CONTO: MEDO
João Anzanello Carrascoza
Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão. Mas, quando deu os primeiros passos, apoiando-se nos móveis da casa, sentiu-se só no mundo. Precisava dos outros para ir além de si. E tinha medo. Nem muito nem pouco. Do seu tamanho. Como o uniforme escolar que vestia. No futuro seria um homem, o medo iria se encolher; ou ele, já grande, não se ajustaria mais à sua medida. Por ora, estava ali, naquela manhã fria, indo para a escola, o olhar em névoa, as mãos dentro do bolso da jaqueta. O que o salvava era a mochila presa às costas. O peso dos cadernos e dos livros o curvava, obrigando-o a erguer a cabeça, fazendo-o parecer até um pouco insolente. O que fazer com a sua condição? Apenas levá-la consigo! Andava às pressas, tentando se proteger do vento que, na direção contrária, enregelava seu rosto. Queria aprender urgentemente. Crescer o tornaria maior que o seu medo. E, sem que soubesse, a lição daquele dia o esperava no sorriso de Diego, aluno mais velho, que ele nem conhecia ainda – quase um homem, diriam os pais, a considerar a altura, a penugem do bigode, os braços rijos. Na ignorância das horas por vir – que desejava fossem, senão tranquilas, suportáveis –, o menino passou pelo portão em meio aos outros colegas – vindos também ali para mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela –, e seguiu pelo pátio até a sua sala. A professora, mulher miúda, de fala doce, o perturbava. Já nas primeiras aulas, percebeu que ela não era só voz leve e olhar compreensivo. A sua paciência, como giz, vivia se quebrando. Por que ela agia daquela maneira? Não sabia. O menino com seu medo, o tempo todo. Na hora da chamada, erguia a mão e abaixava furtivamente a cabeça, como se a sua presença fosse um insulto. Se a professora fazia uma pergunta, antes de respondê-la, escutava a risada de um colega, o sussurro de outro, e então pressentia que iria falhar, o que de fato acontecia: ele, paralisado, sem resposta alguma, sob o olhar da classe inteira. Tropeçava no perigo que ele próprio, e não o mundo, deixava em seu caminho. Queria não ser daquele jeito. Mas era. Às vezes, entristecia-se até nas horas de alegria: quando jogava futebol com o irmão e perdia. Ou, quando, no parque de diversões, se negava a ir na montanha-russa, no chapéu mexicano. Era tudo o que sonhava. Experimentar aqueles abismos. Mas não conseguia. Vai, filho!, a mãe o incentivava. Eu vou com você, o pai prometia. Fitava o irmão que subia no brinquedo, acenava lá de cima, gritava e se divertia, enquanto ele se segurava firme no seu medo, inteiramente fiel. Se vivia inquieto na sala de aula pela certeza de se ver, de repente, numa situação que o intimidaria, às vezes se esquecia de seu desconforto, encantado com o universo que a professora lhe abria, as letras do alfabeto, os desenhos na lousa, um trecho de música que ela cantava, uma graça que fazia. E aí ele ria, ria com sinceridade, e, subitamente, se reencontrava, menino-menino. No intervalo, aquela calma provisória, quando o pátio se inundava de alunos. Na multidão, ninguém o notava, nada tinha a recear, era a sua hora macia. E assim foi até aquela manhã. Pegava seu sanduíche, quando percebeu que um garoto, o maior de todos, se acercava. Espantou- -se, ao dar a primeira mordida no pão e ver o outro à sua frente – tão desproporcional se comparado aos demais alunos – o corpo comprido, a voz firme, Eu sou o Diego, e sorrindo, Você é do primeiro ano, não é? Ele confirmou com a cabeça, para não responder de boca cheia. E, logo que o outro disse, Eu nunca te vi aqui!, o menino sentiu que estava diante de um desafio, como se num quarto escuro, o dedo no interruptor pronto para acender a luz. Diego o observava com mais fome nos olhos do que na boca, seguia o movimento de suas mandíbulas, à espera da merecida mordida. Tá bom o sanduíche? perguntou, e o menino respondeu Tá, e quis saber, Você já comeu o seu?, o que só serviu para alargar a vantagem de Diego, Não, nunca trago lanche, eu sou pobre. O menino perguntou, Quer um pedaço?, pensando que o outro se contentaria com a oferta, nem supunha que o gesto o conduziria mais depressa a seu destino; era uma entrega superior à que ele imaginava. Diego o mirou, satisfeito, e apanhou o pão com voracidade. Sentou-se no chão e se pôs a comer em silêncio, um silêncio faminto que pedia o olhar do mundo – tanto que o menino, ao seu lado, degustou a cena, orgulhoso por lhe saciar a fome. Se antes era frágil, casca de ovo, agora ele se sentia forte.
