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura,
objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão;
começo a suspeitar que é um continente.
Disse
isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou
compridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta
superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de
textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um
raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e
refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens
célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à
esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e
pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E
porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe
que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:
— A
ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.
— Gracioso,
muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.
Quanto
à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante;
mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar
outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e
acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem
equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí que como as demais vilas,
arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de
divulgar uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta
da Câmara, e da matriz; — ou por meio de matraca.
Eis
em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias,
para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão.
De
quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe
incumbiam, — um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um
donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano,
etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela
grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores, — aquele
justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde, — desfrutava a
reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara
um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca
todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto
cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só
devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as
instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século.
— Há
melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à
insinuação do boticário.
E o
boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim,
que era melhor começar pela execução.
— Sempre
haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.
Simão
Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:
— Suponho
o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso
extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente
os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as
faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.
O
Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não
chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era
de tal modo colossal que não merecia princípio de execução.
— Com
a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão
estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa.
Para que transpor a cerca?
Sobre
o lábio fino e discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de
riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de
suas egrégias entranhas.
A
ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a
teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo
ficavam à beira de uma revolução.
ASSIS, Machado de. O
alienista. São Paulo: L&PM Editores, 1998.
Fonte: Linguagens em
Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas
Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 212-214.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Fâmulo: servo, criado, empregado.
·
Fracalhão: muito fraco, medroso, covarde.
·
Biltre: cafajeste, canalha.
·
Circunspeção: cautela, cuidado, sensatez.
·
Sezão: febre intermitente.
·
Regímen: forma antiga de regime.
·
Egrégio: distinto, notável, ilustre.
02
– Qual é a ideia "arrojada e nova" que Simão Bacamarte estava desenvolvendo?
Simão Bacamarte
estava desenvolvendo a ideia de que a loucura, até então vista como uma
"ilha perdida no oceano da razão", na verdade poderia ser um
"continente", ou seja, algo muito mais comum e abrangente do que se
pensava.
03
– Qual foi a reação inicial de Crispim Soares ao ser chamado por Simão
Bacamarte?
Crispim Soares
ficou extremamente nervoso e preocupado, pensando que o chamado estava
relacionado à viagem de sua esposa, D. Evarista, da qual estava muito
apreensivo.
04
– Como Simão Bacamarte explica a relação entre loucura e razão para Crispim
Soares?
Simão Bacamarte
explica que a razão é o "perfeito equilíbrio de todas as faculdades"
e qualquer coisa fora desse equilíbrio é insânia, ou seja, loucura.
05
– Quais exemplos históricos Simão Bacamarte utiliza para sustentar sua teoria
sobre a loucura?
Simão Bacamarte cita
Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda,
e outras figuras históricas como Maomé, Caracala, Domiciano e Calígula, entre
outros.
06
– Qual foi a reação do Vigário Lopes à nova teoria de Simão Bacamarte?
O Vigário Lopes
declarou que não entendia a teoria e a considerou absurda ou colossal demais
para ser praticada. Ele acreditava que a definição de loucura e razão já estava
bem delimitada e que não havia necessidade de novas teorias.
07
– O que significa a expressão "caso de matraca" usada por Crispim
Soares?
"Caso de
matraca" se refere à prática de anunciar algo publicamente por meio de um
homem que andava pelas ruas tocando uma matraca e fazendo anúncios, uma forma
antiga de divulgar informações importantes em Itaguaí.
08
– Qual é o objetivo final de Simão Bacamarte com sua nova teoria?
O objetivo final
de Simão Bacamarte é "demarcar definitivamente os limites da razão e da
loucura" e extrair a "pérola" da razão, separando claramente o
que é insânia do que é sanidade.
09
– Como Simão Bacamarte reage às críticas do Vigário Lopes?
Simão Bacamarte
reage com uma vaga sombra de riso, combinando desdém com comiseração, mas não
verbaliza nenhuma crítica direta, apenas mantém sua confiança na ciência.
10
– Por que Crispim Soares não discorda abertamente da teoria de Simão Bacamarte?
Crispim Soares
não discorda abertamente por conta de sua modéstia e respeito por Bacamarte.
Embora ache a ideia extravagante, ele prefere não contestar e expressa
entusiasmo pela teoria.
11
– Como Machado de Assis utiliza a figura do alienista para explorar temas de
ciência e razão?
Machado de Assis
utiliza Simão Bacamarte, o alienista, para explorar as fronteiras entre ciência
e razão, questionando a definição de loucura e a autoridade dos cientistas
sobre a mente humana, e também como a ciência pode ser usada para justificar
ações extremas.