Conto: O ódio
Manuel de Oliveira Paiva
Junto à amurada engoiava-se uma gaiola
de paus, onde, como um pêndulo, sombras de velas e cordagens iam e vinham
vagarosamente ao bel prazer da flutuação.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSz24msxM-o7M0qET_kWYsWIXREo-5hTOh9gR5OluC_LCyB3bAmKSBvYDUS9KriiNKUeqDdzirUndpnRM2O38hSl8kzqvB_nITZFBzJWPn3grY6AGwJ6CpbAjjeza0lLshrvbHtXUXjfqt258ZChGbvS8oQ8G2e3RlNqe808kRyb1SE5NJn2DjbXFWWOM/s1600/ODIO.jpg
Rondava dentro da jaula um gato maior
que um cachorro grande.
Perto, quando clareava, reluzia o olhar
de um negro, acocorado no sopé do mastro, com as mãos cruzadas abarcando os
joelhos.
Via-se bem o animal preso, movendo-se
com pés de seda e garbo de mulher.
Passeava desdenhosamente. Amarelo
fulvo, lindamente mouriscado com patacos pretos, como não há veludo. Quando
alguém aproximava-se, a fera largava uma roncaria por entre presas, e dava
botes nos paus, explodindo búfidos espantosos.
O comandante muitas vezes desanuviava a
sua cerveja fazendo-se espectador da eterna aversão e tolhido orgulho do bicho
feroz, de cujo cativeiro abusavam; faziam-se trejeitos, cutucavam com um
bastão, davam-lhe um pau a morder, de modos que o animal parecia chorar de
raiva.
O piloto, muito chalação, desandava-lhe
descomposturas:
— Anda lá marafona! Pensavas qu'isto
qu'era a furna? Olhe que ela pega-o, comandante!
E
daí, amabilizava com uns nomes feios — filha desta, filha daquela, como se
fosse entre duas pessoas:
— Eu não lhe tenho medo, porque lá
arrebentar esse nicho é o que ela não pilha.
Nessa noite, o negro notou um lume que
boiava no escuro do oceano, como um pirilampo; e o seu pensamento, que por uma
certa simpatia de gênios e de condição costumava ater-se à onça presa, apegava-se
agora a esse nonada fosforescente.
Muito depois, o foguinho crescia, e o
negro foi obrigado a sair de ao pé do mastro, por via das manobras de bordo. O
diabo do lume tinha coisa: o navio evitava-o como se estivesse cheio de pólvora
e essa tocha distante fosse uma faísca a persegui-lo perversamente.
O negro, sentindo que havia um perigo
qualquer, volveu de novo o pensamento para o tigre.
Antegustava uma satisfação feroz,
prevendo um belo horror de destruições. Apertavam as vozes de comando, e o
mestre enfurecia — quisera ter os punhos do mundo inteiro para torcer o rumo
do vento! Era uma vela meter-se onde eles queriam, e bambeava com os paroxismos
de um sossobrante. Havia um demo no espaço negro a embirrar com o barco.
O comandante e oficiais ainda estavam
bêbedos da orgia que tiveram ao sair do porto.
O escravo, supersticioso, jurava entre
si que o lume que se aproximava era o espírito maligno, em feitio de macaco,
às cabriolas de onda em onda, com uma brasa na boca. Ele via até os ziguezagues
na trajetória do farol movediço.
Assombrado pela incerteza do perigo,
ele desceu, e voltou com um machado. No pescoço conservava o seu amuleto.
Estava armado para o desconhecido. Fazia muito frio. Começou a espalhar-se um
medo, insinuativo no meio da treva, e mais tarde o pavor.
De repente a luzinha estava mesmo em
cima deles, emaranhada no porte alevantado de um paquete a vapor.
Um estremeção prolongado, como um
desabamento, saiu do navio todo, que rangeu nas ínfimas veladuras do cavername.