Descobria uma grande vida
dentro de si. Porque, antes que continuassem a conversa, ele sabia: fizera um
amigo. E Diego, que conhecia melhor essa cartilha, levantou-se e disse
agradecido, Se alguém mexer com você, me avise! Com a amizade de Diego, e a sua
força a favorecê-lo, ninguém o afrontaria. Imaginava ter um trunfo, mas também
podia ser um erro. Como adivinhar? Estava lá para aprender. E aprendeu rápido a
lição que Diego lhe deu, na semana seguinte, ao dizer, Minha mãe tá doente,
precisa de remédio e a gente não tem dinheiro. O menino – para mostrar que era
bom aprendiz – superou a culpa e entregou ao outro, dias depois, umas cédulas
que pegara às escondidas da bolsa da mãe. E então começou um tempo em que o
perigo era a estabilidade que Diego lhe garantia. Os dois ficavam juntos no
intervalo e quase sempre encontravam-se no fim da aula no portão da escola. O
amigo o acompanhava até a casa, cumprindo a sua parte no pacto, e recebia em
troca o que lhe faltava: o sanduíche, o estojo de lápis coloridos, os pacotes
de figurinhas. Diego sorria. E olhava para ele em silêncio no momento da paga –
como um aluno que desafia o mestre. O coração do menino batia alto, incapaz de
acordar a desconfiança que o embalava. Diego sorria – e sonhava. Sonhava com
uma bicicleta. A amizade entre eles atingiu o ápice no dia em que Diego se
meteu numa briga, quando outro marmanjo, no intervalo, esbarrou sem querer no
garoto e derrubou-lhe a garrafa de suco. Diego vingou o amigo – e foi suspenso
da escola por uma semana. O menino viu no episódio a prova de que o outro lhe
era plenamente leal. E nem precisou pensar numa recompensa: Diego a cobrou ao retornar
às aulas, dizendo que precisava de mais dinheiro para as injeções que a mãe,
agora, tinha de tomar. Era a vez do menino, a sua prova. E apesar da angústia,
ele mostrou que sabia tudo de gratidão: manteve-se aferrado à sua mentira ao
ver o irmão de cabeça baixa, a mãe chorando, o pai de lá para cá à procura do
dinheiro que sumira da carteira. E, então, sentado na soleira da porta de casa,
dias depois, o garoto viu Diego lá no fim da rua, pedalando uma bicicleta.
Diego acenou de longe e, ao se aproximar, abriu um sorriso para o amigo. Ele se
ergueu vacilante, apoiando-se na parede. Agora, estava mais sozinho do que
nunca. E sentiu medo. Muito medo.
João
AnzAnello CArrAsCozA. Aquela água toda. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 33-36.
Desvendando
o texto
1. O conto “Medo” inicia-se
com a apresentação do protagonista.
a) O que o narrador destaca ao afirmar que
“Era só um garoto”?
O narrador destaca o fato de o
protagonista ainda ser uma criança, de não ter muitas experiências.
b) Que mudança de sentido ocorreria se o
narrador tivesse dito Era um garoto só? Esse novo sentido ainda caberia no
conto?
A mudança indicaria que o protagonista
era solitário. Esse novo sentido também caberia no conto, já que, embora tendo
uma família, o menino sentia-se sempre sozinho.
c) O protagonista não é chamado pelo nome.
Que efeito de sentido é criado pela referência a ele apenas como “garoto” ou
“menino”?
Sugestão:
Reforça-se a ideia de que ele é frágil, de que ainda não se impõe diante dos
outros nem se destaca em momento algum.
2. Um dos principais espaços
do conto é a escola.
a) Como o garoto se relacionava com a
professora e com os colegas?
