sexta-feira, 19 de setembro de 2025

CRÔNICA: O BANHO - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Crônica: O Banho – Fragmento

              Clarice Lispector

        [...]

        Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levan­tei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molha­da, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, sol­tos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certa­mente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente mi­nha alma também. Nesse instante eu estava verda­deiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silên­cio do campo. E eu não me sentia desamparada.

 

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjozuBsQPF6oeMIukpkim4qkhBqmbIwk6Zh-tQtTzr5PPw7z5Oyyz03iy9OadlunsSvoeQ4njcSV325Uxztyu_s5hrOqFQ4N8umHXlbauzvFFvgORtRVWaQ05rDgfrsl3l7zfyI7xjx4k5djAqhqQ9FUObOSRaORSEEmI3Pve8ZuYMlHkXJk8eTieIcCl8/s320/nilo-amazonas-1.bx_.jpg 

O cavalo de onde eu caíra esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já inva­dia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus bra­ços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Am­bos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as campinas mor­nas do último sol e a brisa leve voava devagar. É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas es­queci, sempre esqueci.

        Eu estava sentada na Catedral, numa espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pu­desse compreender o que se passava, como um cataclisma, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devol­viam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que ini­ciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translú­cido. E era tão perfeito o momento que eu nada te­mia nem agradecia e não caí na ideia de Deus. Que­ro morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer ins­tante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda. As pessoas se levantavam ao meu redor, movimentavam-se. Ergui-me, caminhei para a saída, frágil e pálida.

Clarice Lispector – Literatura comentada. São Paulo, Nova Cultural, 1988.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 8.

Entendendo a crônica:

01 – Como a narradora se sentia antes de tomar banho e como sua percepção de si mesma muda após o ato?

      Antes de tomar banho, a narradora se sentia "fechada, opaca". Após o banho, ela descreve um sentimento de renascimento, como se tivesse "nascido da água". Ela passa a se sentir mais conectada com o próprio corpo e com a natureza ao seu redor.

02 – Qual é a relação da narradora com a natureza após o banho, e o que o cavalo representa nesse momento?

      A narradora se sente em total sintonia com a natureza, percebendo seu silêncio como parte do silêncio do campo. O cavalo, do qual ela havia caído, a esperava e se torna uma "continuação do meu corpo", simbolizando a renovação e a sensação de liberdade.

03 – No segundo momento da crônica, o que acontece na Catedral que provoca uma reação intensa na narradora?

      Na Catedral, um órgão invisível começa a tocar de forma súbita, com sons cheios e vibrantes, que não se assemelhavam a uma melodia. Essa música a transpassa e a faz se ajoelhar, sentindo-se aniquilada e tomada por uma emoção avassaladora.

04 – Após a música na Catedral, qual é o desejo mais profundo da narradora e por que ela se sente assim?

      A narradora deseja morrer naquele exato momento, porque o instante era tão perfeito que qualquer outro momento que o sucedesse seria "mais baixo e vazio". A morte seria a única forma de preservar o auge daquela experiência sem ter que enfrentar a "queda" de volta à realidade comum.

05 – O texto apresenta duas experiências extremas: o banho na natureza e o som do órgão na Catedral. Qual é a emoção central que a narradora busca e que ambas as experiências, de certa forma, proporcionam?

      A emoção central que a narradora busca é a plenitude, um momento de felicidade e de conexão profunda consigo mesma e com o mundo. Tanto o banho quanto a música do órgão a levam a um estado de êxtase onde ela se sente completa, liberta e em perfeita sintonia, seja com a natureza ou com o sublime do som.

 

 

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