quarta-feira, 4 de junho de 2025

MONÓLOGO: MEU NOME É JABERSON - FRAGMENTO - SANT'ANNA - COM GABARITO

 Monólogo: Meu Nome É Jaberson – Fragmento

                 Sant’Anna 

O personagem

Jaberson: é um adolescente que está apaixonado, tentando telefonar para a garota que ama. Mas não tem coragem.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjLGETnKq3soY4c93vJ7pgu4NjU1zuNF1OTbtJxR5rjlJM8tJYbsXIgezGwNswsybQ3iPfugtsJ6-5GuHnORAKFhu85yOipGrMML0qIAcpPBmqKnXlzJsnqwORTFxvDToYn5TjZAh-G59LATytvpAxphUhiwLNb2R7UZNMuMuK6G74B7Wulogt8c5e8bwU/s320/depositphotos_8131011-stock-illustration-cartoon-businessman-on-his-mobile.jpg


Roteiro

        Toda a cena acontece em um quarto. No cenário, há uma cama e um espelho. Jaberson está na frente do espelho ensaiando o que vai dizer na ligação, com o telefone na mão.

        Jaberson:

        Oi, meu nome é Jaberson. Nós fomos colegas… sim, terminei meus estudos contigo. Isso mesmo! Ah, tenho 17, sim… Ainda lembra?

(interrompe)

        Droga! Está horrível! Ela vai pensar que sou um idiota!

(espera, suspira e respira fundo). Pega o telefone outra vez e fala para si mesmo.

        Jaberson:

        De novo.

(finge outra vez que está falando com Laura)

        Oi, Laura! É o Jaberson! Eu fiquei sabendo que tem um filme muito bom passando e quero lhe convidar para ir ao cinema comigo!

(interrompe de novo)

        Ah! Que porcaria! E se ela não se lembrar mais de mim?

Pega o telefone outra vez.

        Jaberson:

        Oi, é o Jaberson. Não sei se você ainda se lembra de mim… a gente estudou juntos no ano passado. Eu queria lhe dizer que sempre gostei de você e que não consigo lhe esquecer e…

(joga o telefone na cama)

        …que eu sou um grande idiota!

(Fala consigo mesmo)

        Tenho de parecer natural. Respira fundo! Calma! Todo mundo faz isso o tempo todo. Tenho de parecer natural. Respira fundo.

(Irônico, fala consigo mesmo no espelho com outra voz)

        Jaberson:

        É só o grande amor da sua vida. Estudou três anos com a Laura e nunca teve coragem de falar com ela… mas é a coisa mais natural do mundo: ligar depois que terminou os estudos e depois de um tempão para convidá-la para ir ao cinema. Já aproveita para pedir ela em casamento, lógico.

(muda de tom)

        Por que não falei com ela ontem, quando a vi no shopping com as amigas?

(fala pro espelho, irritado) 

        Covardão!

(Volta a ficar calmo)

        Jaberson: 

        Tenho de parecer natural. Respirar fundo. Ah, droga, melhor fazer isso logo!

        [...]

(fala na frente do espelho)

        Vamos lá, coragem. Afinal de contas, você é um homem ou um rapaz de dezessete anos?

(Liga para o número. Espera. Desliga, preocupado)

        Jaberson:

        E se o pai dela atender?

(olha pra cima)

        Ai, meu Deus, por quê? Por que é tão difícil amar?

(Faz uma voz bonita no telefone) 

        Oi, sogrão. Aqui é o seu futuro genro, o Jaberson… a minha amada está em casa?

(muda o tom para falar consigo mesmo)

        Tenho de parecer natural. Respira fundo! Calma! Vamos lá, azar… o que tem de acontecer vai acontecer. Pensamento positivo!

(toma coragem e liga. Espera um pouco...)

        Jaberson:

        Tá chamando! Ai, meu Deus… É agora! Alô, eu queria falar com a Laura. É… droga! Secretária eletrônica!

(desliga, rápido. Espera alguns segundos. Imita com voz de secretária eletrônica)

        Você ligou para 34562389. Deixe seu recado após o sinal…

(finge que está deixando o recado)

        Oi, Laura. Aqui é o Jaberson, seu colega do ano passado…

(interrompe e pensa consigo mesmo)

        E se eu deixar um recado tão original que ela não consiga resistir e acabe pensando que sou tão inteligente e tão maravilhoso… que ela queira ficar comigo? Vou fazer uma música pra ela!

(finge que está deixando recado, e canta uma música ao telefone – pode ser uma melodia conhecida)

        Aqui é o Jaberson, teu colega especial. Laura, Laura, Laura! Estou te ligando para…

(interrompe)

        E agora? Como vou terminar isso? Laura rima com o quê? Ah, se eu tivesse uma guitarra!

(Pega um instrumento musical de brinquedo: um xilofone ou flauta).

        Jaberson:

        Jaberson, o maior músico do Brasil, vai tocar seu novo sucesso: Laura!

(faz uns ruídos horríveis. Finge desespero, socando a cama, dramático)

        Por que eu não sei tocar nada? Que droga! Vou me matar!

(faz voz de noticiário de TV)

        Maior músico do Brasil encontrado morto! Morreu tentando telefonar!

        [...]

