CRÔNICA: – ADOLESCÊNCIA: A
PORTA DA VIDA
Affonso Romano de Sant'Anna
Às vezes, quando
olhamos à nossa volta, cercados de amigos queridos, temos a sensação de que
aquele momento é eterno e que nada poderá mudar o rumo de nossas vidas. Mas
será mesmo?
O que será que a vida
prepara para cada um de nós?
PORTA DE COLÉGIO
Passando pela porta de um colégio, me veio
uma sensação nítida de que aquilo era a porta da própria vida. Banal, direis.
Mas a sensação era tocante. Por isto, parei, como se precisasse ver melhor o
que via e previa.
Primeiro há uma diferença de clima entre
aquele bando d adolescentes espalhados pela calçada, sentados sobre carros, em
torno de carrocinhas de doces e refrigerantes, e aqueles que transitam pela
rua. Não é só o uniforme. Não é só a idade. É toda uma atmosfera, como se
estivessem ainda dentro de uma redoma ou aquário, numa bolha, resguardados do
mundo. Talvez não estejam. Vários já sofreram a pancada da separação dos pais.
Aprenderam que a vida é também um exercício de separação. [...]. Mas há uma
sensação de pureza angelical misturada com palpitação sexual, que se exibe nos
gestos sedutores dos adolescentes. Ouvem-se gritos e risos cruzando a rua. Aqui
e ali um casal de colegiais, abraçados, completamente dedicados ao beijo.
Beijar em público: um dos ritos de quem assume o corpo e a idade. Treino para
beijar o namorado na frente dos pais e da vida, como quem diz: também tenho
desejos, veja como sei deslizar carícias.
Onde estarão esses meninos e meninas
dentro de dez ou vinte anos?
Aquele ali, moreno, de cabelos longos
corridos, que parece gostar de esportes, vai se interessar pela informática ou
economia; aquela de cabelos loiros e crespos vai ser dona de butique; aquela
morena de cabelos lisos quer ser médica; a gorduchinha vai acabar casando com
um gerente de multinacional; aquela esguia, meio bailarina, achará um
diplomata. Algumas estudarão Letras, se casarão, largarão tudo e passarão parte
do dia levando filhos à praia e praça e pegando-os de novo à tardinha no
colégio. Sim, aquela quer ser professora de ginástica. Mas nem todos têm
certeza sobre o que serão. Na hora do vestibular resolvem. Têm tempo. É isso.
Têm tempo. Estão na porta da vida e podem brincar.
[...]
A turma já perdeu um colega num desastre
de carro. É terrível, mas provavelmente um outro ficará pelas rodovias. Aquele
que vai tocar rock vários anos até arranjar um emprego em repartição público.
[...] Tão desinibido aquele, acabará líder comunitário e talvez político. Daqui
a dez anos os outros dirão: ele sempre teve jeito, não lembra aquela mania de
reunião e diretório? [...]
Se fosse haver alguma ditadura no futuro,
aquele ali seria guerrilheiro. Mas esta hipótese deve ser descartada.
Quem estará naquele avião acidentado? Quem
construirá uma linda mansão e um dia convidará a todos da turma para uma grande
festa rememorativa? [...] Aquela ali descobrirá os textos de Clarice Lispector
e isto será uma iluminação para toda a vida. Quantos aparecerão na primeira
página do jornal? Qual será o tranquilo comerciante e quem representará o país
na ONU?
Estou olhando aquele bando de adolescentes
com evidente ternura. Pudesse passava a mão nos seus cabelos e contava-lhes as
últimas estórias da carochinha antes que o lobo feroz os assaltasse na esquina.
Pudesse lhes diria daqui: aproveitem enquanto estão no aquário e na redoma,
enquanto estão n porta da vida e do colégio. O destino também passa por ai. E a
gente pode às vezes modifica-lo.
Affonso Romano de Sant`Anna. Porta de colégio
e outras crônicas.
São Paulo: Ática, 1999. P. 9-11.
Entendendo o texto
1 – No 1º parágrafo, o
narrador traça um paralelo entre a porta do colégio e a porta da vida.
a)
A que se refere a palavra aquilo na frase “me
veio uma sensação nítida de que aquilo era a porta da própria vida”?