O pessoal ficou um instante bestializado. E, depois, como um bando turvo de
vampiros no seu voar frouxo e mortuário, saía de todos os poros a ideia da
morte. O vapor, cujo era o farol fatídico, havia metido a pique o barco, e
talvez tivesse também soçobrado, matando-se ambos sem reconhecer-se, arrastados
pelo demônio das colisões marítimas, um daqueles que ao cair do céu ficaram nos
ares prestando ao gênero humano o relevante serviço de fazer-lhe o mal.
O negro levou as mãos à cabeça. Sob a
noite estrelada, ele via os borbolhões do horrendo por toda parte. Escaleres ao
mar, salva-vidas, aconchego e desespero dos que se amam, considerações para com
os delicados, heroísmo dos fortes, num rápido.
Dele não se lembravam. A noite de sua
pele casava com a do espaço entremeadas pela de sua vida. Sua alma hostil armara-o
de machado, porque ele, desde menino, ouvia falar em lutas de corso e de
piratas. Isto sim, lhe seria um triunfo. Entanto, restava-lhe boiar, e ainda se
fosse possível. Não podia prestar serviços, porque ninguém se entendia, assim
nas goelas da morte.
E achava-se de braços cruzados, sobre o
abismo, ele, o forte, o valentão, o calmo, o herói, o Hércules. No véu das
sombras viu bruxulear os olhos do tigre. Ah! e a fera não teria direito ao
salvamento? A desordem a bordo era insuperável. Um salve-se-quem-puder! E o
possante bruto humano ergueu o machado e descarregou um golpe sobre a jaula.
Ébrio de sua majestade, arriou novo golpe, e repetiu. A fera recuara para o
fundo, e quando viu o rombo que a desagrilhoava, atirou-se... ávida por beber sangue
e doida de fome. Rolaram no convés a onça atracada com o escravo.
O navio empinava para a profundez. Na
voragem, a fera remontou à gaiola, que flutuava nas águas, enquanto o cadáver
do escravo descia no abismo, talvez com a íntima satisfação de ter libertado
uma fera, entre eles perdurando uma certa simpatia de gênios e de condição.
Era ele quem tratava do tigre.
Amava-lhe o rancor eterno. Achava-o formoso, tão dourado, tão liso, tão forte!
Comprazia-se em matar-lhe a sede e a fome. Amava-o porque o bicho indicava ser
insensível ao amor. E foi um grande prazer desaparecer da vida deixando em seu
lugar um bruto que era uma concretização do ódio, humor necessário à vida
social, como o fel à vida individual!
Entendendo o conto:
01 – Qual é o gênero
literário, pertence o conto?
Ao gênero
literário de ficção.
02 – Qual é o cenário
principal onde se desenrola a história?
A história se
passa em uma pequena vila do interior, em um ambiente rural.
03 – Quem são os personagens
principais do conto?
Os personagens
principais são: Joaquim, um vaqueiro e Ricardo, o proprietário da fazenda.
04 – O que leva Joaquim a
nutrir ódio por Ricardo?
Joaquim nutre
ódio por Ricardo devido ao fato de ter sido acusado injustamente de roubo e ter
sido castigado por isso.
05 – Como Joaquim expressa seu
ódio por Ricardo ao longo da história?
Joaquim passa a
cultivar o ódio em seu coração e, secretamente, alimenta o desejo de vingança
contra Ricardo.
06 – O que acontece quando
Joaquim está prestes a consumar sua vingança?
Ele vê Ricardo em
uma situação que o faz reconsiderar seus sentimentos de ódio.
07 – Qual é o evento que faz
Joaquim repensar suas emoções?
Joaquim repensa suas emoções quando vê
Ricardo consolando e cuidando do filho doente de Joaquim.
08 – Qual é a mensagem
principal transmitida pelo conto?
O conto aborda a
temática do ódio e da vingança, mostrando como sentimentos negativos podem ser
superados por atos de compaixão e empatia.
09 – Qual é o desfecho da
história em relação aos sentimentos de Joaquim?
No final da
história, Joaquim percebe a inutilidade de nutrir o ódio e decide perdoar
Ricardo, aliviando seu próprio coração do peso desses sentimentos negativos.