(Larga o telefone. Fica pensando um pouco)

        Jaberson:

        Por que ela não tem celular? Todo mundo tem telefone celular! Até eu tenho celular…

(fica triste, bastante pensativo. Depois lembra de algo)

        Por falar nisso, esqueci de ligar o meu depois que fui ao cinema ontem.

(olha o celular)

        Nossa, quatro recados! Não conheço esse número.

(Toca o celular que está na mão dele)

        Jaberson:

        Alô? Quem fala? Laura? Que Laura? Ah! Laura? Que foi minha colega? Claro… Ah, você me viu no cinema sozinho… e não teve coragem de falar comigo? Que bobagem, é a coisa mais natural. Queria ligar pra mim? Para ir ao cinema… puxa, que coincidência! Estou livre… qual é o filme?

        (fica vibrando e comemorando na frente do espelho)

         É, tenho 17 anos, sim…

(se atira na cama)

(Iluminação vai diminuindo. O restante do texto pode ser falado em um volume cada vez mais baixo)

        Jaberson:

        Ah, Como conseguiu meu telefone? Ah, tá… é, eu sei como é. Ensaiando na frente do espelho? Deve ter sido divertido… ocupado? Ah, minha irmã… o celular? Esqueci de ligar depois do cinema. Posso, sim. Nossa! Estou tão feliz…

SANT’ANNA, Victor M. Stand-up, monólogos e esquetes para um ator único. Disponível em: http://booksgoogle.com.br. Acesso em: 4 jan. 2012. (Fragmento).

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 40-43.

Entendendo o monólogo:

01 – Qual é o principal dilema de Jaberson no início do monólogo?

      O principal dilema de Jaberson é a sua falta de coragem para telefonar para Laura, a garota por quem ele está apaixonado. Ele ensaia várias vezes o que vai dizer, mas sempre desiste por medo de parecer um idiota ou de ela não se lembrar dele.

02 – O que o espelho representa para Jaberson durante suas tentativas de ensaio?

      O espelho representa um confidente e um público imaginário para Jaberson. É diante dele que ele ensaia suas falas, expressa suas frustrações, e até mesmo dialoga consigo mesmo, usando diferentes vozes para criticar sua própria covardia.

03 – Quais são as principais preocupações de Jaberson ao tentar ligar para Laura?

      Jaberson se preocupa com vários aspectos: se Laura se lembrará dele, se ele parecerá um idiota ao telefone, se o pai dela atenderá a ligação e como ele se comportará diante de uma possível rejeição ou constrangimento.

04 – Como Jaberson reage às suas próprias falhas e à sua inibição?

      Jaberson reage com frustração e autocrítica, chamando-se de "idiota" e "covardão". Ele demonstra um desespero cômico, chegando a dramatizar cenários de morte por não conseguir falar com Laura ou não ter habilidades musicais para impressioná-la.

05 – Que reviravolta inesperada acontece no final do monólogo?

      A reviravolta inesperada é que, enquanto Jaberson está se lamentando e percebendo que esqueceu de ligar seu próprio celular, Laura liga para ele. Isso inverte completamente a situação, mostrando que ela também estava interessada e hesitante em contatá-lo.

06 – O que a ligação de Laura revela sobre os sentimentos dela por Jaberson?

      A ligação de Laura revela que ela também tinha sentimentos e estava interessada em Jaberson. Ela o viu no cinema e não teve coragem de falar com ele, e também queria ligar para convidá-lo para ir ao cinema, mostrando uma reciprocidade de sentimentos e inseguranças.

07 – Qual é a principal mensagem ou tema que o monólogo transmite através das experiências de Jaberson?

      O monólogo transmite a mensagem de que a insegurança e o medo da rejeição são sentimentos comuns e muitas vezes infundados no contexto da paixão adolescente. A história de Jaberson, com seu humor e reviravolta, mostra que a coragem, mesmo que demore a aparecer, pode ser recompensada, e que as dificuldades muitas vezes são mais imaginárias do que reais.

 

 

CAUSO: ASSOMBRAÇÃO - ROLANDO BOLDRIN - COM GABARITO

 Causo: Assombração

            Rolando Boldrin

        Aquele moço estava esperando a condução no ponto da frente do cemitério da Consolação, na capital.

        Era uma sexta-feira e faltavam cinco minutos para a meia-noite.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiODbmFHoty6teSrG61Q667NbfguN_XuLyH2p6tyv_d6EBiY1dFgFJqKyoGO3HrHl5cdkEyTk08bXEm25HO_MAzbqOwsowiVreqG2oqN7sPa9nazgjhHT1UKwfpQSW8iyJ9l1cNOYD3fzu8CCGc0hXZtxPyI1m9jhqtF7M5QXPnZptTespFHrnLMeNIjcQ/s320/gettyimages-1217556748-612x612.jpg


        De repente, encosta um outro moço.

        O ônibus não chegava, deu meia-noite, e este moço olha pro relógio, pros lados, coisa e tal... E o primeiro moço então resolve puxar conversa:

        -- O amigo por acaso tem medo de alma de outro mundo, assombração, essas coisas?

        O moço, com desdém:

        -- Eu não, rapaz. Ocê acha que vou ter medo dessas bobagens de gente morta?

        E o outro responde:

        -- Gozado, eu também quando era vivo num tinha medo, não!

Rolando Boldrin. História de contar o Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 2012.

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 48.

