CONTO: O RELOJOEIRO CONTORCIONISTA
Valério Romão
A dificuldade é microscópica. A luz não ajuda.
Os clientes dizem-me que a loja está cada vez
mais suja, que não é possível trabalhar com rolos de cotão deambulando pelas
mesas como gatinhos, os clientes que só se mantêm fiéis porque a minha
tabela de preços é tão antiga quanto eles o são. Não posso ter uma empregada
de limpeza – replico – não posso ter uma senhora
de plumas de avestruz na mão a estragar-me meses de trabalho com uma
espanadela ruminada à pressa.
A dificuldade é antiga.
O meu pai ensinou-me tudo
o que sabia. O meu avô tinha mãos de cirurgião e olhos de pombo. Eu carrego
alguns genes bondosos e medo de fazer outra coisa. O trabalho é como um
par de tamancos que se lega de mãe para filha: por mais desconfortável que
seja, não há coragem para mostrar as feridas nos pés. Um cambalear
ocasional que se atribui à diferença de tamanho entre dois membros
rigorosamente idênticos é o único indício de descontentamento. Ainda
assim, não há corpos perfeitos e a mentira passa de barriga em barriga.
Não desgosto os relógios. Fascina-me saber que
há coisas que, quando mexem para a esquerda, obrigam outras coisas a
mexerem-se para a direita e estas últimas forçam pequenos gravetos de
metal a percorrer distâncias milimétricas numa cadência monocórdica de
barítono deprimido. Aprendi a amar alguns tipos de metais, algumas marcas
específicas de engrenagens, aprendi a soldar e a desviar átomos com a
ponta da pinça. Toda a minha vida está prenhe de rolamentos minúsculos e
cheiro de cobre. Não tenho filhos, nem mulher. Quando morrer serei enterrado
com uns tamancos cor-de-caixão. Ninguém verá as chagas nos pés.
A dificuldade é parar.
Quando se é relojoeiro parece que o tempo dá
para tudo. É um manto cinzento, estendido, que se prolonga espaço fora e que
salpica tudo de tiquetaques sincronizados. Quando se é relojoeiro tem que se
cumprir os prazos. Ninguém confia num relojoeiro que se atrasa,
independentemente do valor da desculpa ofertada. A mãe pode estar a galgar
a linha da meta, o pai ou sobrinho podem ter tido um acidente grave. O que
importa é que haja alguém cuja função seja a de compor uma sinfonia
pela qual todos os passos possam ser dados com segurança. É preciso um
maestro. Um alquimista da simultaneidade. Eu.
Um relojoeiro não se cansa, um relojoeiro
não se desconcentra. Um relojoeiro é um apêndice do tempo e desde logo
está fora dele. Contempla-o, encaixa as suas peças como se brincasse
com Legos e devolve às pessoas a possibilidade de falhar um
compromisso. Caso eu não existisse, não haveria atrasos, nem
ocasião. Somente a visão do sol e das rugas faciais para saber que a vida
não tem buracos e que, quando os tem, não tem vida. Eu sou o
alicerce.
Quando morrer e levar comigo os tamancos
serei homenageado com uma estátua ou uma rua com o meu nome. Quando eu
morrer todas as coisas serão engolidas no silêncio dos relógios comatosos.
Deixará de haver emprego, leis, férias. Tudo será um único bolo
confuso de noite e de dia se revezando.
O problema é sincrónico.
À noite cumpro o meu ritual privado. Desço
as escadas, bebo meio copo de leite morno e começo a dar corda aos
bichos. Cada um dos relógios - de parede, de pulso, de bolso — tem um
grunhido diferente. Tento compor o ramalhete. Paro todos os relógios.
Menos um. Depois tento acertá-los mentalmente, com as engrenagens bloqueadas,
para que, quando for hora, conseguir que todos batam os segundos no mesmo
instante. São centenas de músicos aspirantes a solistas. Mas eu quero uma
orquestra, uma filarmónica de Cronos que esteja em sincronia com o meu espaço
interior, que cumpra as regras do bater do meu coração.
Todas as noites dou voltas pelas bancadas,
esgueiro-me por debaixo das cadeiras e penduro-me no escadote para que
sinta, uma única vez apenas, a simultaneidade original. O meu avô disse-me quando
eu tinha tempo, antes de saber que o tinha, que Deus não criou o mundo em sete
dias, que toda a história da génese originária era um paliativo para
mentes preguiçosas. Deus criou tudo no mesmo instante, como se todos os
relógios do mundo houvessem batido o pé ao mesmo tempo, e desse estrondo
instantâneo brotaram todas as coisas vivas.
