Crônica: A Praça
Walcyr Carrasco
No final da adolescência, meu sonho era ser ator. Até fiz pontas no teatro. O salário era baixo, mas eu cumpria o ritual de todos os candidatos a astro. Ia religiosamente ao restaurante Gigetto, onde famosos e aspirantes se cruzavam. (Por sinal, o Gigetto mantém até hoje a tradição.) Eu pertencia à turma do couvert. Espécime que, por falta de fundos, contentava-se em filar o couvert alheio. Puxava uma cadeira e me pendurava em mesas lotadas. Tomava no máximo um refrigerante. Surrupiava azeitonas e pedaços de pão com manteiga.
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgK9vzNmn6A0JDeImTnXC8KyuVJiioT2toh3nCO06kWIzcI_0EpTj2WuuCqIAep9o6ZldXYABEb8INaQocuLow25uNaLfWbm5eSxy28T4F3sjKPO929ZUySp9RtqIH7G4mZA5pfWfT6TBaTw-l8s6f6W4G71JnXuv2LDkMJrbVTrut21Edh7oAzOKkZ8v4/s320/praca-da-republica.jpgTipos como eu eram comuns. A ponto de, em certa época, o
Piolin, outra meca de aspirantes a ator, exigir que pelo menos alguém na mesa
pedisse um prato. Entrava no restaurante e espreitava mesa por mesa, até achar
algum conhecido com emprego suficiente para encomendar um frango a passarinho.
As horas passavam, com longas conversas sobre testes, espetáculos a ser
montados etc. Onde estavam procurando um magricela loirinho e tão míope a ponto
de ser capaz de cair do palco?
Havia um problema de horário. Invariavelmente,
a chamada "classe teatral" ia ao restaurante depois dos espetáculos.
Eu morava no bairro da Lapa, e o ônibus parava à meia-noite, para voltar a
circular ao amanhecer. Eram bons tempos. Para mim, ao menos. Embora não
certamente para meus pais, que viviam descabelados, olhando a cada quinze
minutos pela janela. -— Não veio ainda — murmurava minha mãe.
— Já está na hora dele tomar jeito! — rosnava
meu pai.
Se não pintava nenhuma festa, só havia uma
maneira de chegar em casa. Ficar conversando até o amanhecer. Eu e meus amigos,
a pé como eu, caminhávamos pelas ruas, batendo papo. Um casal de amigos vivia
em uma quitinete da rua Caio Prado. Era comum receberem meia dúzia de
visitantes às duas da manhã. Acordavam e ficavam conversando até o sol raiar.
Ou nos acomodávamos no chão, para esperar o fim da madrugada. Isso quando não
éramos impedidos de entrar pelo porteiro do prédio, que fiscalizava o excesso
de bagunça.
Mas, na maioria das noites, andávamos. Não
bebíamos, como pode parecer. Só caminhávamos, falando sobre a vida, sonhos,
arte, projetos. Ou sobre ávida alheia, porque ninguém é de ferro. Lembro
especialmente de uma noite em que, junto com um amigo, Cândido, sentei em um
banco da praça da República. Absolutamente vazia. A não ser por uns patos que
viviam no laguinho. Cândido não era ator, mas adorava a noite. Vivia em uma
pensão no raio que o parta. A família, do interior. Esperava a decisão de um
inventário. Nunca mais o vi, e às vezes tento imaginar o que aconteceu com ele.
Soube, há anos, que a tal fortuna saiu. Já é uma vantagem. Passamos a noite
batendo papo naquele banco. Ele se lamentava. Acabara de romper com a namorada,
trocado por um baiano que ela conhecera no carnaval em Salvador. Falamos longamente
sobre a vida. Às vezes passava alguém, nos olhava. Ou até cumprimentava de
longe, e continuava seu caminho. O dia amanheceu, e nem sentimos o tempo
passar. Ainda fomos tomar uma média com pão e manteiga. Fui ao ponto, peguei o
ônibus. Quase dormi no banco, mas cheguei em casa leve, após uma boa noite de
conversa.
