Crônica: O Banho – Fragmento
Clarice Lispector
[...]
Antes estava fechada, opaca. Mas,
quando me levantei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molhada, a roupa
colada à pele, os cabelos brilhantes, soltos. Qualquer coisa agitava-se em mim
e era certamente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna
transparente e isso era certamente minha alma também. Nesse instante eu estava
verdadeiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio,
compreendi, era um pedaço do silêncio do campo. E eu não me sentia
desamparada.

O
cavalo de onde eu caíra esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas
encostas que a sombra já invadia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão
pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando
dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus braços,
onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação
do meu corpo. Ambos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente
sombria deitara-se sobre as campinas mornas do último sol e a brisa leve voava
devagar. É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo
feliz mais do que se pode ser. Mas esqueci, sempre esqueci.
Eu estava sentada na Catedral, numa
espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens.
E, subitamente, antes que pudesse compreender o que se passava, como um
cataclisma, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem
melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes compridas e as
altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas e
intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus
nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos,
porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco,
ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade
com que iniciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo
vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translúcido.
E era tão perfeito o momento que eu nada temia nem agradecia e não caí na ideia
de Deus. Quero morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais
do que sofrendo. Qualquer instante que sucedesse àquele seria mais baixo e
vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda. As
pessoas se levantavam ao meu redor, movimentavam-se. Ergui-me, caminhei para a
saída, frágil e pálida.
Clarice Lispector – Literatura comentada. São Paulo, Nova Cultural,
1988.
Fonte: Português – 1º
grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia
Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 8.
Entendendo a crônica:
01 – Como a narradora se
sentia antes de tomar banho e como sua percepção de si mesma muda após o ato?
Antes de tomar
banho, a narradora se sentia "fechada, opaca". Após o banho, ela
descreve um sentimento de renascimento, como se tivesse "nascido da
água". Ela passa a se sentir mais conectada com o próprio corpo e com a
natureza ao seu redor.
02 – Qual é a relação da
narradora com a natureza após o banho, e o que o cavalo representa nesse
momento?
A narradora se
sente em total sintonia com a natureza, percebendo seu silêncio como parte do
silêncio do campo. O cavalo, do qual ela havia caído, a esperava e se torna uma
"continuação do meu corpo", simbolizando a renovação e a sensação de
liberdade.
03 – No segundo momento da
crônica, o que acontece na Catedral que provoca uma reação intensa na
narradora?
Na Catedral, um
órgão invisível começa a tocar de forma súbita, com sons cheios e vibrantes,
que não se assemelhavam a uma melodia. Essa música a transpassa e a faz se
ajoelhar, sentindo-se aniquilada e tomada por uma emoção avassaladora.
04 – Após a música na
Catedral, qual é o desejo mais profundo da narradora e por que ela se sente
assim?
A narradora
deseja morrer naquele exato momento, porque o instante era tão perfeito que
qualquer outro momento que o sucedesse seria "mais baixo e vazio". A
morte seria a única forma de preservar o auge daquela experiência sem ter que
enfrentar a "queda" de volta à realidade comum.
05 – O texto apresenta duas
experiências extremas: o banho na natureza e o som do órgão na Catedral. Qual é
a emoção central que a narradora busca e que ambas as experiências, de certa
forma, proporcionam?
A emoção central
que a narradora busca é a plenitude, um momento de felicidade e de conexão
profunda consigo mesma e com o mundo. Tanto o banho quanto a música do órgão a
levam a um estado de êxtase onde ela se sente completa, liberta e em perfeita
sintonia, seja com a natureza ou com o sublime do som.
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