Entendendo o causo:

01 – Onde e em que circunstâncias os dois moços se encontram?

      Os dois moços se encontram em um ponto de ônibus em frente ao cemitério da Consolação, na capital. Era uma sexta-feira, e o encontro ocorreu cinco minutos antes da meia-noite, enquanto aguardavam a condução.

02 – Qual é a pergunta que o primeiro moço faz ao segundo para puxar conversa?

      O primeiro moço pergunta ao segundo: "O amigo por acaso tem medo de alma de outro mundo, assombração, essas coisas?".

03 – Como o segundo moço reage à pergunta sobre ter medo de assombração?

      O segundo moço responde com desdém, afirmando: "Eu não, rapaz. Ocê acha que vou ter medo dessas bobagens de gente morta?". Ele demonstra total descrença e falta de medo em relação a fantasmas ou assombrações.

04 – Qual é a frase final do causo e o que ela revela sobre a identidade do primeiro moço?

      A frase final do causo é: "Gozado, eu também quando era vivo num tinha medo, não!". Essa frase revela a verdadeira identidade do primeiro moço: ele é, na verdade, uma assombração ou um espírito de alguém que já morreu, surpreendendo o outro moço e o leitor com a revelação.

05 – Qual é o elemento principal que torna este causo um "causo" e não apenas uma história comum?

      O elemento principal que o torna um "causo" é o seu final inesperado e cômico, conhecido como "punchline". A reviravolta na identidade do primeiro moço, revelada na última fala, transforma uma conversa trivial em uma anedota com um toque de humor e suspense, característica marcante desse gênero narrativo oral.

 

MÚSICA(ATIVIDADES): MEDITAÇÃO - TOM JOBIM - COM GABARITO

 Música (Atividades): Meditação

             Tom Jobim

Quem acreditou
No amor, no sorriso, na flor
Então sonhou, sonhou
E perdeu a paz
O amor, o sorriso e a flor
Se transformam depressa demais

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoM80DQYCPlJGIJ_cTZl2SYN_ksjpH1_U2_h4aQDC-JWhdxYp84o7ZrAejNZCObGfJcB01kjR-yqsOeDWbe9RmJyHWRjwVlYYs3CL6y4gmvHL_Eje5rTboPG84Uebxlqtol4POToGm-pAEYLOwjaRalGy60ZR79FGM8vqk3gUfkNao9ZRfFv_qqW3LNGU/s320/DI03529.jpg


Quem, no coração
Abrigou a tristeza de ver tudo isto se perder
E, na solidão
Procurou um caminho e seguiu
Já descrente de um dia feliz

Quem chorou, chorou
E tanto que seu pranto já secou
Quem depois voltou
Ao amor, ao sorriso e à flor
Então tudo encontrou
E a própria dor
Revelou o caminho do amor
E a tristeza acabou.

Composição: Newton Mendonça / Tom Jobim.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 321.

Entendendo a música:

01 – Qual o tema principal abordado na primeira estrofe da música?

      A primeira estrofe aborda a fragilidade e a impermanência do amor, do sorriso e da flor, sugerindo que a crença e a esperança nessas coisas podem levar à perda e à desilusão ("perdeu a paz").

02 – O que acontece com quem abriga a tristeza e busca um caminho na solidão, conforme a segunda estrofe?

      Quem abriga a tristeza e procura um caminho na solidão se torna descrente de um dia feliz, indicando um estado de desilusão e falta de esperança no futuro.

03 – Qual a transformação que ocorre com a dor e a tristeza na terceira estrofe?

      Na terceira estrofe, a dor e a tristeza são superadas. A própria dor se revela como um caminho para o amor, e a tristeza acaba, indicando uma resolução positiva e um reencontro com a felicidade.

04 – A música apresenta uma visão otimista ou pessimista sobre o amor e a felicidade no final? Justifique.

      A música apresenta uma visão otimista no final. Embora reconheça a dor e a perda, conclui que, ao retornar ao amor, ao sorriso e à flor, tudo é reencontrado, e até mesmo a dor pode revelar um caminho para a felicidade.

05 – Qual a mensagem central que Tom Jobim transmite sobre a experiência humana através da canção "Meditação"?

      A mensagem central é que, apesar das desilusões e tristezas inerentes à vida e ao amor, a superação da dor pode levar ao reencontro com a beleza, o amor e a alegria, transformando a experiência negativa em um aprendizado que guia a um estado de paz.

 

 

CONTO: A PALAVRA - SANTIAGO VILLELA MARQUES - COM GABARITO

 Conto: A palavra

           Santiago Villela Marques

        A mãe sobe o morro. Passo difícil para uma velha que já fez três filhos homens.

        Desafio maior, porém, é este por vir. Enfrentar o prefeito do tráfico é empreitada temerária, mesmo para quem já se acostumou à brutalidade do macho. Mesmo para fêmeas como esta, que madurou à força de porrada do marido e palavrão e afronta das crias.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMplnQGD1PZmakCmvpMeASWBtA2muO0dsBKxM7dAlpm4rGl5GZYKGxWpkONKZRtB6YBZL58CVZAXiGnP05rpv9m7HBbb7DodPqxVEZQhAGzfotoTkH2Jo-CBhnrzZ1FcvxA-5TUTaDIF7tNTVZrmSMFw-eMZ7P3l4S1R75Jik6dssFl_LDfrTGcFP0FFE/s1600/images.png

        A favela passou o dia nervosa e em preparativos. Nesta hora do crepúsculo, se agita como um animal furtivo, esperando o tempo de botar fora da toca o focinho. Escorregando no horizonte, um sol bêbado espia atrás dos barracos, o olho sangrento. As sombras que caem nas soleiras parecem multiplicar as vias e ruelas, povoadas, elas também, de olhos à espreita, os canos de revólveres e fuzis desconfiados se insinuam nas esquinas.