Hoje, por uma dessas coincidências da vida,
moro em um apartamento que dá frente para a praça da República. Patinhos no
lago, nem pensar. Não resistiriam mais de meia hora, até serem levados, depenados
e assados. Quando quero atravessar a praça, evito passar por cima. Prefiro ir
por baixo, pela estação do metrô, que é mais seguro. Outro dia estava com um
vizinho, pronto para voltar à superfície pela escada rolante. Um rapaz
aproximou-se, chocado.
— Fui cercado por seis pivetes. Queriam minha
carteira, nem sei como estou aqui.
Meu vizinho recuou, com medo. Eu ainda
conversei. O rapaz só queria desabafar, ainda tremia. O síndico do meu prédio
participa de um grupo que tenta fazer tai chi na praça. Pouca gente vai, mas
ele insiste a duras penas. Há sujeira. Há uma coisa pesada no ar. Nunca mais
sentei em um banco, nem mesmo de dia.
Juro, tenho saudade daquele tempo em que ficar
conversando na praça podia ser uma coisa normal. Não só nela. Não conheço
ninguém capaz de cometer a ousadia de sentar em uma praça, mesmo em um bairro,
e passar a noite batendo papo. Parece que o centro, com tanto policiamento,
ainda é o lugar mais seguro. Pois em muitos bairros assaltam-se até prédios
inteiros. Havia menos linhas de ônibus. Menos projetos disso e daquilo. Mas o
laguinho podia ter patos.
Sinto que perdi alguma coisa essencial. Hoje,
tenho meu apartamento, carro. Não preciso esperar o horário do ônibus.
Mas, no fundo, sou proprietário de muito menos.
Antes, eu era dono da cidade.
Entendendo o texto
01.Qual era o sonho
principal do autor na adolescência?
a. Ser médico.
b. Tornar-se um músico famoso.
c. Ser um ator.
d. Viajar pelo mundo.
02. Onde o autor e
seus amigos costumavam se encontrar após os espetáculos teatrais?
a. No restaurante Gigetto.
b. Na estação de metrô.
c. Na praia.
d. No parque.
03. Como o autor
descreve sua rotina noturna após os espetáculos teatrais?
a. Voltando para casa de carro.
b. Conversando nas ruas até o amanhecer.
c. Assistindo filmes em casa.
d. Indo para festas.
04. O que o autor
costumava fazer para retornar para casa quando o ônibus já não estava mais em
circulação?
a. Pegava um táxi.
b. Ficava conversando até o amanhecer.
c. Caminhava com os amigos.
d. Pedalava até em casa.
05. Qual era o
sentimento dos pais do autor em relação aos seus hábitos noturnos?
a. Preocupação.
b. Indiferença.
c. Alegria.
d. Despreocupação.
06. O que o autor e
seu amigo Cândido faziam nas noites em que se encontravam na praça da
República?
a. Jogavam futebol.
b. Conversavam até o amanhecer.
c. Corriam ao redor do lago.
d. Observavam os patos.
07. Qual era o tema
principal da conversa do autor e de Cândido durante a noite na praça?
a. Arte e sonhos.
b. Esportes e competições.
c. Política e economia.
d. Tecnologia e ciência.
08. Como o autor
descreve sua relação atual com a praça da República?
a. Evita atravessá-la.
b. Frequenta-a diariamente.
c. Participa de grupos de exercício lá.
d. Alimenta os patos no lago.
09. O que o autor
sente falta em relação aos tempos passados na praça da República?
a. Os patos no lago.
b. As longas conversas noturnas.
c. A sensação de segurança.
d. A variedade de ônibus disponíveis.
10. Qual é a
principal reflexão do autor ao comparar seu presente com o passado vivido na
cidade?
a. Ele se sente mais realizado agora.
b. Ele percebe que tinha mais liberdade e
propriedade sobre a cidade no passado.
c. Ele prefere a tranquilidade do seu
apartamento atual.
d. Ele valoriza mais as oportunidades que
teve na juventude.
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