Refere-se não apenas ao espaço físico (a porta de um colégio), mas a
tudo o que se via: o movimento dos adolescentes, sua expressão, sua
transformação e o futuro de cada um, que já começava a se anunciar.
b)
Interprete: De acordo com o texto, o que é a
porta da vida?
É a porta da maturidade, da vida adulta que se abre a partir da
adolescência.
2 – Ainda no 1º parágrafo, o
narrador percebe que a sensação que teve pode ser alvo da crítica de seu
leitor.
a)
Que frase evidencia essa consciência?
Banal, direis.
b)
Por quê a sensação que o narrador teve
poderia ser qualificada dessa forma?
Possivelmente porque a ideia de que o período escolar é uma
preparação para a vida, assim como a adolescência é um estágio para a vida
adulta, seja comum ou já desgastada.
3 – O narrador para diante
da cena com o objetivo de “ver melhor o que via e previa”.
a)
Que parágrafo do texto descreve o que ele
via?
O 2º parágrafo.
b)
Que parágrafos descrevem o que ele previa?
Do 4º ao 7º parágrafos.
4 – Ao reparar no que vê, o
narrador distingue dois grupos: um “bando de adolescentes espalhados pela
calçada” e “aqueles que transitam pela rua”.
a)
Qual desses grupos já atravessou a porta da
vida?
O dos que transitam pela rua.
b)
Além do uniforme e da idade, o narrador
percebe uma diferença mais sutil entre os dois grupos. O que caracteriza o
grupo dos que ainda vão entrar pela “porta da vida”?
Um clima, uma atmosfera, “como se estivessem ainda dentro de uma
redoma ou aquário, numa bolha, resguardados do mundo”.
5 – Situados entre a
infância e a vida adulta, alguns adolescentes que começam a entrar pela “porta
da vida” já sofrem os primeiros impactos da vida.
a)
Que palavras ou expressões empregadas no 2º
parágrafo, de sentidos opostos entre si, mostram a fase de transição vivida
pelos adolescentes?
A expressão “pureza angelical”, de um lado, e, de outro, “palpitação
sexual”, “gestos sedutores”, “beijar em público”.
b)
Que exemplo de impacto é mencionado no texto,
no 2º parágrafo?
A separação dos pais.
c)
Interprete a frase: “Aprenderam que a vida é
também um exercício de separação”.
Professor: Sugerimos abrir a discussão com a classe, pois pode haver
mais de uma interpretação. Sugestão: Na vida, nos deparamos com muitas
situações de separação: a morte de parentes e pessoas queridas, separações
amorosas, separação de amigos de quem nos distanciamos por diferentes razões,
separação de filhos que se casam, etc.
6 – Observe como é o futuro
que o narrador prevê para cada um dos adolescentes.
a)
As previsões são todas otimistas?
Não, pois há os que vão morrer precocemente.
b)
O que ele prevê para esses jovens é diferente
daquilo que são os adultos hoje?
Não, pois as previsões dele correspondem aos diferentes tipos de
pessoas que vivem na sociedade atual.
c)
De acordo com a visão do narrador, esses
jovens, no futuro, vão transformar o mundo? Por quê?
Não, pois eles vão repetir aquilo que os adultos de hoje fazem.
Sugestão: abra a discussão com a classe.
7 – No último parágrafo, o
narrador faz uma reflexão final sobre a cena que vê na frente da escola.
a)
Que sentimento ele revela ter pelos
adolescentes que se preparam para entrar pela “porta da vida”?
Um sentimento de ternura.
b)
Que imagem ele utiliza para representar a
chegada da vida futura? Ela é positiva ou negativa? Por quê?
A imagem de um “lobo feroz”; ela é negativa, pois devora os sonhos
ingênuos da infância.
c)
Na visão do narrador, a vida é uma fatalidade
ou ainda há esperança para cada um dos adolescentes? Explique.
De acordo com o texto, é possível mudar o destino; logo, há a esperança
de que cada adolescente aprenda a enfrentar o lobo que o aguarda na esquina.