        Sem deter o passo, Dona Nazária percorre o labirinto de feras tocaiadas, indiferente a rosnados e dentes à mostra. Desliza morro acima, até o barraco do dono das bocas. Sobe o último degrau.

        O brutamonte armado ergue o peito na frente da porta. Ela o encara e faz entender que é capaz de tirar o chinelo e lhe dar um corretivo se quiser impedi-la:

        -- Preciso lembrar o que é que faz uma mãe?

        -- Que é isso, minha tia – respondei o outro, relaxando o corpo, mas sem sair do posto. – Minha velha já é comida de bicho faz ano.

        -- Pois eu acabo de te adotar. Então toma tento. Nazária põe a mão na cintura:

        -- Quero ver o chefe.

        -- O chefe está ocupado. Vocês já receberam ordem pra não sair de casa hoje.

        -- Pois saí e deu trabalho chegar aqui. Não volto sem palavra com ele.

        -- Não posso deixar.

        Ela procura um banco. Agora sente que os pés ardem da subida. Dobra uma perna e retira o chinelo. O porteiro recua e retesa a mão no fuzil.

        -- Vem cá, mocinho. É isso que você vai contar pra sua velha amanhã, quando acender uma vela de Dia das Mães? Que o herói salvou o chefe de uma costureira com calo no pé? A favela inteira já sabe do “salve geral”. Segredo é que nem droga, meu filho: de mão em mão corre sertão. Eu preciso falar com seu chefe é disso mesmo.

        O outro ainda desconfia um restinho. Baixa os olhos no chinelo. Por fim grita para dentro do barraco:

        -- Tem uma velha aqui pedindo palavra.

        A resposta não vem logo. Dona Nazária calça o chinelo antes de ouvir a ordem do fundo:

        -- Se não estiver armada, deixa entrar.

        O guarda pendura o fuzil no ombro e se apruma para revista-la. Ela firma os olhos e endurece o queixo. O bruto se desarma.

        -- Tá bem, entra lá, Dona Nazária.

        Outros três grandalhões vigiam a casa por dentro. O dono das bocas risca um mapa na mesa.

        -- Fala logo, mulher. Você sabe que hoje é dia de serão.

        -- Vim mandar você liberar o Rubinho.

        O traficante empurra o mapa, atira o lápis sobre a mesa.

        Os três guardas se entreolham. Tosses, pigarros, dedos nervosos. Todo o mundo sabe que é preciso zelas na palavra que se usa com traficante. Tem verbo que é propriedade de chefe. “Mandar”, por exemplo. Só dono de boca conjuga em primeira pessoa. Dona Nazária descompunha a gramática.

        -- Você já mandou pra morte meu marido e os dois filhos. Nenhum dos meus homens foi meu. Você tomou tudo, viveram pra você e morreram pra você. O caçula, não. Esse é meu. Sei que você convocou toda a favela pro confronto do comando com a polícia. Rubinho não vai. Vim exigir essa palavra. Você me promete que ele vai ficar em casa hoje e eu vou embora.

        Dona Nazária não é boba. É mãe. Sabe que é o dia da guerra, mas também é Dia das Mães, e o traficante já não tem a quem presentear. Ela aprendeu com a novela a fraqueza desses bandidos durões: cara feia e coração mole.

        -- Tudo bem. Prometo que seu filho passará o fim de semana com a senhora. Este é meu presente de Dia das Mães.

        Ela procura soltar devagar o ar sufocado, para não deixar notar o alívio. Vinha aflita, confiante na versão da novela, mas temerosa com as lições da experiência. A generosidade do dono das bocas é ambígua, oblíqua, nunca se tem certeza de se obter benevolência. É homem de oferecer a vida, mas também de retirá-la, com a lógica de uma roleta de cassino.

        Uma vez, porém, confirmada a graça, é infalível como os deuses. Por isso esta mãe fica em paz. Sabe que palavra do chefe é irrevogável. Ele tinha adquirido daí o nome respeitados de Benito-Boa-Fé.

        A palavra não é de ninguém. Palavra não tem dono, por isso tem que ser respeitada. E a lei não está no escrito, mas no pensado. É o que Benito-Boa-Fé aprendeu quando estagiou na Febem, preso na lida de avião para boca de fumo. À época ela ainda era só Benito e ainda só acreditava. Depois aprendeu. Leu a lei nas inversões de culpa dos agentes da Febem, que entendiam as normas sempre a favor deles; leu a lei nos muitos julgamentos de traficantes livrados da cadeia pela boa oratória dos advogados; leu a lei nas notícias explicando por que a prisão de figurões do colarinho branco tinha sido um mal-entendido.

        -- O curso de Direito é o pé-de-meia do malandro – pregava o pai, que ficou desgostosos quando soube que o filho, com inclinação para outros crimes, se ofereceu aos donos das bocas para cumprir o ofício de avião, moleque a levar e trazer pacote.