O garoto sentia-se intimidado
diante da professora e dos colegas. Embora gostasse de alguns momentos da aula,
ele tinha medo de ser exposto e transformava reações corriqueiras da professora
e dos colegas em algo opressivo e que lhe causava sofrimento.
Sugestão: O menino
não enfrentava problemas criados por outras pessoas; com o medo que tinha, ele
criava situações que se tornavam insuportáveis para si mesmo.
3. A relação com a família
também é explorada no conto. Releia o seguinte trecho.
“Fitava o irmão que subia no
brinquedo, acenava lá de cima, gritava e se divertia, enquanto ele se segurava
firme no seu medo, inteiramente fiel.”(linhas 35-37)
a)
Sugira um par de palavras que possam exprimir
a diferença entre o comportamento dele e o do irmão.
Sugestões: covardia × coragem; medo × ousadia; tensão × relaxamento;
apatia × vivacidade etc.
b)
A expressão segurava firme refere-se ao
garoto, mas ficaria mais adequada se fizesse referência ao irmão. Justifique
essa afirmação.
Essa expressão ficaria mais adequada se fizesse referência ao irmão
do garoto, que estava em um brinquedo de um parque de diversões e, portanto,
deveria segurar firme para não cair.
c)
Qual é o efeito de sentido provocado pelo uso
inesperado dessa expressão para referir-se ao protagonista em vez do irmão?
O uso inesperado dessa expressão reforça a contraposição entre as
duas crianças.
a)
A amizade entre ambos é marcada por uma
troca. O que Diego esperava do amigo?
Diego esperava receber sanduíches, álbum de figurinhas, dinheiro etc
b)
Que argumentos Diego usava para obter o que
desejava?
Diego dizia ser pobre e precisar de dinheiro para os remédios da
mãe.
c)
O que o protagonista esperava de Diego?
O protagonista esperava proteção.
d)
Como Diego estimulou essa amizade? Cite uma
situação que comprove sua resposta.
Diego passou a comportar- -se como um defensor, o que pode ser
notado, por exemplo, quando ele acompanhou o protagonista até a casa dele no
final da aula ou quando se envolveu em uma briga com alguém que havia,
involuntariamente, derrubado a garrafa de suco do garoto.
e)
Relacione as características físicas de Diego
ao papel que ele passou a desempenhar na vida do outro.
Diego era um menino mais velho, maior do que os demais, já
apresentando algumas características de homem, o que contribuiu para a
construção de uma figura protetora.
5. O desfecho do conto
evidencia o efeito dessa amizade sobre o protagonista.
a)
Explique por que a amizade dele com Diego
passou a ameaçar suas relações familiares.
Para sustentar a amizade, o protagonista passou a roubar dinheiro
dos pais e a permitir que o irmão fosse considerado culpado em vez dele.
b)
O narrador afirma que, ao dar o sanduíche a
Diego, o menino realizou “uma entrega superior à que ele imaginava”
(linha 60). Por quê?
Com aquele gesto, o menino inaugurava uma relação de troca que se
estenderia para outras situações.
6. O
conto “Medo” não segue a forma comum das narrativas.
a) Como,
normalmente, as frases são organizadas nas narrativas? Qual é a novidade desse
conto?
Comumente, as frases formam
parágrafos, mas nesse conto há um bloco único.
Elas são apresentadas após travessão ou
entre aspas.
c) Que recurso foi usado para diferenciar a fala dos personagens da fala do narrador nesse conto?
As falas são diferenciadas pela
mudança no tipo de letra (itálico).
Resposta pessoal.
a) O
que motiva a reação do protagonista?
Ao ver Diego na bicicleta, ele
entendeu que não tivera um amigo de verdade, mas alguém interessado nas
vantagens materiais que ele poderia proporcionar.
A lembrança de o menino dando seus
primeiros passos, apoiando-se nos móveis da casa e sentindo-se muito só e com
medo.
c) Por
que você acha que foi feita uma associação entre o desfecho e o trecho inicial
do conto?
Resposta pessoal. Espera-se que os
alunos reconheçam que o desfecho mostra um novo momento de insegurança, em que
o garoto, a partir daquela aprendizagem, experimenta a solidão e o medo em grau
máximo.