O pecado original, outra farsa para imberbes –
dizia o meu avô -, foi o desrespeito pelo ritmo do mundo. O primeiro homem
e a primeira mulher zangaram-se porque um deles se atrasou. Não porque
houvesse comido uma maçã ou um bolo-rei, e sublinhava bolo-rei com um
cinismo impróprio para curas, não porque houvesse desejo de saber mais ou ser
igual a Ele. O tempo foi desrespeitado, pura e simplesmente nunca me disse se
houvera sido o homem ou a mulher a atrasar-se e todas as coisas perderam o
lastro de pureza e a sincronia. O meu avô que lia a bíblia à luz da teoria
do atraso metafísico nutriu sempre o sonho de ser ele a restaurar o tempo
em que as coisas eram como deviam ser. Eu herdei as suas mãos e a sua
paranoia.
A dificuldade é sempre o tempo.
Uma noite qualquer, uma noite sem sol igual às
outras, uma noite fria e desacompanhada de carne, depois de cinquenta anos
passados a pular para cima de cadeiras, a abrir e a fechar gavetas
teimosamente iguais, dou por mim com um estranho formigueiro nos dedos.
Nessa noite fiz tudo com precisão. Parei os
relógios. Todos. Pus a mão no coração e escutei. Não com os ouvidos.
Escutei pela mão, escutei o ritmo todo do meu corpo, a pressão que o
sangue exerce sobre as paredes das artérias, os impulsos micro-eléctricos de
neurónio a neurónio, as células da pele a caírem no chão, ribombando como
fanfarras de bombeiros. Com a mão no coração e os olhos cerrados
porque se ouve muito melhor com os olhos cerrados dirigi-me a cada relógio e
acertei-os de acordo com o que ouvia sentia e sei que entre um e outro
decorria uma batida cardíaca apenas. Dentro dessa batida cardíaca morriam
civilizações inteiras porque uma estrela havia engordado de luz e fogo, dentro
dessa batida havia choros de bebês cujas caras me eram absolutamente
incompreensíveis mas todos os bebês choram dentro dessa batida travavam-se
guerras, amavam-se pessoas e coisas, dentro dessa batida todo o espaço me era
revelado como só Deus o poderia ver.
Enquanto acertei os relógios com calma, com
segurança vi tudo o que o universo oferece e esconde. Não somente o que há, mas
tudo o que poderia ter havido, que se multiplica em cada segundo que
passa pelas possibilidades deixadas para trás. Era como se, de repente,
tudo estivesse despudoradamente nu. Vi a nudez do meu pai, do meu
avô-metafísico, vi a minha mãe que poderia ter casado com outro qualquer
e tido outros filhos quaisquer ou ter morrido à nascença ou dois anos
depois vi os filhos que nunca tive e que poderia ter tido, vi a mulher que
deveria ter amado, vi todas as mulheres que nunca deveria ter visto e
sentei-me, pesado. O universo e seus irmãos passaram por mim, sincopados,
de batida em batida, e deixaram-me sozinho com todo o mundo ao colo a lutar
por atenção.
Pendurei os tamancos. Parei os relógios todos.
Disse aos clientes que precisava de férias. Nunca mais voltei. Tenho ainda em
mim a gritaria selvagem do começo e do fim de tudo.
O problema é esquecer.
Entendendo o texto
01. Em
relação à estrutura textual do conto.
A. Narrador: a) narrador-personagem
b)
narrador-observador
c) narrador-onisciente
B. Em relação ao discurso das personagens
Presença de discurso: a) direto
b) indireto
C. Qual é a tipologia predominante no conto:
a) narrativa
b) argumentativa
c) descritiva
02. Qual a temática abordada nesse texto?
A vida de um relojoeiro, herdada a várias gerações.
03.Qual o cenário em que se desenrola a
história?
Numa relojoaria.
04. Por que o relojoeiro não contratava ninguém
para limpar a relojoaria? Retire do texto.
“Não posso ter uma senhora de plumas de avestruz na mão a
estragar-me meses de trabalho com uma espanadela ruminada à pressa”.
05. Como o narrador se tornou relojoeiro?
O pai ensinou tudo o que sabia. O avô tinha mãos de cirurgião e olhos
de pombo. E ele carrega alguns genes bondosos e o medo de fazer outra
coisa. Legado de família.
06. Qual o desfecho (epílogo ou conclusão) da
história?
Ele parou os relógios todos e disse aos clientes que precisava de
férias. Nunca mais voltou.
07. Faça um pequeno resumo da história.
Resposta pessoal.