        Ademais, Benito-Boa-Fé já tinha notado que a figura de retórica mais eficaz é um bolo de notas nas mãos do juiz corrupto. Diante disso, ser advogado parecia bom; mas ser rico era ainda melhor.

        Na favela, a história de Benito-Boa-Fé corre como enredo de cordel. Todo o mundo já ouviu e já contou como ele subiu a cacique do tráfico. Era gerente do maior traficante da região. Um dia o grandão pediu uma promessa:

        -- Preciso que você cumpra o que eu mandar antes de saber o quê.

        Benito deu a palavra. Fosse o que fosse, já tinha aprendido a fazer pior. E conhecer o pior é o que dá coragem no homem. O chefe se tranquilizou na promessa e amargou a ordem:

        -- É minha filha. Você precisa cuidar dela pra mim.

        Benito tinha aprendido também a língua enviesada de bandido. Entendeu que “cuidar” não era dar proteção. Irritou-se de ter feito a promessa. Exigiu pelo menos saber a razão do ordenado. E era esta: a menina tinha se enrabichado com um filhinho de papai viciado em craque. O moleque já tinha sido apagado, mas o chefe não podia executar a própria filha. Daí a encomenda.

        -- Mas tem que ser do jeito que eu vou dizer – continuou o dono da boca. – E vai ser assim: prometa para mim que você vai afundar a menina no mar. É meu presente pra Iemanjá não mandar castigo.

        -- Se não quer castigo, retira a ordem. Não gosto de ser enganado. Você sabia que ia me pedir coisa errada e me exigiu a promessa. Retira a ordem.

        -- A ordem está dada. Não vou voltar atrás. Vai quebrar a palavra?

        -- Não. Vou, ao contrário, espicha-la: prometo fazer o que me pediu e prometo voltar depois pra te matar. Dou minha palavra. Não se incomode, que vou cumprir a ordem ao pé da letra. Mas é meu último serviço. Ou penúltimo.

        A narração do povo colore a briga dos bandidos, põe susto, armas, rimas. Conta que Benito saiu e convocou os homens de confiança, explicando a cachorrada em que o chefe o metera. A quadrilha se santificou de indignação. Eram bandidos honrados, não aprovavam matar uma menina porque se perdeu de amor. Honrados e sensíveis.

        Mas também leais. Por isso aceitaram, a contragosto, acompanhar o gerente no cumprimento da promessa.

        -- Se confiam em mim, vão buscar a menina – ele mandou e foi obedecido. – Desço na praia e espero vocês.

        Acharam um penhasco no litoral sul, zona de reserva. Só os bichos e ondas por testemunhas. Amarraram a menina numa corda e atiraram o corpo ao mar.

        -- Pronto. Gritou Benito. Agora podem subir a moleca.

        Os homens não entenderam.

        -- Vamos, subam logo. Se demoram, a menina se afoga.

        Puxaram. Benito desamarrou a moça, deu-lhe dinheiro e recomendações para não voltar a São Paulo, que o pai a queria morta. Pregou nova ordem aos homens:

        -- Vamos subir a serra, macacada. A primeira promessa está cumprida: joguei a menina no mar. Falta só a outra.

        Assentado na admiração de seus homens pela esperteza e honra na manutenção da palavra, Benito voltou ao escritório do chefe, liquidou-o e tomou seu lugar. Era agora o Boa-Fé.

        -- Então posso voltar pra casa? O senhor me garante? – Dona Nazária confia.

        -- Precisa mesmo que eu repita?

        Não, ela não precisa. Por isso é tão difícil conseguir a palavra de Benito-Boa-Fé. O que é raro custa caro. O traficante faz poucas promessas porque paga todas.

        Esta, contudo, é apenas metade do trabalho de Nazária. A outra metade é convencer o filho. Para isso, conta ainda com a palavra do chefe, que nunca é desobedecida. Por isso veio ver Benito-Boa-Fé. Se pedisse apenas ao filho para ficar, certamente não seria ouvida. Homens têm seus brios.

        -- Licença, Seu Benito, mas tem mais uma coisa.

        O traficante mantém o silêncio no olho duro fixo na velha.

        -- Rubinho viveu o dia na espera do conflito. Só desiste se o chefe mandar.

        -- Dou ordem. Fica fria, minha velha. Seu filho passa a noite com a senhora. É promessa.

        Coma apalavra do homem, Dona Nazária pode tornar à casa. A alegria faz rápida a descida, o coração agora leve desliza ladeira abaixo até o barraco com a placa na porta: “Nazária Costureira”.

        “Foi fácil”, comemora. “Bom moço, esse Benito. Meu menino tá protegido”. Igual fazer vestido de noiva. No começo dá aquele medo de tratar com a freguesa, gente bacana, endinheirada de meter medo, exigente no pedido, “tem que ser igual ao da revista, nas rendas e babados”. A gente fica sem saber o que falar. Se diz muito, pode falar bobagem, se não fala nada, passa por songamonga. De qualquer jeito, arrisca perder a encomenda. Mas Dona Nazária sempre sabe a palavra certa, falar é que nem fazer costura, ir juntando tecido no tecido, seguindo firme por uma risca com a linha e agulha, alinhavando as fendas, amarrando os fios, corrigindo as sobras. Até o arremate final e aquela lindeza de discurso como um vestido de fada. Seduz até chefão do narcotráfico.

        Só o filho não lhe põe ouvido, acostumado de pequeno a desprezar ofício de mãe. Com esse funciona melhor silêncio.

        Nazária entra de gato, consegue até calar a dobradiça barulhenta da porta para não atrair a atenção do filho. Segue a passo ladino até o quartinho de costura, pega em panos e agulhas e senta na sala.

        Hoje as novelas vão menos interessantes que a vida. A luzinha da televisão pisca ao léu, que Dona Nazária está em horas de vigília, um olho na costura, outro no filho, que vê crescer em preocupação com a noite. Este olha o celular a cada punhado de minutos que a ansiedade não consegue segurar.

        -- Porra! Ele falou pra não sair antes da chamada...

        -- O que foi, filho?

        -- Nada, mãe. Tou falando comigo.

        -- Isso é mau. Você não sabe se dar conselho.

        -- Cala boca, mãe! E a senhora sabe? Desgraçado do homem que dá ouvido a palavra de mulher! Porra! Que demora!

        -- Xiu! Pelo menos controla essa língua!

        -- Vou sair...

        -- Não!

        -- Por que não? Eles me esqueceram...

        -- Não! Espera te chefe!

        Ele estranha a autoridade na voz, a recomendação, inusitada, de obediência ao patrão que ela nunca aprovou. Contrariado, senta e espera, mastigando a desconfiança.

        Já é perto da meia-noite, quando batem palmas. Rubinho atende no pulo. Imita-lhe o salto o coração de Nazária.

        Enquanto sai o filho, a mãe aperta contra o peito o trabalho de costura, sem sofrer as picadas dos alfinetes que lhe coroam o seio. De dentro, escuta que há uma discussão, mas não o que diz. Como feras rosnando, as vozes se confinam em sussurros, evitando chamar sobre si a atenção da noite. Nazária reza, sem atinar nas frases das ave-marias, tantas vezes repetidas que já nem atingem o juízo – será que atingiram o céu? “Deus não escuta o palavrório mas a aflita”, ensinou-lhe a mãe, pouco dada a novenas, e ela aprendeu direitinho e praticava todas as vezes que precisava arrancar um favor do marido ou dos filhos, chorando quando já não lhe ouviam as queixas, pena que homens não t/~em orelhas de deuses e pouco se deram para as lamúrias da velha, por isso vão agora com as orelhas para sempre surdas e entupidas de terra.

        Para ouvir melhor o que se atiram esses homens ainda bons de ouvido – queira Deus! –, Dona Nazária se ergue do sofá. Não chega à porta antes que esta irrompa e jogue casa adentro o filho de rosto convulso.

        -- Foi você velha!

        Com uma bofetada, faz a mãe cair de volta no sofá. O chefe vem atrás e lhe agarra o braço que ia descer outra vez sobre a mulher. Depois de empurrar o rapaz para o lado, o chefe do tráfico dirige-se à mãe aflita:

        -- Dona Nazária, eu tentei. Mas este teu filho é mesmo uma mula empacada.

        A mulher geme e os olhos úmidos. Busca a palavra certa, não pode desistir desse último filho. Precisa comover esse homem duro, todo homem pode ser convencido, basta lhe depositar no juízo o que não espera escutar. Encontrar a frase sem retruques, o pedido sem ambiguidades, a força incorruptível de um termo que não admita refúgios.

        Apenas a palavra certa... A palavra...

        Dona Nazária limpa a as lágrimas. Levanta o rosto sobre firmezas. A voz é serena:

        -- Por favor. O senhor me prometeu que ele ficava.

        Benito-Boa-Fé se apruma. Sente os empregados segurando seu silêncio com os olhos. Ele é, agora, o senhor dono proprietário da palavra. “A lei não está no escrito, mas no pensado”. Consulta o celular. Já passam cinco minutos da meia-noite. É Dia das Mães. Salve geral.

        Assenta os olhos no rapaz:

        -- Você não sai daqui. Dei minha palavra a sua mãe.

        E, dizendo isto, saca a pistola do cinto e dispara uma bala na testa do último filho de Dona Nazária.

MARQUES, Santiago Villela. Sósias: Contos. Cuiabá: Carlini&Caniato Editorial, 2005, p. 07-15.

Entendendo o conto:

01 – Qual o objetivo principal de Dona Nazária ao subir o morro e procurar Benito-Boa-Fé?

      Dona Nazária sobe o morro para convencer Benito-Boa-Fé, o chefe do tráfico, a liberar seu filho caçula, Rubinho, do confronto iminente entre o comando e a polícia. Ela quer garantir que ele fique em casa e não se envolva na violência.

02 – Como Dona Nazária consegue a permissão para entrar e falar com Benito-Boa-Fé, apesar da resistência inicial do guarda?

      Dona Nazária utiliza sua perspicácia e a "palavra" de mãe. Ela ameaça tirar o chinelo para dar um corretivo no guarda e apela para a sensibilidade dele ao mencionar o Dia das Mães, fazendo-o reconsiderar e chamar o chefe.

03 – Qual a "palavra" que Dona Nazária usa para se dirigir a Benito-Boa-Fé e qual o impacto dela sobre ele e seus subordinados?

      Dona Nazária usa o verbo "mandar" ("Vim mandar você liberar o Rubinho") e "exigir" ("Vim exigir essa palavra"). Essa escolha de palavras é um descompasse gramatical no ambiente do tráfico, onde "mandar" é prerrogativa apenas do chefe. Isso causa estranhamento e nervosismo nos guardas, mas surpreendentemente, Benito-Boa-Fé a ouve.

04 – Por que o conto enfatiza que o Dia das Mães é um fator importante na decisão de Benito-Boa-Fé?

      O conto sugere que o Dia das Mães amolece o coração do traficante. Ele já não tem a própria mãe para presentear, e a astúcia de Dona Nazária em usar essa data como "fraqueza" humana o leva a conceder o pedido como um "presente" de Dia das Mães.

05 – Qual o significado do apelido "Benito-Boa-Fé" e como ele o adquiriu?

      O apelido "Benito-Boa-Fé" se refere à sua reputação de sempre cumprir suas promessas. Ele o adquiriu ao executar a ordem de seu antigo chefe de "afundar" a filha dele no mar, mas de forma engenhosa: jogou-a no mar com uma corda e a puxou de volta, dando-lhe dinheiro e mandando-a para longe, e depois matou o chefe, assumindo seu lugar.

06 – Como Benito-Boa-Fé justifica sua interpretação particular da "lei" e da "palavra"?

      Benito-Boa-Fé aprendeu que "a lei não está no escrito, mas no pensado". Ele viu a lei ser manipulada a favor de agentes da Febem, advogados de traficantes e figurões do colarinho branco, compreendendo que a "palavra" e as regras são flexíveis e podem ser usadas para alcançar objetivos, especialmente se houver dinheiro envolvido.

07 – Qual a segunda parte do "trabalho" de Dona Nazária, além de obter a palavra de Benito-Boa-Fé?

      A segunda parte do trabalho de Dona Nazária é convencer o próprio filho, Rubinho, a obedecer à ordem de ficar em casa. Ela sabia que Rubinho não a ouviria se ela mesma pedisse, mas acataria a ordem do chefe.

08 – Como Dona Nazária reage à agressão de Rubinho quando ele descobre que ela interveio?

      Apesar da bofetada do filho, Dona Nazária não desiste. Ela limpa as lágrimas, levanta o rosto com firmeza e, com voz serena, lembra a Benito-Boa-Fé de sua promessa: "Por favor. O senhor me prometeu que ele ficava."

09 – Qual a ironia trágica no desfecho da história em relação à "palavra" de Benito-Boa-Fé?

      A ironia trágica reside no fato de que Benito-Boa-Fé cumpre sua palavra à mãe de Rubinho ("Você não sai daqui. Dei minha palavra a sua mãe.") ao matar o filho. Ele garante que Rubinho não sairá de casa, mas o faz de forma definitiva e letal, mantendo sua reputação de "Benito-Boa-Fé", que nunca quebra uma promessa, mesmo que a interpretação seja brutal.

10 – Que temas o conto "A palavra" aborda, considerando o contexto da favela e a interação entre os personagens?

      O conto aborda temas como a força e a resiliência materna, a brutalidade e as regras do tráfico, a relatividade da lei e da moralidade no ambiente da favela, o poder da "palavra" e suas múltiplas interpretações, e a ironia do destino em um mundo onde as promessas podem ter consequências devastadoras.

 

CONTO: MENSAGEM DA NUVEM NEGRA - FRAGMENTO - ALVES REDOL - COM GABARITO

 Conto: MENSAGEM DA NUVEM NEGRA – Fragmento

           Alves Redol

        Pareciam cercados no trabalho pelo braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao mesmo tempo por toda a parte.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxfy2MawhUIPn27B6vWl7sqhn2wgMUw_1vVjjxFdA2yCYOAGsFAx-cqkEIiH_hOHDU5_unvJVb8P2kQ99t7_j7fWtb7hAsIKiLeCTc0FCtxSwkAF1etyzEi7ZYRuzUbf6I5ovoVmfdG_NyHO9Sp3TEx220q8DDpI6af3eQWDEL0KMNU8G1gPj7q0WpvXs/s1600/images.jpg 


        O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e espesso. Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com metal em fusão.

        Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.

        A ceifa, porém, não parava, e ainda bem – a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também. E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e conduto da vila.

        Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável.

        Vencidos pelo torpor, os braços não param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo balouçar de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.

        Talvez muitos deles pensem que o arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os seus corpos. Se pudessem deter-se também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos montes de espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.

        Mas o bafo que vem da seara queima mais em cada minuto e as cabeças dos alugados pesam já tanto como o cabo das foices nos braços esgotados. Estão atafulhadas de amarelo, de pensamentos e de grãos de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.

        Ninguém entoa cantigas para animar, embora os capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer. Nos ranchos não há agora quem saiba cantar.

        Como podem as cachopas entrar em cantos ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que respiram se tornou lava do vulcão da planície?!...

        -- Auga!... Auga!... gritam os rapazes aguadeiros.

        [...]

        Para o ceifeiro rebelde os brados dos aguadeiros assemelham-se a gritos de socorro no meio do incêndio. Sente-se mais abatido do que os outros, porque compreende as causas da angústia do rancho e sabe que os outros sofrem mais. Ele tem um norte. E os camaradas ainda não encontraram bússola.

        “Se todos a tivessem...”

        O ceifeiro rebelde pende mais a cabeça para a seara, como se as torturas e as esperanças lhe pesassem.

        [...]

        A ceifa não para – a ceifa não para nunca.

        O Agostinho Serra tem os seus encargos, fala deles a toda a hora, e se começa a chover apanha um boléu dos grandes. A Senhora Companhia não perdoa a renda da terra, haja o que houver.

        De quando em quando, um deixa a foice e vai saltando as travessas para se ir abaixar a boa distância do olhar dos capatazes.

        E procuram todos o mesmo rumo. É que um deles passou ao companheiro do lado que na regadeira do meio a água ainda corre para os canteiros mais rezentos.

        A notícia correu de ceifeiro em ceifeiro. Por isso levam todos o mesmo rumo quando largam a foice nas travessas.

        Deitados de borco na linha que faz berço às águas, podem refrescar o rosto e molhar a cabeça à vontade. Um deles atirou-se para dentro da regadeira, querendo apagar a chama que lhe consumia o corpo. Quando voltou ao rancho, disse ao capataz que caíra à regadeira, numa explicação tola.

        -- Empeci num almeirão, seu Francisco.

        -- Vais fresco, vais. Largas-te aí com algumas sezões que não te ajudas com elas. Vai lá mudar de fato, homem.

        [...].

Portugal: Publicações Europa-América, 1980.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 283-284.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

-- Atafulhado: cheio em demasia.

-- Gavela: feixe de espigas.

-- Rezento: úmido.

-- Boléu: queda, baque.

-- Jorna: salário diário.

-- Seara: campo de cereais.

-- Cachopa: moça.

-- Maracha: pequeno muro de terra.

-- Sezão: febre intensa e intermitente.

-- Canícula: cana pequena e delgada.

-- Empeçar: emaranhar, enredar.

-- Resteva: restolho; vegetação rasteira e seca.

02 – Como o narrador descreve a intensidade do calor no local de trabalho dos ceifeiros logo no início do fragmento?

      O narrador descreve a intensidade do calor comparando o local de trabalho a um "braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande", como se toda a leiva estivesse sendo consumida por labaredas. O ar é descrito como "escaldava", lambendo os rostos dos trabalhadores com febre e fazendo com que seus pulmões parecessem ser alimentados por "metal em fusão".

03 – Apesar das condições extremas de trabalho, por que a ceifa não podia parar, de acordo com as preocupações dos rabezanos e dos próprios ceifeiros?

      A ceifa não podia parar porque, se chovesse, o patrão teria grandes prejuízos ("apanharia um boléu de aleijar"). Além disso, os próprios ceifeiros dependiam da ceifa para seus salários ("jornas") e para que o apontador enchesse a folha no sábado, garantindo pão e sustento para suas famílias. A interrupção do trabalho significaria dias ainda mais penosos e um degredo ainda mais insuportável.

04 – Como o narrador descreve o movimento dos ceifeiros durante o trabalho, enfatizando a exaustão e a automatização de seus gestos?

      O narrador descreve o movimento dos ceifeiros como um hábito que os arrasta em "gestos quase automáticos", com um balançar constante de ombros e pegadas marcadas na "resteva lodosa". Seus peitos arfavam como "máquinas velhas saturadas de movimento", e suas cabeças pesavam como o cabo das foices, indicando um profundo torpor e exaustão.

05 – Qual o desejo implícito dos ceifeiros em relação ao descanso, comparado ao arroz que colhem?

      O desejo implícito dos ceifeiros é poderem repousar como o arroz deitado nas gavelas. Eles pensam que o arroz descansa primeiro do que seus corpos e anseiam por poderem deter-se por instantes e descansar a cabeça nos montes de espigas que deixam para trás.

06 – Quem é o "ceifeiro rebelde" mencionado no texto e qual a sua diferença em relação aos outros trabalhadores no que diz respeito à compreensão da situação?

      O "ceifeiro rebelde" é um dos trabalhadores que, diferentemente dos outros, compreende as causas da angústia do rancho e sabe que os outros sofrem mais. Ele possui um "norte", uma direção ou entendimento da situação, enquanto seus camaradas ainda não encontraram essa "bússola".

07 – Qual a atitude dos ceifeiros quando um deles espalha a notícia de que ainda há água corrente em uma das regadeiras, e o que essa atitude revela sobre suas necessidades?

      Quando a notícia da água corrente na regadeira se espalha, os ceifeiros largam suas foices e seguem todos na mesma direção para se refrescarem. Essa atitude revela a sua necessidade extrema de alívio do calor e da sede, mostrando que mesmo uma pequena oportunidade de conforto é avidamente buscada em meio ao sofrimento.

08 – Qual a explicação "tola" que um dos ceifeiros dá ao capataz após se atirar na regadeira e qual a reação do capataz a essa explicação?

      O ceifeiro dá uma explicação "tola" ao capataz, dizendo que "empeci num almeirão" (tropecei numa chicória). A reação do capataz, seu Francisco, é de descrença e ironia, percebendo que o trabalhador apenas buscou se refrescar. Ele comenta que o ceifeiro volta "fresco" e o adverte sobre as possíveis sezões (malária) que poderia ter contraído na água, mandando-o trocar de roupa.